O Inferno dos Gnomos - Parte 01
Nadando contra a correnteza
Miphelangel, um jovem que acabara de interar 16 anos, saíra correndo de seu treinamento de espada em direção a Casa Negra para prestar o exame de ingresso na obra anti-toque. Muitos eram os candidatos, ter sua família no ramo religioso era um prestigio e tanto aos olhos do reino. A Casa era enorme, várias salas entoadas de cores escuras, velas nas paredes, ventos frios cortavam sobre a escuridão provocando imaginações fantasmagóricas. Mas Miph estava com tanta pressa que seu pensamento só focou em “sala vinte e cinco, sala vinte e cinco” correndo varias aposentos, até que achou.
A sala já estava muda. Todos já estavam sentados com seus mantos sagrado azul escuro, mas Miphelangel se esqueceu desse detalhe. Ainda estava com a roupa do treino, com o rosto empapado de cabelo negro chupando o suor, e a espada de madeira na cintura. O Instrutor da Casa o olhou quando chegou à porta dos pés a cabeça, com feição de reprovação, a sala o fez o mesmo. Congelada ficou a barriga de Miph.
- Miphelangel, que pensa estar fazendo? Você veio a Casa Negra, e não a uma guerra ímpia – disse o instrutor.
-Senhor, me desculpe, eu estava... – gaguejou, e o branco frequente veio à cabeça. Sabia que não tinha resposta na língua o suficiente para justificar seu atraso. Atrasar ou faltar com o compromisso a Casa Negra, que era uma das três facções interdependentes do reino, podia acabar até em morte. Miphelangel tinha que pisar com cuidado agora, mas não tinha algo à altura para se defender, então seus olhos correram a sala desesperadamente procurando auxilio, as pessoas se manteram indiferentes, mas um movimento foi feito quando alguém se levantou de sua cadeira:
-Senhor, por favor, a falha foi minha, eu que pedi a ele para que ajudasse com os cavalos e porcos hoje cedo lá nas terras do meu sangue – Disse Rouss, um antigo amigo de Miph que pertence a uma família burguesa – por honrar meu pedido, que ele se atrasou, caso isso mereça uma punição... Que seja eu o punido.
O instrutor não seria louco de punir um burguês. A burguesia faz parte da trindade (Rei, Burguesia e Casa Negra), e caso punisse causaria bastante intriga e sofreria a mão da Casa e da Burguesia sobre ele. Aqui só os pobres calam a boca.
Miphelangel se sentiu aliviado com a proteção de Rouss sobre ele, revelando isso num grande sorriso na direção do burguês.
-Ótimo Miphelangel, dessa vez passa. Por tanto sente-se e faça o exame – Miphelangel sentou na cadeira perfumada a incenso e o instrutor lhe concedeu a papelada. Citou as regras, e começou o silencio na sala, que só era quebrado pelo arrastar de penas molhadas a tinta sobre as folhas.
Miph Analisou bem as folhas, e concluiu “que sorte! foi exatamente isso que estudei ontem, isso veio de mão beijada. quando meu pai voltar de viajem, já serei parte da Casa trabalhando na obra, e calarei a boca de Miphelys que todo dia me cobra “nome”. Tsc, com irmãos, quem precisa de inimigos?”.
Decidido, molhou a pena, a tinta grudou na ponta, olhou para prova sorriu e... Deu branco! Pensar no irmão o fez esquecer-se das respostas. Se esforçou, se esforçou, se esforçou e... Nada! A questão ficava cada vez mais apertada. “Que diacho é isso?”. A visão embaçou. Ele nada mais enxergava, nem mais a questão. Precisava de uma saída, mesmo arriscada, e resolveu ir ao chute.
Foram duras horas de exame, até que terminou e o alivio veio com um tempero de preocupação. Miphelangel ainda sentado sentiu uma mão ao ombro:
- Foi bem no exame Miph? – era Rouss – Pareceu confiante no começo, mas depois perdido.
-É... Vamos ver no que vai dar. - Respondeu Miph – Tive mais um “branco” se impondo sobre mim.
Rouss coçou a testa procurando algo a dizer
–Acho que isso é insegurança, não confia em si próprio e acaba desorganizando os pensamentos, caindo no precipício. Não precisa provar nada a ninguém, Miph.
Rouss estava certo, foi pensar em provar algo, que tirou ele do foco no exame. Miph se sentia bem com os conselhos de Rouss. O burguês era um jovem de futuro, sabia sempre o que dizer e quando dizer. Fiel, honrado, sábio, flutuava sobre os problemas; Essas virtudes, o fazia ser admirado por todos: velhos, jovens e crianças de todas as classes. Possuía uma aura incrível.
- Rouss, você não pode ficar se arriscando com mentiras para me proteger, se bem que meu destino seria um tanto incerto caso você não dissesse nada – Desabafou Miph.
- É para isso que servem os amigos Miph. – disse Rouss apertando um pouco o ombro de Miphelangel – E cá entre nós, a minha família às vezes me enche com formalidades, adoro a vida solta como a sua, às vezes te invejo. Te salvando, fiz uma favor a mim mesmo. – Miphelangel já estava enchendo o peito por estar sendo valorizado - E, por favor, não se atrase mais. Preciso de pessoas como você ao meu lado, você não pode ser preso, muito menos morto.
A sala já estava vazia. Levantaram-se a foram rumo à saída lotada de pessoas de mantos azulados discutindo o exame. O sol da manhã e o ar fresco tocou ambos na saída. Ao descer a escadaria já se via lá embaixo a rua movimentada, barracas de lona, consumidores, vendedores, mendigos, mas ninguém de alta classe. A Casa Divina foi construída ali por estratégia de “pertencer ao povo”. Então esta lá, no meio do fedor, rodeada de pobres.
Rouss lançou um olhar de compaixão para a pobreza por alguns segundos, e nada disse sobre o assunto:
-E então, por que se atrasou? O treino não costuma demorar tanto – perguntou o Burguês com um sorriso cativante.
-Tive que ficar um pouco mais, questão de “honra ferida” – e Miph desviou o olho, e com determinação, olhou para a multidão entre as barracas.
- É o Bryan, não é? – disse Rouss também olhando o povo. Miphelangel coçou seus cabelos negros, com intuito de não revelar mais que isso. Mas Rouss continuou – eu já lhe disse Miph, não precisa provar nada. Ele só continua com isso, porque surte efeito em você.
Miphelangel franziu a testa.
-Miph, sou seu amigo. Suporte isso só hoje, amanhã juro que direi a meu pai para que dê um jeito nisso. Ele tem Influencia. – Pediu o burguês – Bryan é só um cavaleiro novato, não pode muita coisa.
-Bryan é a nova aposta armada do reino! – retrucou – e alem do mais, é um Alincer, uma família bem influente também. E não posso ficar vida toda dependendo de você para me manter a cabeça sobre o pescoço. E como fica a minha...
- ROOOOUSSS! – Esse foi o grito que tirou a atenção de Miph. Era Nalanda, a prometida de Rouss. Uma moça jovem, de corpo esbelto, cabelos loiros encaracolados até a cintura, e a mais desejada do reino. Quando ela passava, era impossível não ser tomado por pensamentos impuros. E ela passou correndo para abraçar Rouss, deixando um delicioso cheiro de pêssego no ar. Os cabelos dourados de Nalanda flutuaram e caíram, cobrindo ambos.
Miph, assim como alguns, olhou para moça. Foi seduzido, e logo desviou. Rouss reparou por cima dos ombros dela o acontecido, mas fingiu que não. A moça se virou para Miph, rodando seu vestido amarelo ouro, deixando claro seu decote e o cumprimentou com um incandescente sorriso:
-Oi Miph?
- Oi. – respondeu desanimado, afinal, ela esfriou a conversa e esquento o pensamento – Rouss, preciso ir.
- Miph, por favor, só hoje – disse baixo. A namorada fez cara de que algo estava sendo escondido dela – amanhã, juro que será diferente.
-Tá – Desceu as escadas “vou pensar no que disse”. Na descida ainda escutou Nalanda dizendo: “estava se metendo em algo para proteger ele de novo Rouss? Por favor, ele já é bem crescido, ele é só um pobretão e nem tem...” e o som foi engolido pela barulheira do mercado.
Rouss até que podia resolver pra ele essa situação, mas se sentia impotente tendo que sempre ser protegido. Até seu irmão, Miphelys, se tornou cavaleiro e o deixou de lado. O pouco que escutou da boca de Nalanda o feriu, mas tanto faz, ela estava certa mesmo. Ele já aceitava isso, por isso queria mudança.
Nalanda era de família pobre, apesar de tudo, linda. Alguns acreditam que ela estava com Rouss por interesse. O prometido era burguês e agora estava destinado a ingressar na área da obra na Casa Negra. Alguns até faziam piadas de que por fim ele ia também entrar na ala dos cavaleiros, ai sim, ele seria a trindade inteira. Teria três votos nos movimentos políticos do reino.
Rouss, o mestre dos movimentos sociais. Bryan, o mestre dos movimentos de batalha. Nalanda mestra da sorte, nasceu com a sorte de obter um lindo corpo, nasceu com a sorte de ter o que quiser. Ela não era mau caráter, apesar de que todos a achem interesseira. Ela realmente parecia ser apaixonada pelo Rouss, em fim ela mesma nunca percebeu o quão estrago fazia nas mentes dos que a rodeavam por causa de seu corpo suculento e perfumado. Aos doze anos já tinha um corpo sedutor, nunca sentiu o gosto de ser feia, por isso não devia ter entender a ferramenta que tinha. Rouss já tinha um fetiche por pobres, adorava ajuda-los. Isso resultou num relacionamento com uma plebeia. Talvez os dois sejam o casal mais feliz do reino de prata. E Miph pensando nisso tudo, se sentia um fracassado, andando em meia as feiras das ruas.
Fazia um calor insuportável na feira, que piorava pela lotação. Havia barraca do que procurasse no local, Carne, fruta, sementes, plantas e até de brinquedos de madeira. A barraca de plantas era a mais mal vista, algumas pessoas temiam ser bruxaria, mas mesmo assim até que vendia bem.
Miphelangel se moveu naquele labirinto de gente, esquivando daqui e dali. Esbarrou em algumas pessoas, também em um burro que vinha passando com frutas e o dono reclamou. “tsc, as frutas!”, lembrara que seu irmão lhe deu dinheiro para que levasse algumas variedades frutíferas. Enfiou a mão no bolso e tirou as moedas “Droga”, só havia três moedas e seu irmão lhe dera vinte. “Miphelys vai me matar!... Vou tentar comprar uma fruta pelo menos com o que restou”. E foi de barraca em barraca procurando uma fruta de três pratas, mas não achou de modo algum.
Se moveu lentamente até barraca da gorda, o cheiro de fruta lhe encharcou a boca e viu no papel pregado a madeira “Pêra, quatro pratas”. Pêra era a fruta mais barata do reino, e mesmo assim faltava uma prata. Miph estava com fome e já deduzia que levaria bronca do irmão. Quando a gorda se distraiu, ele pôs as moedas em cima do tabuleiro e pegou uma pêra. “Só falta uma moeda mesmo” pensou. E de qualquer forma, o que lhe esperava em casa não ia mudar por causa de uma fruta. E resolveu comer ali no meio da multidão.
Quando deu as costas para a barraca, a gorda o viu, e o empurrou. Miph foi aos tropeções para frente esbarrando nas pessoas, e caiu. “Guardas!” gritou a comerciante. Alguns dos guardas iam em direção ao alvoroço, mas um cavaleiro capa azul montado em um cavalo inteiro pediu para que ficassem, que ele sozinho iria averiguar.
Miphelangel viu as pessoas abrindo caminho, e um cavaleiro imponente e enorme, com cota de malha e elmo reluzente fechado, vindo em sua direção no meio do corredor. Miph estava paralisado e acabou de receber novamente o “branco” na sua cabeça, cada segundo era uma eternidade apertando seu peito.
-Senhor, esse pivete me roubou frutas – acusou a gorda.
-Eu não roubei – se defendeu Miph, apontou para o tabuleiro da barraca – eu deixei as... – procurou, mas não avistou as moedas que tinha deixado, e alguns moleques saíram correndo rindo enfiando algo no bolso da calça suja. “Tsc, aproveitaram a confusão e roubaram as moedas”.
Pensou em mostrar os pivetes ao cavaleiro, mas ele desconfiaria que fosse apenas um truque de moleque.
-E como conseguiu essa pêra? – questionou o cavaleiro, com uma voz familiar abafada pelo elmo – e por que carrega uma espada de madeira na cintura? Isso me parece que já estava preparado para encrencas.
As roupas sujas e rasgadas de golpes do treino prolongado do dia, não ajudavam contra o crime. E Rouss não estava ali com sua influencia e eloqüência. Dessa vez era só Miph e o problema. E a voz por trás do elmo atrapalhava seu raciocínio, que se dividia entre, se defender, e de onde conhecia a voz.
O homem desceu do cavalo, fazendo impacto no chão, levantando poeira. Era um brutamonte. Caminhou em direção ao incriminado, cada passo era a mão gelada apertando cada vez mais forte seu coração. O cavaleiro ergueu a mão á Miph que ainda estava jogado no chão, “levante-se garoto” disse. E o pobre se levantou.
-Por favor, senhor – Disse Miph, tremulo com a multidão voltada pra ele – Eu estava com fome e... – deu branco.
O brutamonte tirou o elmo, chacoalhou os cabelos negros, lançando respingos de suor, e o mundo de Miphelangel mudou. Seu olhar de medo se tornou determinação e o momento de vergonha se tornou oportunidade de recuperar a honra. Rangeu os dentes por trás dos lábios. Um sussurro de Rouss veio a sua mente, “Suporte isso, só hoje”. A voz de Nalanda “Ele já é bem crescido”. A bronca do irmão “Voce só envergonha a família”. Á sua frente estava em pé nada mais, nada menos, que Bryan Alincer. E Miph estava na mão do sujeito.
Continua...