Incógnito - capítulo 2

Treze anos se passaram, entre uma plantação de romãs corria um garoto segurando um pequeno boneco de madeira queimada, provavelmente algum pedaço de carvão talhado até assumir alguma forma.

Uma mulher perseguia o garoto gritando para que este parasse apenas por um momento:

_Fawser! Venha comer! A comida já está gelada, se você não vier logo darei de comer aos cachorros e você vai ficar com as sobras!

Era uma mulher na casa de seus trinta e cinco anos, pele morena cabelo cortado na altura da nuca e o corpo marcado de hematomas recentes que podiam ser notados devido a seu vestido verde musgo estarem com alguns rasgados nas mangas.

_Por que insiste em chamar esse garoto de Fawser? Disse um homem que estava deitado embaixo de um pé de árvore descansando de seu trabalho na colheita de romãs.

_Janira, ele não passa de um escravo assim como nós, Fawser é nome de nobre, isso pode dar problema pra você depois.

_Eu não me importo Artrit, é um nome bonito, isso não deveria incomodar os grandes não acha?

Artrit já tinha setenta e dois anos, e já havia vivido muito pra saber o que incomodava e o que não incomodava os nobres que viviam ao Leste do Reino.

_Pessoas esnobes é o que eles são Janira, vivem pensando apenas em seus próprios interesses, sorriem pra todos, cultivam uma imensa fábrica de escravos que põem para trabalhar nas minas, nas plantações ou até mesmo vendendo os corpos em festas e bacanais intermináveis. E em breve, bem, você sabe o destino do garoto, ele vai para as minas do lado de fora do Reino, e lá ficará comendo pó de minério até sabe-se lá quando.

Percebendo que falou demais, Artrit foi tentar consolar Janira, mas foi ignorado completamente ao perceber que Fawser se aproximava ansioso por fazer sua refeição antes que esta fosse dada aos cachorros. Fawser era magro, possuía cabelos e olhos negros como a noite, até assustava um pouco quem não o conhecia, mas para Janira e os outros escravos era apenas um garoto solitário.

Fawser vivia nas imediações da casa do escravista que o comprou, cuidando de algumas galinhas, carneiros e tudo mais o que dessem pra fazer, mas sabia que no próximo ano o seu destino era ir para as Minas para além do Reino, trabalhar lá até que sua vida deixe esse mundo. Suas noites eram tomadas por pesadelos medonhos, que criaturas bizarras ele poderia encontrar do lado de fora do Reino? Do lado de dentro ele estava seguro, mas não conhecia nada lá fora, estava a mercê do desconhecido, alem disso iria trabalhar nas minas, raramente vendo a luz do dia, sua vida seria a completa escuridão, onde seria questão de tempo até que fosse completamente transformado em algo muito pior.

Numa bela manhã, o escravista havia saído para a cidade para tratar de seus negócios e pediu para que um homem chamado Deston tomasse conta de suas terras, ele era alto, careca e consideravelmente obeso, e isso fazia com que suas roupas fossem bem curtas e suadas, apenas um par de botinas e uma calça colada ao corpo, cobrindo o seu peito havia um colete de couro velho. Deston sempre olhava para os escravos com nojo, eram em sua maioria mendigos ou assassinos, mas esses últimos eram sempre enviados para as minas junto com os garotos mais novos.

Enquanto vigiava a plantação de romãs, ele notou o pequeno Fawser correndo por entre as mesmas.

_Isso é hora de você ta correndo por aqui garoto? Vai cuidar de arrumar alguma coisa pra fazer agora!

Janira vendo a cena foi de encontro aos dois caindo de joelhos na terra macia.

_Ele é só uma criança, não o machuque! Por favor!

Deston fitou com atenção o olhar de desespero da mulher, e por um instante ele entendeu o que ela estava sentindo, não podia fazer-lhe mal algum, dentre todas as pessoas que ali estavam escravizadas, essa mulher era a única que não pensava apenas em si própria, mesmo com tudo de ruim caindo sob a cabeça dela, mesmo assim não se importou, veio acolher o pobre garoto.

_Só trate de manter ele ocupado, não quero o patrão reclamando no meu ouvido quando ele chegar,tenho problemas demais tendo que cuidar de todos vocês.

No fim do dia enquanto ia buscar um pouco de água no poço mais próximo, Deston notou o garoto Fawser gritando o seu nome enquanto se aproximava, e virou-se pra ver do que se tratava.

_Eu só queria agradecer o senhor por não ter me batido hoje mais cedo, é muita bondade da sua parte.

Deston olhou com desdém para Fawser, um olhar digno de pena.

_Não tem porque fazer você sofrer antecipadamente garoto, as coisas que você vai vivenciar nas minas, eu não queria nem para o pior dos meus inimigos.

_É tão horrível assim? Digo, eu já ouvi historias, os escravos falam muito de lá, dizem que os homens usam um pano pra cobrir o rosto por causa das intoxicações que pode ocorrer nas profundezas das minas, mas não sei até que ponto eles dizem a verdade senhor. Dizem que alguns padres também são enviados as minas para que a razão nunca falhe na cabeça dos homens, que eles sempre fazem questão de lembrar que não existem milagres, não existe nada de bom além do Reino.

_É a pura verdade garoto, se você sair do Reino, só vai encontrar a escuridão, enganadores, pessoas que agem e falam sem ter como provar o que sai de suas bocas. Por isso quando estiver nas minas, nunca saia de perto dos padres, eles serão sua luz, seu caminho.

Sem querer parecer inconveniente, Fawser fez que entendeu toda aquela conversa e voltou para seu barraco, uma mistura de pedras e madeira. Deitou a cabeça em uma estopa de palha, fechou os olhos e ficou pensando:

_Como pode alguém decidir o meu futuro por mim? Isso é o certo? Sempre vejo o dono dessas terras indo onde ele acha melhor, nada o impede de fazer o que vem na sua cabeça, isso é ser livre? Não conheço nada alem das terras dele, e já vou para as minas? Não posso, isto é errado.

E com esses pensamentos Fawser adormeceu, tentando imaginar como seria um mundo onde ele fosse livre de todos os dogmas, onde as idéias lançadas em sua cabeça não mais seriam do que opiniões alheias, e não regras.

Enquanto sonhava os seus sonhos utópicos Fawser sentiu-se sufocado, uma sensação de que todos os seus desejos estavam indo embora com as águas do oceano, quando se deu conta do que realmente estava acontecendo percebeu que seu barraco estava debaixo de uma imensa goteira que insistia em derramar toda a água sob sua cabeça, estava chovendo como nunca choveu. Ainda com um pouco de sono ele viu que não havia nenhum escravo na plantação de romãs naquela manhã, apenas o senhor daquelas terras dentro de uma carruagem coberta conversando com Deston, parece que ele acabou de chegar, e expressava estar bastante nervoso.

Desceu de sua carruagem e acenou para que Deston fosse até o barraco de Janira, não dava pra ouvir direito a conversa devido ao barulho da chuva, mas quando Deston retornou, trazia Janira junto a ele, e em seguida a colocava dentro da carruagem.

Fawser curioso pra saber o que estava acontecendo, saltou pela janela e foi andando lentamente por entre os arbustos próximo das cabanas, até que chegou aos portões da casa do seu Senhor, e até que não foi tão difícil pular por cima dele. Aproximou-se lentamente da janela para ouvir a conversa dos dois homens dentro da casa.

_Mas meu Senhor, não acha que seria melhor comprar uma cadela? Os cachorros que o senhor mantém aqui pra vigiar a casa iriam gostar muito mais.

_Hora Deston, e que graça teria? Quero ver a reação dessa vadia sendo penetrada por todos os meus cachorros.

Fawser entendia aquilo que estava pra acontecer, e via que Deston estava tentando reconsiderar a idéia terrível de seu Senhor, por a mulher que o tratou como filho para tendo relações sexuais com malditos cachorros, sim, sua cabeça estava pra explodir naquele momento.

Quando se virou pra tentar chegar próximo a porta, deu de cara com Artrit mastigando seu fumo.

_Ta precisando de alguma coisa garoto? Ta perdido ?

Ao perceber o que Fawser vigiava, tratou de puxar o garoto para trás o mais rápido possível enquanto um frio subia pela sua nuca e voltava vibrando até suas pernas.

_ Trata de ficar bem quieto, to indo tirar a atenção dele, dizer que tem alguém importante no portão principal querendo entrar.

Fawser nada disse, apenas tremia de nervoso enquanto suas lagrimas regavam a terra e um sentimento de impotência tomava conta de todo o seu ser.

Dentro da casa, Deston tentava manter Janira quieta enquanto esta não parava de se debater, seu senhor trouxe de um cômodo dos fundos uma criatura de pelos escuros e olhar feroz, por pouco podia se falar que era um urso e não um cachorro. Artrit vendo a cena, parou enquanto ia em direção a porta de entrada, sabia que seu ato traria conseqüências nada agradáveis para sua pessoa, mas o que poderia fazer? Janira sempre foi como uma filha para o pobre homem.

Enquanto Deston tentava segurar Janira, ouviu a porta bater, e antes que se incomodasse seu Senhor já havia ordenado que um dos escravos que cuidavam das tarefas da casa abrisse a porta pra ele. Ao ver que era Artrit, Deston fitou seus olhos no velho enquanto pensava:

_ Já to tentando de tudo velhote, não vai estragar agora, não mesmo!

Artrit tirou seu chapéu e gaguejou:

_Me...meu Senhor, é que... tem alguém importante lá fora que quer falar com o dono dessas terras.

_Hora seu puto, não vê que estou ocupado? Mas quem é? Esse individuo não possui nome? – Pestanejou o senhor.

_ É que...é o Bispo do leste, ele quer falar sobre as minas meu Senhor, sobre alguns padres que querem retornar pra Igreja. – argumentou Artrit.

O senhor daquelas terras passou a corrente de seu cachorro por entre um gancho preso a uma parede revestida de madeira enquanto este não parava de babar.

_Deston, volto em alguns instantes, segura bem essa vadia.

_Você sempre foi um velho muito prestativo não é? - Disse o Senhor daquelas terras.

_Só... só faço o que me pede meu senhor, eu só obedeço.- respondeu Artrit temeroso.

Da cintura do Senhor, podia se ver um porrete de ferro maciço, lentamente sendo retirado de suas pregas.

_A idade deve ter feito você esquecer uma coisa velho, o bispo do leste não aparece nas terras de ninguém sem antes enviar uma carta formal ou se não um mensageiro.

Os olhos de Artrit se arregalaram, urina descia por entre suas pernas, lagrimas começavam a sair de seus olhos, havia perdido o controle da situação e sabia que seu Senhor tinha conhecimento de suas intenções.

Lentamente o medo fez com que ele se agachasse e implorasse:

Ela...hunf! num pode, hunf! Ela não! Cuido desde que era bem pequena meu Senhor.

_Você mentiu pra mim velho – disse o Senhor com um sorriso nos lábios.

Um golpe cru e violento fora desferido nas pernas do pobre homem que estava agachado, e um grito de dor foi ouvido nos limites daquelas terras. Ouvia-se um lamento, os lábios de Artrit tentavam dizer alguma coisa, mais nada saia, apenas lagrimas e urina.

_Agora seu velho mentiroso, fica ai onde está e observe enquanto o primeiro cachorro arregaça com essa porca!-pestanejou o senhor.

Durante o dia inteiro que se passou, Deston se lamentou, Fawser e Artrit choraram, o Senhor riu e Janira nada disse, apenas agüentou os momentos de humilhação sem demonstrar fraqueza alguma. À noite quando o Senhor já dormia, Fawser consolava a cabeça de Janira em seu colo:

_Eu vo tirar você daqui, vo fugir, vamos pra fora, eu, você e o Artrit – dizia Fawser enquanto alisava a cabeça de Janira.

_ Pra nunca mais voltar!