Relacionamento quimérico
Se não existisse a apalavra ‘indiferença’ em nosso vocabulário, certamente existiria algo como: ‘estou-cagando-e-andando’.
E foi justamente essa postura que assumi quando ela me disse:
- Tô caindo fora, você não passa de um monte de merda.
- Uh... – Eu disse - Eu nunca havia me colocado nesta posição.
- Hã?
- Quer dizer, eu sempre me achei tão angelical.
- Você anda muito estranho, porra! O que há com você?
- Talvez eu seja um estranho no ninho? Há, há, há, há.
- Não me venha com essas alusões ridículas.
Ela havia tingido os cabelos de azul e raspado em derredor das têmporas, o que não lhe proporcionava a melhor das aparências numa ótica mais abrangente. No entanto, eu sempre achei aquilo muito descolado, algo diferente, não muito autêntico, porém ousado. JUNKIE.
Ela continuou:
- Talvez eu tenha me enganado a seu respeito.
- É sempre assim.
- Como?
- Assim. Todos se enganam.
- Com você?
- Comigo e com os outros seis mil novecentos e noventa e nove bilhões de pessoas lá fora.
- Bom... É isso. Pra mim chega, você é patético.
- É uma pena.
- O que foi isto?
- Isto o que?
- ‘É uma pena’. Foi um sinal de lamentação?
- Talvez.
- Hmm...
E foi com essas palavras que encerramos nosso diálogo. Ela colocou todas as suas roupas numa mochila e bateu a porta em minhas costas. Então caminhei vagarosamente até a cozinha e servi-me com uma generosa xícara de café e contei: 1, 2, 3, 4, 5, 6...
A porta se escancarou e lá estava ela, com a mochila numa das mãos e a maquiagem borrada pelas lágrimas dando-lhe o aspecto de uma viciada em heroína.
No vestíbulo, ainda soluçando, ela disse:
- Nossa história não pode acabar assim. Não vou permitir que você use de clichês comigo.
- E como...
- Sei lá, use sua imaginação. Por que não acrescenta um pouco de sentimentalismo?
- Isto só depende de você.
- O quê?! Você está bem? O único que pode mudar alguma coisa aqui é você.
- Evidente, eu posso fazer isto.
- O que acha de um baseado para expandir a mente e terminar esta história?
- Ótimo! Por que não, meu anjo...
- Cuidado com as palavras, lembre-se que elas possuem poderes inimagináveis.
- Você me desculpa?
- Pelo que?
- Nossa discussão...
- Ah... Claro! Faz parte do jogo, não é?
- Seus olhos ainda estão lacrimejantes. Seus prantos foram verdadeiros?
- Isto só você poderá responder.
- Talvez tenha sido.
- Como talvez? Você não me ama o suficiente?
- Isto só você poderá responder.
- Ah... Eu até poderia responder, mas sentir...
Ela foi ao quarto, colocou sua mochila em cima da cama, retirou o pulôver e o colocou no cabide e, por fim, lavou o rosto no banheiro. Voltou em pouco tempo, revitalizada, com um sorriso largo estampado na cara. Sua beleza era indubitável; havia algo de ficcional naquilo.
Terminei de bolar o baseado e a convidei para fumá-lo no aconchego da sala, no sofá. Ela preferiu ir até a sacada e observar os transeuntes lá de cima.
- Escuta - eu disse -, preciso confessar que sua beleza é devastadora.
- É?
- É.
- Obrigada.
Ela me passou o back e eu dei uma longa tragada.
Os carros estavam pequeninos do décimo quinto andar; o sol ainda era bastante agradável naquele momento da manhã.
Ela disse:
- Por que as pessoas precisam ser sempre tão ridículas umas com as outras?
- Leia Freud.
- Freud só me decepciona ainda mais.
- Eu acho que existe solução para nossos problemas mais obscuros, sabe? Acho que as coisas se resolvem quando nós dedicamos tempo a elas. Eu penso que circunspeção e paciência são os coeficientes da bem-aventurança.
- Você é foda, eu gosto de você.
- Obrigado... Segura o baga.
Cof! Cof! Cof!
- Me dá um abraço? – Pediu-me.
- Hã?
- Um abraço. Quero sentir sua realidade em minha ilusão.
- Ah... Claro!
Ela entrelaçou seus braços em meu pescoço e fechou os olhos. O baseado ainda estava aceso, esfumaçando.
- Você sempre usa suas personagens desse jeito? – Ela perguntou.
- De que jeito?
- De modo há estarem sempre a sua mercê.
- Qual personagem não está à mercê de seu autor?
- Eu entendo, mas qual é o sentido de ser tão prolixo e alongar tanto uma história predestinada há acabar na superfície da banalidade de histórias de amor?
- Julgas que o fim desta história acabará em sexo?
- Sim.
- Eu posso atirá-la daqui de cima e então teremos um final mais fúnebre, o que acha?
- Acho que você precisa transar um pouco.
- Agora você é quem está emergindo à...
- Cara... Lamento muito. Você é literalmente um pseudo-escritor intelectual paspalho.
- Como chegou a está conclusão?
- Olha a palavra que você usa - PAS-PA-LHO.
- Vá se foder.
- Vou mesmo! Esperar por você cansa. Aliás, eu nunca deveria ter entrado por aquela porta, nem fumado esse bauro.
- Bom, a porta ainda está lá.
- Olha só pra você! A-PORTA-AINDA-ESTÁ-LÁ! Blá, blá, blá. Por que não arruma um emprego numa fábrica de automóveis e desiste desta merda? Vá atrás de uma puta gorda e se embebeda mais; nunca gostei do seu café.
- Eu não conhecia esse seu lado.
- SEU lado.
- Oh... Tão paradoxal. Quer dizer, você ainda vive na década de 70. Eu não sou Sid Vicious, minha cara Nancy Spungen. O que acontece é que estamos na porra da sociedade líquida, fumaça, obsolescência, pouca duração, sabe?
- Olha só quanto pedantismo da sua parte, cara. Primeiro regurgita Freud, agora quer almoçar Bauman enquanto me usa para expressar sua completa desilusão para consigo mesmo.
- Cale-se! Você está quase na porta de saída do meu córtex pré-frontal.
Tudo isso fora discutido aos sussurros com ela ainda entrelaçada em meu pescoço - apertando-o cada vez mais. Ainda havia uma ponta do baseado do qual ela me passou, estranhamente pacífica, e disse:
- Adeus... Foi há última vez que você me usou. A partir de agora, por favor, mantenha-me bem guardadinha em seu subconsciente como a mais perversa das ameaças para a sua felicidade.
Então, olhando-me demoradamente uma última vez, foi ao quarto e saiu com sua enorme mochila batendo a porta em minhas costas mais uma vez. Em poucos minutos ela já atravessava a avenida movimentada com seu tradicional cigarro na mão e seus óculos escuros setentistas anti-abrasantes no rosto.