Meu amigo imaginário
Sempre quando olho o céu tingido de vermelho nas tardes de outono, lembro-me dele. Ainda sinto uma saudade estranha, como um aperto no peito me sufocando, quando as lembranças daqueles dias que passamos juntos na beira do lago voltam a me procurar. Eu ainda era criança, mas já tinha passado por maus pedaços nos meus poucos anos de vida. Meu pai havia perdido o emprego naquela época e saía todos os dias procurando um bico para arrumar o dinheiro da comida da semana. Minha mãe, debruçada sobre uma máquina de costura, mal tinha tempo de dar atenção aos filhos, que se espalhavam pela vizinhança, cada um procurando seus amigos para as brincadeiras no fim do dia. Para mim que era a mais velha, sempre sobrava os afazeres da casa e o preparo da comida para aquele pequeno batalhão que estava sempre faminto. Só descansava à tarde, quando saía de mansinho para visitar o lago, lugar que me fascinava pela paisagem tranquila e a frescura da água, sempre brilhando com os últimos raios do sol. Foi numa tarde destas que ele apareceu... eu estava em silêncio observando a água quando a sua voz arrastada me surpreendeu. Disse que também gostava do lago num linguajar que eu, a princípio não entendi. Só depois de repetir por duas vezes a mesma frase é que descobri o que ele estava dizendo. Pensei que fosse estrangeiro e perguntei de onde viera. Ele simplesmente olhou para o céu e não respondeu nada. Simplesmente balançou a cabeça e os seus cabelos louros acompanharam o movimento suave. Seus olhos me transmitiam sofrimento. Eram de um azul estranho, um tom que eu nunca havia visto antes. E sua pele era intensamente branca, como se ele jamais tivesse sido exposto ao sol alguma vez na vida. Ficou assim me olhando por um longo tempo, como se eu fosse a extensão de seu pensamento. Não disse mais nada naquele primeiro encontro. Depois, levantou-se calmamente e apenas acenou com a mão, num jeito estranho de dizer adeus. Nos outros dias em que fui ao lago, ele sempre apareceu novamente. E como da primeira vez, foram poucas as palavras que ele disse que eu consegui entender. Só descobri que ele queria voltar de novo para casa. Mas de onde viera e onde era sua casa, ele jamais soube me dizer. Comentei com minha mãe sobre a minha recente amizade e ela proibiu-me de encontrar com ele, até que ela soubesse de quem se tratava e qual seria a sua família, para saber se era uma criança de bem. Mas após uns dias, senti vontade de vê-lo novamente, queria saber se ele continuava visitando o nosso lago. E um dia sem que ninguém percebesse, lá fui eu novamente. Ele não estava lá. Senti uma decepção inexplicável por não encontrar ninguém à minha espera e sentei-me à beira da margem, deixando meus pés em contato com a água fria, enquanto minhas mãos faziam pequenas ondas com movimentos suaves... Foi então que senti sua mão tocando meu ombro. Virei o rosto bruscamente e meus olhos caíram diretamente dentro do azul dos olhos dele, quase um mergulho nos dois pequenos lagos dessa dor que eu não entendia. Só então eu sorri. Ele me retribuiu o sorriso pela primeira vez. Depois ficamos assim, abraçados olhando a tarde que ia se apagando aos pouquinhos por detrás das árvores. Foi então que ouvi a minha mãe gritando meu nome, parada a poucos metros de onde eu estava. Levantei-me temerosa de levar uma tremenda surra por não ter obedecido sua ordem de não me encontrar de novo com meu amigo, mas ela não esboçou reação alguma com a presença dele ao meu lado. Ele a fitava em silêncio, e apenas apertava minha mão, como se quisesse me passar coragem e depois soltou-a devagarinho, afastando-se em silêncio rumo ao meio da mata. Voltei com minha mãe para casa e não disse nada. Fiquei esperando a bronca que não veio e pensei que ela houvesse se arrependido da proibição. Voltei muitas vezes ao nosso cantinho de todas as tardes e sempre ficávamos por algum tempo admirando o mundo mudar de cor. Certo dia, perguntei à minha mãe o que ela tinha achado do meu amigo e ela disse que não havia visto amigo nenhum ao meu lado. Reforcei a pergunta, descrevi o garoto e ela disse que eu devia estar sonhando, que não havia ninguém ao meu lado naquele dia do lago. Fiquei sem entender. Alguns dias depois, ouvi-a dizendo ao meu pai que acreditava que eu tinha um amigo imaginário. Odiei-a por isso. Meu amigo era tão real quanto os irmãos que eu alimentava, lavava, penteava, e punha para dormir todos os dias enquanto minha mãe se matava na máquina de costura. Mas poucos dias depois percebi que meus irmãos também não viram meu amigo comigo quando vieram ao meu encontro na beira do lago. Ele então se transformou num mistério, um segredo que eu sabia que tinha e que não queria que ninguém soubesse.
E assim os anos foram passando, minhas escapadas nas tardes foram diminuindo e meu amigo foi se afastando aos poucos de mim. Até que um dia, depois de me dar uma pedra estranha de presente, ele colocou a mão seu peito e depois a colocou no meu, onde senti um calor intenso, como se alguma coisa tivesse sido colocada lá dentro de mim, um toque suave no meu coração. Depois colocou a pedra parecida com um cristal na minha mão a fechou com carinho. Disse-me para tocá-la toda vez que sentisse saudade dele, depois olhou-me profundamente nos olhos e sorriu. Um sorriso lindo e diferente, como se estivesse sorrindo com o corpo todo. Saiu caminhando devagarinho, quase levitando entre as folhagens e desapareceu na linha do horizonte, igual à cor das tardes que sumiam quando o sol ia embora. Nunca mais o vi. Fui muitas vezes ao lago e esperei por horas, mas ele nunca mais apareceu. Esqueci-me dele por uns tempos, quando eu comecei novas amizades e novas aventuras na adolescência e depois quando encontrei um amor na minha vida. Arrumei um emprego e finalmente casei-me e construí minha própria família. Certo dia, assistindo televisão vi o filme de Spilberg, o ET, e de repente tudo pareceu muito claro para mim. A saudade bateu forte no meu peito ao me lembrar do meu amigo de infância. Busquei o baú de madeira onde guardava o meu pequeno tesouro, aquela pedra translúcida que eu com tanto carinho guardara. E como todas as vezes, quando eu a colocava em minhas mãos, a magia acontecia. Ela se iluminava e pulsava no mesmo ritmo do meu coração, com aquela cor serena e triste que ninguém mais via, a não ser eu. Foi assim que eu descobri que a cor da saudade é lilás...