Eu sou.
Hataka – Templo-mor do Khen-shô. 1995 depois da Queda.
Henzo Arashy
– Não posso dar um nome a ela, senhor? – pergunta o jovem Henzo ajoelhado sobre a esteira de juta, incapaz de retirar o olhar da bainha trabalhada e do cabo estilizado, imaginando a lâmina mortal ali adormecida. A neve da noite anterior cristalizara toda e qualquer umidade da vegetação de altitude, transformando essa ímpar manhã ensolarada de Outono num agradável prisma suavemente reflexivo por onde quer que se olhe.
– Qual o nome de sua mão esquerda? E da sua orelha? Teria teu cotovelo um sobrenome ou mesmo uma alcunha, quiçá um apelido? – retruca Azurack gesticulando suavemente. Coça de leve a barbicha e se apoia no braço displicentemente.
– Entendo. Não devo dar nome a uma parte de meu corpo, mesmo que possa caso queira. Contudo, qual motivo leva os ocidentais a nomear suas armas? – o questionamento do jovem vem carregado da fantasia das histórias e livros romanceados. O silêncio no altiplano de Enheinier torna fácil a fala vagarosa e descomprometida ao redor do jogo naástiense de chá.
– Pois para os mesmos elas são isso – armas. – Azurack deita-se com uma mão sobre a nuca e traga longamente seu cachimbo de tabaco pacífico. O idoso pensa sem pressa sobre sua própria afirmação.
– E o que ela tem de ser para mim? – indaga Henzo, servindo-se de uma xícara fumegante e odorífica. Passa a vista nas telas que, mesmo após uma década, tanto o fascinam com detalhes que se revelam quase íntimos a cada vislumbre.
– Nada. Ela tem de ser você. E somente. – soergue-se o mestre, reabastecendo de tabaco o antigo cachimbo. Prefere um kan em detrimento ao chá de ershinia, adiciona sal às bordas do masu e sorve o fermentado pré-aquecido, degustando-o ao máximo.
Henzo medita sobre a questão, deixa o vapor abrir suas vias aéreas e ouve os passos de Dashin subindo os degraus, aproximando-se com determinação. Resolve ignorar e retornar ao diálogo com seu mestre: – Eu sou um escultor da realidade. Minha vontade expressa pode alterar o rumo do ambiente ao meu redor, o que, com o efeito de cascata que se segue, acaba por mudar todo o cosmo. Eu sou livre, penso por mim mesmo e isso é a maior responsabilidade que se pode contrair. A katana simboliza a capacidade singular que possuo, enquanto praticante de Khen-shô, em separar as distrações do que realmente importa; apresentar aos meus opositores minha determinação em mudar, em evoluir, e em impedi-los de prejudicar outras vidas livres no processo de existência. Eu sou um agente da guerra, da guerra da razão, da guerra do imaterial, e, se me convocarem com o mal, da guerra se sangue e carne, daquela em que não há vencedores, mas sim culpados. Eu sou aquele que confronta estes culpados, e que os pune se me convier. Eu sou uma arma, e escolhi como quero morrer e viver agora. – ao término da sentença Henzo sente uma leveza incomum, uma clareza de espírito que nunca havia experimentado. Demora a notar a presença de Dashin no recinto – o amigo e rival está estático e ofegante abaixo do grande batente de entrada. Nítidas manchas vermelhas no roupão monástico contam uma prévia do que acontecera bem antes que o aluno consiga proferir alguma palavra compreensível.
– Poucos homens podem fazer essa escolha Henzo, felicite-se por isso. – diz Azurack, referindo-se a ultima afirmação do aluno, observa Dashin por algum tempo, ofertando-lhe um olhar calmo e apaziguador, tranquilizando-o. Dando-lhe oportunidade de se explicar quando se sentir bem para isso. Continua a tragar o cachimbo e baforar languidamente.
– Estão mortos... – Dashin diz somente.
– Os cobradores? – questiona Azurack.
– Sim... – confirma o desorientado aluno. Seu olhar se perde no nada, revive cada respiração do acontecido e arqueja fundo.
– Não vou te perguntar como ou porque aconteceu, isso pode esperar e talvez nem mesmo valha a pena ser mencionado. O que realmente importa é somente isso Dashin – o que você sentiu quando os matou? – o mestre inclina seu torso na direção do aluno e o força a responder.
– Eu... Eu estou em paz. – seus olhos brilham com a umidade da afirmação. Dashin cai de joelhos. O aluno tranquilo e estável, paciente e tardio em irar-se. O jovem que costumava pescar e libertar seu prêmio, mesmo sabendo que ficaria com fome depois. O humano dedicado que trabalhava e treinava sem nunca reclamar.
– Ser sincero consigo mesmo é sempre o primeiro passo para se atingir a plenitude de consciência. – declara Azurack, voltando-se a deitar por sobre algumas almofadas bordadas que por ali estavam.
– Deve haver algo errado mestre. Eu não sou assim. – afirma Dashin, perplexo com todo esse dia e suas tragédias. Ouve os gritos e as moedas caindo nas pedras da estrada, os ossos estourando abaixo dos músculos e pele sob a pressão de seus punhos precisos. Observa as próprias mãos tremendo involuntárias.
– Dashin, meu querido afilhado, esteja certo que você nunca foi tão você quanto hoje, quando matou aqueles homens. O que está aqui na minha frente é o seu medo, a sua vergonha e confusão. Mas você ficou naquela vila, matando. Isso é você. E não deve ter vergonha disso, deve abraçar e seguir seu verdadeiro Eu. Vai precisar dele muito em breve, pois suas ações têm consequências e não espere que eu o ajude a reparar os seus erros. Muitos outros virão aqui cobrar o sangue que você derramou, e terá de lhes prestar contas. Sozinho. E longe de minha casa. Volte se puder, sempre será bem vindo. – o mestre fala mansamente, vagaroso. Ergue a cabeça somente para tomar mais kan e torna a se acomodar entre as almofadas.
Henzo pode imaginar os soldados que serão enviados, pode mesmo vê-los em sua mente, trajando muito metal e couro, tentando capturar o veloz Dashin. Nesse momento compreende e então age. Leva a mão ao cabo da katana sob o suporte à sua frente sem hesitar. Ergue-se e começa a caminhar rumo à saída.
– Não preciso de você Henzo, posso cuidar disso sozinho. – Dashin também se levanta e ultrapassa seu rival, marchando sobre a esteira de juta.
– Então terá de me impedir aqui, à força. Sabe que jamais permitiria que morresse longe de minha lâmina. – declara Henzo, parando ao seu lado.
Ambos se encaram sem amizade, mas com respeito. Ouvem o mestre tossir e baforar. Sem aviso Dashin torna a caminhar e Henzo o acompanha, começam a descer os mil e duzentos degraus sem pressa.
Azurack sorri abaixo de toda aquela fumaça alucinógena e relaxante.