Incógnito - Capítulo 3

Quando a noite chegou, o céu estava belo e estrelado, como se não quisesse olhar para a atrocidade que havia ocorrido debaixo de si, cintilava como lindas jóias e taças de cristal.

_Se ao menos eu pudesse tirar Janira daqui antes de ir para as minas já ficaria mais do que satisfeito, não é justo, cuidou de mim a vida inteira e não posso retribuir - Queixou-se Fawser para si mesmo enquanto cuidadosamente apoiava a cabeça da pobre mulher que já tinha pegado no sono em um amontoado de palhas e trapos.

Aproveitou o momento de descanso de Janira e foi verificar como estavam os ferimentos de Artrit, o velho havia ficado de joelhos assistindo aquela cena grotesca em que o animal se deliciava entre as pernas da mulher anojada e nada pode fazer por ela, somente assistir. Nem bateu na porta, Fawser já foi entrando e se deparou com o idoso sobre a cama, rangendo os dentes tentando controlar a dor. A impotência diante de um homem com mais recursos do que ele o fez se sentir péssimo, apenas um pobre ratinho diante de um grande gato velho.

_Chegue mais perto garoto, vem cá. – falou o velho.

_Como ela está? Conseguiu dormir? Vai ser bom pra ela esquecer pelos maus bocados que passou, e não sei se você sabe, mas logo pela manhã vira um cambista até essas terras, ele pretende escolher um dos garotos pra levar pra cidade, provavelmente vai receber educação clerical e virar um padre. É assim que fazem aqui no oeste, para mascarar a escravidão fazem uma ou duas boas ações para sensibilizar o povo, tirando assim a atenção para suas reais intenções.

_Posso te fazer uma pergunta pessoal Artrit? – perguntou Fawser com um olhar curioso.

_Pode sim garoto, o que é?

_A forma como você fala, eu sinto que você nem sempre foi escravo, o que aconteceu pra você vir parar aqui?

_Eu pertencia a um grupo de pessoas que trabalhava para a Igreja da Razão, cujo objetivo era converter os homens não lúcidos e trazê-los de volta para a ciência, eu convertia as pessoas que acreditavam em deus, aos meus olhos estava fazendo tudo de forma correta, até conhecer ele, o homem que me mandou para cá, me escravizou e depois me trocou por um galão e meio de vinho, Lyonel Hansoo, atualmente um dos sete lordes que servem o Regente do Oeste, Wayne Sandbite.

_Hoje em dia me pergunto todas as noites, de que adianta a razão se os homens pararam de agir com o coração? – perguntou Artrit a Fawser enquanto acendia um fumo.

_Esses senhores donos da razão, trouxeram a iluminação, só não pararam pra pensar que dependendo de sua intensidade a luz pode cegar, daí o homem acaba pisando por caminhos incertos, até topar com algo que não conhece, bem, talvez até conheça, mas um homem cego e com a “verdade” na ponta da língua costuma ser imutável não é mesmo? Então lhe pergunto Fawser, vale a pena abrir os olhos para a luz da verdade, e fechar o coração para as trevas da razão?

_Eu realmente não sei – respondeu Fawser cabisbaixo.

Artrit bateu com a ponta do fumo no cinzeiro, deu mais uma tragada e respondeu:

_Não, não vale a pena veja bem, tudo o que o homem entende por verdade absoluta acaba por virar apenas mais uma ferramenta para suas mãos, ele não a respeita, não é essa a finalidade da descoberta, é apenas um novo meio de se expandir, de dominar, nunca para respeitar. Antes viam deus como a verdade, o glorificaram, amaram, e com o tempo o questionaram, queriam mais, viram além dele, entenderam que dava para coexistir pacificamente sem ele, e isso trouxe imenso avanço para a civilização, originando o que conhecemos como o Reino, um ninho de escravos e putas vivendo as margens da sociedade, fazendo o trabalho pesado e satisfazendo os desejos mais sombrios de homens de “intelecto superior”, somos todos escravos da razão garoto.

Fawser sentou-se no chão e escorou a cabeça ao lado da porta do casebre, como se quisesse saber ainda mais sobre a história daquele homem.

_Você era amigo desse tal de Lyonel ?

Surpreso com o curioso interesse de Fawser, Artrit deu mais uma pitada no fumo e prosseguiu com a conversa:

_Na verdade não, eu nunca confiei muito nele, foi casado com minha Irmã Niandra, obviamente estava interessado no dote de meu pai, que já estava bem doente quando ela veio a se casar com aquele traste, e depois que ele faleceu, logo arrumou um jeito de me enfiar em uma carroça de escravos e acabou com qualquer evidencia de quem eu fui um dia. É impressionante como as pessoas podem se esquecer de você, as mesmas que me cumprimentavam todas as manhãs na feira das frutas e hortaliças, eram as que estavam apontando o dedo para mim como parricida, Lyonel subornou dois empregados e mais um lorde como testemunhas do crime que nunca aconteceu, e isso foi motivo suficiente para me jogar aqui onde estou agora.

_Meu pai na época era muito querido pela população local e pelo regente do oeste, que era o pai de Wayne Sandbite, e o caso gerou um grande sentimento de revolta, isso fez com que o status de Lyonel aumentasse perante a sociedade, sendo assim nomeado Sor Lyonel Hansoo o Justo. Da pra acreditar nisso? Eu não vi, mas dizem que o rei em pessoa o chamou até a corte para nomeá-lo.

_Então deixa eu ver se entendi bem, você ta aqui porque foi acusado de ter matado alguém importante?

_Isso ai garoto. Isso ai.

Passou um tempo, e Fawser cansou de respirar o fumo que Artrit insistia em acumular dentro daquele pequeno cômodo, e resolveu sair de lá. Estava bem abatido, sua mente o levava para fora daquela prisão que eram aquelas terras, imaginava como devia ser as ruas infestadas de gente, o mar esverdeado e suas ondas arrebentando nas paredes de pedra nos limites do reino, a Academia do Intelecto Superior, onde estudavam os grandes intelectuais, candidatos a servir a Santa Igreja da Razão sejam como padres, templários ou até quem sabe futuros Bispos.

Havia trabalhando tanto durante as ultimas semanas que até havia se esquecido que tinha um amigo com quem costuma brincar próximo ao velho celeiro. Dois dias antes do fato ocorrido com Janira, Fawser havia trocado tapas e pontapés com seu parceiro por causa de um velho elmo de combate que o Senhor daquelas terras havia jogado fora por estar com marcas de ferrugem. Era um bom elmo afinal de contas, usado por templários nas famosas Guerras da Luz e da Escuridão que Artrit algumas vezes lhe contava quando era mais novo, porém no final das contas o elmo acabou ficando com seu amigo.

Um sentimento de culpa acabou levando Fawser naquela noite a ir até o celeiro, seu amigo vivia lá, no caminho ouvia o uivo dos lobos além das cercas, o pio de corujas nas baixas colinas mergulhando em um vôo rasante para pegar cobras e ratazanas, alguns sapos coaxando perto da lagoa levando suas crias nas costas, tudo isso formava uma sintonia única da fauna daquele lugar, uma das poucas coisas belas que haviam por ali, mas isso tudo logo acabou, um som grave interrompeu a orquestra da natureza, uma risada histérica, Fawser havia chegado ao celeiro.