O Inferno dos Gnomos - Parte 09

A Visita

A Manhã estava calma, o sol ainda estava tomando coragem, o dia acabara de interar sua sétima hora. Pássaros voavam cantando suas melhores composições, um cão latia com inveja, o gramado lançava no ar um calmante cheiro leve, verde, e penetrante. Tudo corria aos eixos. Menos Miphelangel, que ignorou todas essas belezas naturais, e se prendeu no quarto.

Mal dormiu aquela noite, encarando o tempo todo a Azul-Mar que se acomodava dentro de um jarro de barro amarronzado. “Convite à visita? Será que foi um sonho?” Chacoalhou a cabeça, chamando a lucidez. “Lógico que não. Olha a flor ai”. Desistiu de pensar, a cabeça ficou mais leve, Levantou-se, forrou a cama e resolveu respirar um ar fresco. Ao chegar ao humilde quintal, avistou Miphelys sentado de costas. Hoje era seu dia de folga. Era estranho ver o Irmão mais velho sem a capa e armadura. Parecia outra pessoa. Miphelangel se aproximou.

Cavalos passavam ressoando cascos, carroças saltitavam, o cachorro imundo continuava a latir, um passarinha se encolheu, o vento fresco trazia baixas vozes da rua á uma dezena de metros após a curta cerca da terra Ashwine. Miphelys, vestindo uma roupa grossa escura com uma leve seda branca saindo pelas bordas, estava pensativo, percebeu o irmão segundos depois “ah, é você” deixou escapar.

-O que foi Miphelys? – Perguntou Miph – fiz algo errado de novo?

-Não, dessa vez não – Deu uma olhadela para trás em direção ao irmão sem intenção de velo – estou apenas com saudade do pai. Preciso de um apoio.

- Eu também sinto – avançou dois passos – Achava melhor nos segurarmos com o pouco que temos enquanto os gosmentos atacam, e só depois, em segurança que o pai iria buscar o vinho.

-Vinho Cinza – Corrigiu Miphelys com uma pitada de orgulho. O Vinho Cinza era o mais prestigiado do reino. O lucro era bom, mas a carroça do pai não aguentava muito. As viagens a mais, trazia um prejuízo notável – Vinho Cinza – Repetiu.

O caçula já ia dizer algo quando escutou som de Cascos mais e mais alto. Levantou os olhos em direção. Vinha alguém numa carroça rubra e dourada, puxada por dois cavalos alta classe. O escravo-lenhador, que uma vez puxara assunto, era quem prendia as rédeas, sentado em um almofadado escuro, na parte frontal. Já entrava Terra adentro, Miphelys levantou desconfiado. Mas o carroceiro já gritava a metros “Calma Sor Miphelys, estou aqui a mando de Sor Alawyer!”. “Sor? O capitão escravista?” estranhou.

O transporte amadeirado estacionou em frente à Miphelangel na boca da casa. De perto, mais parecia uma carruagem. A porta se abriu e surgiu um pé vestido de bota caro couro, logo apareceu a calça violeta por dentro ajeitada, um cinto negro fino, uma camisa Branca de seda coberta por uma veste longa até os pés violeta um tom pouco mais escuro, Cordas douradas pregavam ambos os lados da ultima. Era assim que estava vestido o capitão, antes mal trajado. Tocou o chão e ajeitou os cabelos castanhos.

-Bom dia Sor Miphelys – Disse Alawyer desajeitado forçando ao formal. Miphelys afirmou com a cabeça – Hoje estou com pressa, não tenho tempo a perder como ontem tinha. Preciso falar a sós com seu irmão mais novo. Posso?- O mais velho ficou sem reação, pensando em o que diabos aconteceu com o escravista.

-Podemos – respondeu Miph, após o silencio deixado pelo irmão – Por aqui – Apontou para dentro da casa. E entraram.

“Como ele comprou isso?” Miphelangel escutara o irmão perguntar a um escravo antes de fechar a porta. E agradeceu por ver o mais velho perdido em pensamentos. Foi um milagre que não veio atrás saber do que se tratava. Alawyer ia analisando tudo com uma ignorante visão crítica. Ao chegar no quarto, pediu a o dono que fechasse a porta, e ele o fez e sentou-se a cabeça da cama. O capitão deu palmadas perdidas no forro buscando assustar a poeira, mas nada havia, e assentou em pompa barata. Foi ele quem iniciou a voz:

-Como pode ver e invejar – começou, estendendo os braços para os lados – Estou rico, graças a madeira prateada que me presenteou. Sou agora, o que chamam por ai burguês escravista. E... – pausou – Não preciso mais ir alem dos muros, afinal hoje chega para mim centenas de escravos. Isso tudo graças a você garoto.

O homem parecia outro. Mudara em veloz agilidade o espírito. Era desengonçado e sem jeito. O tom de voz estava mais leve, dava pra sentir até um certo conforto. Seu perfume era um doce forte, que empestava o quarto velho de Miph.

-Sim, graças a mim – soltou desinteressado – e...?

-Sim – repetiu – Por isso quero que trabalhe para mim como capataz, lhe pago bem. O que acha?

-Trabalhar pra você?

-Trabalhar pra mim – ecoou sorrindo.

Miphelangel abaixou a cabeça, gargalhou, reergueu-se e:

-Ontem você queria me jogar de comida aos gosmentos, eu ainda te deixei rico e agora tenho que trabalhar pra você?! – Não era uma pergunta.

-Hei, hei, hei – Balançou a cabeça pros lados, o capitão – Você errou em fugir. Não fui injusto com você.

-Ora, um desonesto falando de justiça – atacou.

-Desonesto? – Pediu satisfação.

-Sim capitão. Se não me engano, não se pode vender de objetos alem do reino aqui dentro sem autorização, não é? Aposto que ficou rico no mercado negro.

-Esse Reino tinha como maior riqueza a madeira prateada. Todas foram vendidas para que fossem usadas nos muros de reinos por ai perdido. E ninguém me consultou, por que devo consulta-los? – Exclamou - E não fuja do assunto, perdi escravos por sua causa, sabia?

- Eu não sou um gosmento! – Respondeu a mesmo tom Miphelangel – ou ainda não reparou?

Aquietaram-se, repiraram, o aroma do perfumado do novo burguês pairou. E então retomou a timbre sutil a conversa:

-Garoto –Vacilou na formalidade – Tenho escravos demais, já que não quer ser o capataz, lhe darei um como agradecimento.

“Eu, dono de um escravo? Só pode ser brincadeira” afundou-se.

-Quero o que estava nas rédeas.

-É seu – Pôs-se ao alto e seguiu em direção a porta. Esqueceu as cortesias – Agora preciso ir. E tenha um bom dia.

-Hei, antes de ir – se apressou Miph – Me diz, não reparou nada?

O novo sangue azul rastreou a visão pelo quarto:

-É... Precisa de uma reforma, mas não vou pagar, já tem um escravo.

-Estou falando sobre aquilo – apontou pra flor afundada no jarro.

-Ah é aquela de ontem. É bonita, cuide dela – E fechou a porta, desinteressado. Passos trilhou o ar e se foi, levando perfume que já enjoava.

“É bonita, e só isso? Um convidado que vem sem ao menos perceber o convite? Será que a presença dessa Azul-Mar faz mesmo alguma diferença?” Miphelangel se levantou, e se aproximou do jarro. Ficou fitando, as pétalas azuladas até a alma se juntar ela, se afundando, aprofundando, mergulhando naquele mar. A tirou do recipiente a fim de senti-la mais próxima, com a canhota, reparou movimentos finos como grão de areia. Deu dois toques com o indicador da mão destra e os grãos azuis se mexeram novamente nas pétalas descendo até o buraco central da flor. Queriam se esconder. “Ora, é o óleo que Lorenta banhou. Agora virou pó”. Um aroma novo lhe veio às narinas, ergueu a bela mais próximo, e encheu os pulmões com sua essência. A fragrância penetrou o olfato, se espalhou pelo corpo, amaciou o espírito. Era um cheiro forte, azedo e viciante como um desejo cego. Esvaziou os pulmões, ansioso para puxar o ar novamente, e fez. Mas agora mais lentamente para saborear melhor o prazer. Foi parar num paraíso carnal, onde a alma era pesada, mas a cobiça compensada e consolada.

Como se um raio caísse em sua cabeça, acordou, e pousou a Mar-azul no jarro com as mãos tremendo. Afastou-se de ré, e se afundou na cama. Só enxergava a flor, só estava ele e a flor no cômodo. Todo o resto do mundo sumiu, menos ele e a flor. Algo fora do comum começou a acontecer, seu coração começou a maltratar seu peito a golpes rápidos. A respiração correu em disparada. O corpo portou se rígido, paralisado e transpirava vapor frio como a neve. A mente desconfiava do que via, turvava a realidade, a alma disparou em vibração. O escuro da incerteza o engolira. A duvida subira a cabeça, mas nem para isso teve tempo de analisar, a perturbação impedira.

A sua frente as pétalas azuladas eram derrubadas por novas que cresciam de tamanho comparável a de uma cão adulto. As grandonas permaneciam saudáveis e firmes agarradas a haste verde. O vaso barrento quebrou, sem uma lógica exata. O fundo central onde se encontravam o circulo de pétalas, estava bloqueado por uma espécie de carne de cor humana vagamente queimada. Parecia costas, costas de alguma coisa. Lentamente foi se erguendo. Cabelos escuros babados a óleo azul até a orelha tampavam o rosto que lentamente se erguia. O peitoral musculoso brilhava com o melado no corpo. Da cintura para cima já era revelado os braços. Os dedos grossos e curtos eram adornados com incontáveis anéis em formato de garra á prata escura e pontuda. A banha deslizava como rio. A perna direita se ergueu e desceu sobre uma pétala gigante. O pé pavoroso e nojento se mostrava com afiadas unhas negras podres. Logo a outra perna repetiu o movimento. A criatura de quase meio metro desceu o braço no buraco escuro da Azul-Mar, agora livre. O membro afogou-se no oceano grudento e puxou duas peças de roupa que o liquido grosso se esforçara para impedir a saída respingando baba. Ergueu a cabeça, nu, e fitou Miph. Seus olhos eram puxados e escuros como o carvão. A face, seca com rugas riscando toda a pele, abriu um sorriso mirabolante com os dentes agulhados amarelados com as pontas vermelho sangue, e Lábios obscuros como a treva.

O ser se vestiu, com a roupa ainda lambuzada, cobrindo a nudez, com camisa e calça azul perverso, em extremidades adornadas a pluma negra. Puxou, por fim, um gorro e o encaixou como um elmo, deixando as orelhas pontudas e veiadas soltas. Flutuou até a escrivaninha. Abancou-se cruzando as miúdas pernas. Puxou um cachimbo do bolso, cuspiu mel morto no fornilho. Criou fogo com o indicador e afogou no mel. “Tsiiiii” Suspirou a madeira respirando chama. E com um lerdo movimento apagou o dedo em um dos chifres pequeno de madeira que obtinha na testa “Tsiii”, repetiu.

O cheiro de mel cresceu no quarto, Miphelangel estava como uma pedra. Queria se mover, mas nem um músculo oferecia elasticidade alguma. O nariz pedia socorro. Estava quase indo a dormência.

-Vossa graça, – Disse a criatura, com um riso corrompido a treva, forçando a carne enrugada como rachaduras em terra seca – Vim visitar a ti e lhe servir – A voz grossa e espinhada fez Miphelangel se levantar junto com uma lembrança.

Continua...

Pidókka
Enviado por Pidókka em 16/04/2012
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