Engrenagens - 1
A menina caminhava sozinha, estava indo para casa. O céu estava coberto por uma tempestade raivosa que ameaçava a cair. Todos já haviam se escondido. "Medrosos!" Até os cachorros havia se enfiado em algum lugar. Não havia ninguém, apenas a menina e alguma coisa estava atrás dela. Ela olhou por cima do ombro. Não via nada. Mas, algo a seguia. Apertou o passo. Carregava uma mochila pesada e uma sacola de compras. Continuava com aquela sensação, alguém lhe acompanhando, cada passo, cada vez que respirava. Ela pegou um atalho, chegaria mais rápido. "O que estava fazendo?" Era uma ruazinha estreita, cercada dos dois lados por paredes altas de tijolos vermelhos. Ela passou entre as latas de lixo, sentia a presença de alguém, sentia os olhos em suas costas tentando alcançá-la. Virou-se e não havia ninguém. Começou a chuviscar, gotas grandes e certeiras. Tudo estava impressionantemente escuro e ainda devia haver sol, se não fosse a chuva, maldita chuva.
Ela olhou para o fim do atalho e havia algo: um vulto invisível. Havia algo lá, mas ela não podia ver. "O que você quer?", ela não pôde se controlar. Uma voz veio de algum lugar: "Sou eu, Laura" Ela não ouviu, mas soube que alguém havia dito. "Estou aqui para te levar de volta". Um trovão assustador veio na direção deles. Fez com que Laura abraçasse a si mesma. "Eu não quero voltar, não ainda", ela disse pra algum lugar. "Trarei você de volta, prometo". Ela conhecia o tom indizível daquelas palavras. Conhecia de seus sonhos e brincadeiras e vontades e lembranças. Podia confiar nele. O vulto invisível lhe indicou o caminho. Ela podia senti-lo, sentia cada batida de seu coração. Ele lhe indicou a porta de uma loja. "Use a chave de prata. Aquela que pedi para você separar. Você trouxe?" Ela pegou um pingente que estava sob a blusa, uma pequena chave de prata que havia tirado de sua caixinha de chaves. Ela colecionava chaves e herdara a coleção de sua mãe. Era a única coisa que tinha dela, uma coleção de chaves sem fechaduras. Cuidadosamente, ela colocou as compras no chão, fechou os olhos com força e enfiou a chave na fechadura. Um estalo anunciou que havia funcionado e ela entrou. Estava pela primeira vez na Torre Abismo. Não havia nada no interior da torre além de portas. Devia ter milhões delas de todas os tamanhos e formatos e cores e lugares. Havia passarelas circulares que em espiral amparavam cada uma das portas. No centro do espiral, havia o abismo. Laura estremeceu ao ouvir o assobio do vento que soprava constantemente do fundo e buscava o céu. Ao lado dela, estava o vulto, agora, quase visível. O manto negro e puído cobria-lhe todo o corpo e amontoava-se no chão. Do capuz surgiam os olhos vermelhos e, vez ou outra, os lábios brancos e descarnados. Os dedos roxos e cheios de anéis brotavam das mangas longas. "Precisamos nos apressar."
Desceram pela passarela, o vulto segurando-lhe pela mão. Por sorte, não estavam em um lugar muito alto. Depois de alguns minutos, já estavam diante do portão de ferro enferrujado. "Peça para que abra". Laura pediu e as engrenagem do portão giraram fazendo com que toda a torre vibrasse, então abriu. Havia uma luz vermelha que atravessava as nuvens de tempestade e iluminava o dia, feito um constante sol poente. A terra era cinza, como se fosse uma gigantesca fogueira morta e abandonada. "Eles precisam saber que encontrei você, senão tudo estará perdido. Essa estrada leva até o castelo adormecido. Hoje, irão entregá-lo a irmã de sua mãe. Não podemos esperar." Então, seguiram pela estrada, ainda de mãos dadas e sem saberem ao certo o que lhes esperava. Quando se afastaram o suficiente, Laura olhou para trás, para a torre. Era incrível. A estrutura cortava o vermelho e não tinha fim. Era de pedra esverdeada e sua força afastava qualquer coisa que tentasse se aproximar. Era paralisante. "Está tudo tão triste". Havia ocorrido um incêndio. O fogo havia levado tudo o que aquela região possuíra. Toda a felicidade e qualquer sentimento que tivesse existido. Havia apenas cinzas.
O vulto não desviava os olhos de fogo de seu destino. Era dois metros mais alto do que Laura e segurava sua mão com delicadeza. Mas, seu toque era inexistente e Laura sentia-se sozinha, mesmo sabendo que ela estava ali. As pedras da estrada começaram a se destacar entre as cinzas e o caminho que deveriam seguir tornou-se mais nítido. Laura se animou um pouco, pelo menos, não estava caminhando sem rumo. Seu cabelo loiro começava a pregar em seu rosto por causa do suor e sua barriga começa a roncar. Encontraram um grupo de viajantes. Três: um alto, um médio e um miúdo. Estavam sujos e tinham narizes compridos e olhos amarelos. "Eles estão indo para a cerimônia." Ela os cumprimentou, esboçando um sorriso. Ninguém podia enxergar o vulto, a não ser que soubessem que ele estava presente. Depois de mais algum tempo, puderam ouvir uma música. Era bonita. Parecia uma brisa adocicada ou o som do sol e facilitou a caminhada. Laura reorganizou seus passos no mesmo ritmo da música e começava a cantarolar uma letra ininteligível para a melodia. Logo, avistaram as torres do castelo e as bandeiras e lanternas que anunciavam a cerimônia. Viram imponente muralha que os impediria de entrar. A muralha era gigantesca, construída com pequenos tijolos encardidos e no fim da estrada, havia um portão duplo de metal. Podia-se ver as enormes engrenagens e o esforço dos trabalhadores para girá-las. Haviam construído um mecanismo que fazia as engrenagens funcionarem, pois não havia energia e elas não giravam mais. Por isso, em todo o castelo e em muitas regiões do reino, foram instalados esses mecanismo e os pobres serviçais empurravam, puxavam e rodavam até tudo funcionar. As engrenagens eram obrigadas a funcionar e eram despertadas de seu sono e postas pra trabalhar. Havia três guardas que pareciam de miniatura perto do portão descomunal. Um deles conferia os convites, eram necessários convites. Um casal esperava, a mulher com um chapéu enorme de penas amarelas e o homem com uma bengala torta, atrás dele, Laura e o vulto e depois, o alto, o médio e o miúdo. As engrenagens se moveram resmungando e eles entraram. "O convite.", o guarda perguntou. "Eu não tenho convite", Laura disse sentindo-se idiota. Disseram pra ela sair do caminho e ir xeretar em outro lugar. Os três passaram na frente deles. Um por um entregaram os convites e as engrenagens giraram três bocados e eles entraram. "Apenas peça, Laura, tenha coragem", o vulto disse em seu ouvido. Ela fechou os olhos por um instante e respirou. Sentiu menor do que realmente era. Os portões se agigantaram e pareciam intransponíveis. Não se dirigiu para os guardas, mas para a muralha, o portão e as engrenagens. "Abram para eu entrar." Um estalo anunciou que havia funcionado. As engrenagens começaram a girar por si mesmas e dessa vez não reclamaram, pareciam até um pouco satisfeito de terem sido delicadamente chamadas para trabalhar. O mecanismo improvisado para obrigá-las a abrir quebrou num estrondo. Elas continuaram a girar e toda a muralha parecia ter despertado. Os guardas se assustaram e o portão se espreguiçou e abriu. "Seja bem vinda". Laura conteve um sorriso e os guardas, paralisados, não souberam o que dizer, quando ela entrou.