O monstro das letras
Trabalhava oito horas por dia. Acordava cedo, tomava banho, escovava os dentes.
Vestir o uniforme era sempre um desafio. Seu tamanho e sua robustez, que aumentavam a cada dia, o atrapalhavam na locomoção e nas sutilezas diárias.
Na rua os problemas não cessavam. Era difícil não esbarrar em alguém.
O dono da banca de jornal já o conhecia e tinha paciência. Perdia alguns bons minutos esperando que o cliente, com suas mãos enormes e unhas horripilantes, contasse as moedas. Atendia-o com compaixão e simpatia.
Levava sempre um jornal e, de vez em quando, uma revista. Com a voz rouca, agradecia. Inclinava a cabeça em gesto sublime. Seguia seu caminho.
Longos quatro quilômetros. Solitários, até a galeria. Lá dentro, as lojas iluminadas faziam o corredor. Do lado direito, por último, restava o café e a livraria. Havia uma porta principal, estreita, por onde os clientes entravam. Mas seu par de chifres e a envergadura do seu ombro não o permitiriam entrar por ali. Imaginava, em lúgubres ilusões, que o dono um dia alargaria aquela porta, permitindo a passagem de mais pessoas, de outros seres, ou até de um piano.
A porta dos funcionários, num corredor perpendicular, o esperava.
Sempre pensou naquele lugar, na galeria. Nas lojas e nas portas de funcionários. Era agradável trabalhar ali.
O ambiente de trabalho não podia ser melhor para este ser desproporcional. Vagava entre as prateleiras apreciando o aroma do café. Subia as escadas, recolhia os títulos abandonados pelos visitantes em cima do sofá, nas cadeiras, no chão. Algumas vezes, em suas mãos, haviam autores como Stevenson, Bram Stoker, Mary Shelley… um jardim de distorções e deformações. Pensava: “esta gente tem idéias estranhas”.
Cumpria também um papel significativo na hora de buscar livros. O visitante chegava, perguntava, olhava, pegava um livro aqui, outro lá. Outros funcionários vinham ajudar. Mas não tinham faro. Só ele conseguia encontrar os títulos mais raros. Talvez fosse o odor da poeira que fazia latejar o seu nariz protuberante, no topo de um focinho comprido. Um lobo dos livros.
Quase sempre, um passante pela seção de autoajuda, após ter conversado por alguns minutos com ele, retirava-se com as Confissões de Santo Agostinho.
Entre idas e vindas, pessoas, insetos no almoço e sopa de legumes na caneca, ele prostrava-se para arrumar, numa pequena prateleira, as obras completas de Tolkien e C. S. Lewis. Divagava sobre como as discussões deveriam ser intrigantes e fantásticas no The Inklings. Em apenas alguns minutos tinha os volumes dispostos como um jogo de dominó.
Queria ser corajoso como Ernest Hemingway, no entanto omitia seus talentos. Esbravejava consigo mesmo! Sentia-se culpado. Por alguns minutos estava completamente, absolutamente, certo de um erro. Era um direito seu dispor de seus meios.
Erguendo-se, subiu a escada, mais uma vez, e pegou o Crime e Castigo jogado ao chão. Estava amassado. Um pouco retorcido. Desestabilizado.
Voltou, desceu, e o corrimão percorreu seu pêlo. Calafrios.
Uma mulher, bela mulher, pediu-lhe ajuda. Escutou com atenção. Tinha o rosto enorme perto do rosto delicado e cintilante dela. Em um gesto, a mulher, tocou-lhe os pulsos…
Subiu as escadas, procurando. Olhos de cima a baixo. Título por título, capa por capa. Prateleira por prateleira. Não encontrou.
A mulher foi embora, decepcionada. Precisava ler aquele livro! Estava só. O vazio daquela alma era imenso. Os demais funcionários e o dono não perceberam isto. Somente ele.
De súbito correu, atravessando a loja, derrubando prateleiras e pessoas. Alguns vasos e ornamentos foram ao chão. Xícaras de café quebradas. Copos estilhaçados. Sob o olhar do gerente, da bela mulher que parou na porta e dos funcionários, ele pulou em cima do balcão. Desviou dos computadores. Segurando nas correntes do lustre, balançou-se, saltou e prendeu-se com suas garras no alto de uma estante. Passou a mão no rosto. Virou-se parecendo que queria saltar. Abaixou e pegou um livro.
A mulher, belíssima, reconheceu a capa de imediato. Era o seu livro! Ele o arremessou. Ela o agarrou. Dirigiu-se ao caixa enquanto aquele ser abissal descia da estante. Os dois trocaram breves palavras. Ele abriu o livro e na contracapa carimbou-o. Lia-se no carimbo: “Monstro das Letras – Livraria e Café”.
Muitas pessoas ainda frequentam o local. Principalmente para ver aquele ser sinistro e mágico. Aquele monstro farejador de livros.