_As águas de Pannap
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O jovem Nappan estava deitado sob o mesmo céu que vira nascerem seus antepassados. Centenas de milhares de pingos de vela beijavam-lhe as costas, no ritual da emancipação. Ele estava com braços e pernas abertos, queixo encostado no chão, e com as mãos sangrando, segurando firmemente as espadas de Creso, o Deus ancestral.
Acreditavam os antigos que os pingos representavam o furor da puberdade; a crosta branca, ressequida após o contato com a pele virgem dos mancebos expostos à dor, representaria o reservatório da longevidade sexual do incipiente guerreiro – quanto mais espessa a camada mais vida amorosa, mais vigor. O primeiro corte, resultante do contato com a pele, dependia da coragem do guerreiro, mas a espessura da camada deixada pelas velas era determinada pelos Deuses – a eles cabia o cessar da enxurrada de pingos.
Quando o iniciante morria durante o ritual, o povo era consolado pelos deuses. Atribuíam a morte à crença: naquele corpo havia vida indigna de descendência. O jovem morto era enterrado em cova rasa que exalaria por vários dias, horas a fio, fétidos odores do malogro da morte prematura...
Não havia em Creso nenhum manco, nenhum cego, nenhuma anomalia. Os filhos hígidos[1] sobreviveriam – essa era a Lei. Restava aos fracos a morte e o conforto da rejeição; aos fortes, em sobejo, pertenceria o ingênuo e genuinamente puro lado da luxúria.
Onde há ritual há poder. Onde há poder há cobiça. Assim, onde há ritual há cobiça. Era o silogismo da vida em Creso. Para eles, a ambição possuía rituais, mascarando a realidade e dando ao chefe a persona que mais bem aprouvesse na condução da verdade. A verdade histórica, recontada ao longo dos tempos, nem sempre retrataria a realidade real, pois os narradores transmitiriam aos descendentes os fatos vistos pelas objetivas dos vencedores.
Nappan cerrava os dentes. Rangia languidamente. Os cabelos pendiam, pesados. Estava suado, mas demonstrava abnegação, frieza, perseverança e resignação. Eram cabelos negros e lisos, contrastando com a limpidez da intenção que o levara até ali. Todos o observavam. À frente dele, imóvel, talvez em inconsciente oração, estava a jovem Pannap, pretensa primeira esposa do jovem guerreiro – as pretendentes assistiam ao ritual de emancipação. Se o aspirante morresse, eram levadas para o templo da purificação onde pediriam a Creso novo e corajoso esposo.
Os jovens que recusavam o ritual eram banidos de Creso.
Se por três vezes a virgem posta no ritual da emancipação visse seu pretendente sucumbir diante das velas da libido, era tida como bruxa, sendo enterrada viva ao lado do cadáver do fraco guerreiro. Após o enterro, os Deuses-Do-Outro-Lado a esperariam, ansiosos, para nela cultivarem as sementes da fertilidade. Só então ela retornaria a Creso, purificada e pronta para o enlace matrimonial.
Na vala, a pretensa bruxa era jogada antes do último infeliz malogrado, de costas para o cadáver – o fraco guerreiro ficaria com a face voltada para o céu, protegendo a virgem, que fora incapaz de possuir, de outros inférteis moribundos; estava, assim, garantida uma tranquila caminhada para a viajante.
Exatamente 244 luas descerraram as cortinas ao longo da existência de Nappan, contadas no sistema hexanário de Creso. Foram luas esplendorosas como a vida de Nappan merecia.
Nappan foi homem experimentado. Respeitou as etapas da vida, sem perder, entretanto, o viço do verdadeiro reprodutor. Deixou vasta prole. Pannap viveu pouco menos que Nappan. Ao romper os limites entre vidas, 205 luas depois de nascer, revelou ao amado, pouco antes de partir:
– Em todas essas luas que vivemos juntos, nunca houve nenhum sofrimento. Estou partindo, mas levo comigo a chave do aposento que abrirá nossa morada quando você chegar. Não demore, estarei esperando!
Pannap teve que esperar por 35 luas...
Finalmente, as velas deixam de surrar as costas de Nappan. Ele sobreviveu. Pannap estava radiante e feliz. Cuidadosamente, ela retira os pingos das velas que avermelharam a pele do corajoso marido. Ele agradece o carinho da amada, ergue-se e a leva para o Templo-da-Primeira-Vez, localizado no cume da montanha das águas borbulhantes. Na montanha, há um córrego de águas vermelhas, quentes, que representa os primeiros amores de todas as filhas do Templo de Oserc.
Horas depois, as águas se avolumam, formando ondas vivas, indicando que mais uma filha de Creso virou mulher. Eram ondas assustadoras, do tamanho de 5 homens e 2 mulheres... Naquela noite, por 12 vezes, as águas do córrego emitiram vibrações... E as águas revoltas trouxeram muitos peixes, milhares deles, pescados com a mão. Houve banquete. O povo estava em sinestesia. Instalou-se a fartura e a tribo se regozijou com o amor de Pannap – ela era guerreira das águas, filha da Maré e protetora das ondas e das curvas, pois conseguira trazer o abundante alimento durante os urros de amor. E fora por causa das curvas de Pannap que Nappan provocara tantas ondas no córrego das águas borbulhantes.
Ao amanhecer, Nappan se levanta no primeiro crepúsculo e se exibe, desnudo da cintura para cima, mostrando a todos os curumins os vestígios dos pingos das velas, agora enxertados pelos sulcos profundos esculpidos por Pannap. Durante a luta corporal renhida, as mulheres, quando hipnotizadas pelo transe da entrega, rasgam-se na primeira vez, mas também rasgam o varão, esculpindo marcas no corpo dele que, depois de cicatrizadas, desnudam-lhe a alma – há também no homem as marcas da iniciação que o olfato das fêmeas capta com a mesma segurança com que o fazem as farejadoras de caça! Ao final, ambos sangram e a volúpia, arrefecida pelo suor derramado na pele, incrusta-se no espírito para sempre qual nácar em ébano.
Os curumins, todos eles, um a um, tocam as cicatrizes recentes que exorbitam no corpo de Nappan e sonham... Enquanto isso, as meninas de Creso observam, silentes... Será que sonham? Se elas sonham, que tipo de devaneio lhes estaria invadindo a intimidade agora?
Crato-CE, 5 de março de 2011.
00h37min
[1] Sadios, saudáveis.