ALFACE – O BICHEIRO

* Do Livro - A ESQUINA DOS CONTOS

** leia outros causos do ALFACE

A rua é o ambiente de trabalho de muitos seres diferentes , pessoas por assim dizer extravagantes e que fazem da convivência efêmera com seus próximos um arco de relações que jamais chega a constituir uma intimidade e tampouco fica no limbo das indiferenças . São relacionamentos literalmente superficiais e que, portanto ,não geram grandes expectativas mas também inspiram poucos riscos.

Um dos sujeitos que passava pela “Esquina dos Contos” era simplesmente conhecido como “Bicheiro” , porque era o “apontador”do jogo do bicho e o percurso à caça das apostas de seus clientes previa a passagem pelo ponto de encontro da confraria, onde ele sempre parava para uma conversa rápida, conquanto a turma não era dada ao jogo , além do que os raros níqueis que forravam os bolsos possuíam destinações muito mais certas do que o imprevisível investimento na “timba”.

O bicheiro era um sujeito muito comunicativo e não fazia o mínimo esforço para esconder um bloquinho de papel pardo e a caneta na mão, cuja palma sempre estava manchada de preto pela cor do carbono que utilizava para deixar registrada a cópia da aposta numa improvisada “segunda via” do jogo.

Era tudo tão precário que a confraria da esquina sempre brincava com o bicheiro acerca da seriedade de sua empresa . Alface sempre primava por lançar suspeitas quanto ao pagamento dos prêmios aos eventuais ganhadores e dizia :

- “Mas tche, esse pedaço de papel garante alguma coisa para quem aposta ?”

O bicheiro sem rodeios e com um bom humor que desprezava a repetição da mesma resposta em quase todas as oportunidades sempre dava a mesma resposta:

- “Gurizada, o jogo do bicho é uma das coisas mais sérias neste País, se ganhar eu mesmo sou o encarregado de levar o dinheiro do prêmio”

Ele sustentava que durante todos os anos em que trabalhara recolhendo apostas do jogo do bicho jamais ocorrera de algum vencedor não receber seu prêmio. Os banqueiros do jogo cumpriam com rigor uma espécie de código de ética da atividade. Pagar os vencedores é manter a credibilidade de uma atividade ilícita e trata-se de uma regra ainda vigente nos dias atuais.

Como todo ser que utiliza a via pública como lugar de trabalho, o Bicheiro não desprezava uma das mais primitivas mídias para divulgação do produto – a gritaria – tanto na chegada quanto na saída ele berrava a palavra “Quinela” !!

Acontece que na língua espanhola, com forte influência nas regiões de fronteira com o Brasil, onde se fala uma espécie de dialeto batizado de “portunhol” – uma mistura bagual do português com o espanhol – a palavra ‘quinela” é o nome dado pelos castelhanos ao jogo do bicho , algo que é de conhecimento público nessas regiões fronteiriças.

Era uma época tão pura e tão inofensiva que a imagem daquele sujeito com os bolsos repletos de dinheiro circulando livremente pelas ruas seria algo utópico em tempos contemporâneos , onde os bandidos assaltam e matam pessoas nas ruas por muito menos riqueza do que aquela que o bicheiro carregava em seu andar faceiro e ostensivo.

Uma única situação causava um certo desconforto no bicheiro e provocava sua saída mais rápida da Esquina dos Contos e era quando algum dos membros da confraria falava na “propina” paga aos policiais. Em certa ocasião, Alface perguntou quanto ele pagava ao guarda que ficava na outra esquina da escola, ao que ele respondeu:

- “Isso é um assunto que não se fala” ...

E o bicheiro em impetuosa meia volta deu partida à sua marcha, abrindo a gritaria :

- “Quinela – quinela , hoje tem quinela !!!