Zé Honório tem seus trunfos

1/12/2001

Zé Honório tem os seus trunfos; como cabra macho nordestino. Fugido das caatingas há muito tempo, guarda com zelo uma mochila surrada, um facão de mato e umas perneiras de couro cru para se proteger de espinhos, no caso de ter que fugir corrido. Fica tudo num baú velho, junto com uns santinhos da campanha eleitoral de 1950; vote no brigadeiro, é bonito, é solteiro, ao que ele anotou, com a sua letra de recém alfabetizado: e talvez seja veado, igual ao J. Edgar Hoover... Zé Honório sempre detestou esses medalhões americanófilos da TFP, que tem tudo para dar o rabo para um caboclo suado. E ele, que é quase um caboclo suado, pensa indignado: não como, não como de jeito nenhum, mas posso dar umas boas porradas. Outro tipo que ele detesta, são esses ex-comunistas arrependidos, que se transformam em direitistas radicais, usando todo o artifício raciocinante das esquerdas, o mal afamado materialismo dialético histórico nas suas argumentações contra a esquerda, os Lacerdas que querem mostrar serviço, os dedos duros que estão nas folhas de pagamento de tudo quanto é ci ai ei do mundo, os provocadores e polemistas que se vendem barato, os deformadores da opinião pública que se albergam nos jornais da grande imprensa. Ë essa a indignação que o levou a escrever as suas colunas de semi-alfabetizado, sem cultura, mas com muita agudeza de observação.

Quando o conheci era pedreiro em Volta Redonda. 1979 estávamos participando de umas reuniões na igreja, sobre a fundação de um novo partido político. Admirava a figura de Lula, o torneiro mecânico que perdeu o dedo, como o Mimi o metalúrgico do filme “a classe operária vai ao paraíso”, ele que conseguiu coordenar as assembléias nos campos de futebol de São Bernardo, e fazer as primeiras greves de grandes proporções na ditadura militar. Corria o boate de que Lula era uma espécie de Cabo Anselmo dos metalúrgicos. Fiz questão de levar o Zé Honório na reunião para escuta-lo dizer em público, o que ele já me havia dito informalmente: “esse partido é um capuz de cadeira elétrica!” Nunca entendi bem o que queria dizer isso, até que, trinta anos depois, assisti a um filme em que se mostrava com realismo uma execução elétrica. Vi o guarda colocar um capuz preto na cabeça do executando, uma abertura para o nariz, outra no topo do crânio, o lugar onde se colocava uma esponja encharcada de água, para que a corrente elétrica fluísse mais facilmente, quando se ligasse o fio grosso. De qualquer modo, ninguém entendeu o que ele queria dizer, houve sorrisos de compreensão com a ignorância do companheiro pedreiro. Devia ser outro daqueles ditos clássicos que corriam pelas esquerdas, tal como, dar uma no prego e outra na ferradura, ou o salário cresce pra baixo, como rabo de cavalo; ou botar a raposa para tomar conta do galinheiro, ou dois passos para frente e um pra trás, ou proletários do mundo, uni-vos... Frases cheias de sentido, capazes de serem recebidas com um pequeno sorriso nos lábios de quem escuta pela vaga sensação de que existe uma sabedoria oculta sob aquelas palavras, mas que não importam muito para quem está comendo o pão que o diabo amassou.

Então ali estava, um operário verdadeiro, e não um filhinho de papai da classe média, querendo se apropriar de um pouco de poder através da massa de manobra que são as massas, dizendo aquelas frases demolidoras. “Capuz de cadeira elétrica. Pichação pra que meu filho, qual é o produto que você quer vender? Olha só, vocês não tem nada e querem fazer pichação? Só se for para ser preso. Deixa de ser bobo, garoto”.

Maldade, não é? Leva-lo na reunião para esfriar um pouco os ânimos daquela moçada. Mas levei. Afinal, o partido dos proletas aceitava qualquer um, pouco importando se era um agente secreto ou ex-nazista.

Estávamos em Volta Redonda, um dos poucos municípios do interior que era de segurança nacional por decreto da ditadura militar.

Out/1979.

Qual não foi a minha surpresa quando soube que o próprio Zé Honório estava preso. Foi surpreendido em flagrante, fazendo, exatamente, uma pichação, coisa boba, como o povo unido jamais será vencido. Saiu três dias depois, já era conhecido pelos funcionários da polícia política. Disse que só foi para ajudar uma menina em que estava interessado. Foi para segurar a lata de tinta, enquanto ela segurava no pincel. Acho que estavam tirando um sarro de encontro ao muro recém pichado, quando o vigia os pegou. Entraram na delegacia com as caras e os braços sujos de tinta vermelha, isso é que é bandeira!

Da aventura restou um poema feito na delegacia, ele o operário da construção civil metido a escritor proletário, o Máximo Gorki dos trópicos.

Estava pintando de vermelho

Um muro horrível

que não era um paredão

Estava dizendo

pro povo que ele unido

Jamais poderá ser vencido,

se vencido ele já não estiver

Quando olhei o seu cangote lindo

Os seus cabelos,

e vencido fui pelo seu charme

Não resisti e sujei

o seu vestido de vermelho

E me molhei no seu perfume

E mergulhei em suas coxas

Ai meu Deus que coisa boa!

Larga o pincel, derruba a tinta

Vamos rolar por esse muro, morena

Vamos fazer dele nossa cama,

Cama, cama , cama sutra

Sutra, sutra, vamos dar outra,

Outra, outra, sim morena.

Não sabia que o vigia

Era seu pai, “seu” Aurélio,

“Seu Aurélio”: Sou eu o Zé,

é ela, Maria,

E seu Aurélio, o dono da mina

Que é também lá do sertão,

Me mandou calar a boca,

E disse: está preso, safado!

Direto pro camburão.

E assim fui preso três vezes

Pelo pai,

pela filha,

e pelo Espírito maligno

Que castiga lá de Brasília.

Porque estava pintando de vermelho

Com as letras grandes do teu nome:

Maria, do povo, do unido,

Do vencido, do perdão.

Maria do paredão.

- Zé Honório – eu disse – esses versos são horrorosos. Não tem métrica nem rima!

- Você nunca ouviu falar em versos livres? Comigo é assim, eu gosto tanto de liberdade que até os versos tem que ser livres.

- Você já mostrou para a Maria?

- O pai dela está de marcação cerrada. Não posso nem chegar perto. É meu cumpadre, mas me detesta desde o dia em que me pegou com a menina.

- Também você tem idade para ser pai dela. E você sabia que o pai dela era o seu Aurélio. Você é safado mesmo, seu Zé.

- Safado nada. A garota gosta de mim. Qual é o problema?

- Depois ela pega uma barriga, e você foge pra São Paulo.

- Fujo nada. Sou muito responsável. E ela não vai engravidar porque é esperta, politizada, sabe Marx, Engels e Lênin melhor do que eu.

- E onde foi que Marx, Engels e Lênin ensinaram sobre métodos anticoncepcionais, sua besta. Eles não sabiam nem que trepar faz filho. Os caras só entendiam de enrolar o povo!

- Pêra aí, você está exagerando. Vou acabar me desentendendo contigo. Uma coisa é errar, outra é ter má fé. E eles tinham boa fé pra cacete. É só ver o que Marx escreveu sobre a comuna de Paris. Falar depois que a vaca foi pro brejo é muito fácil, coisa de intelectual impotente.

- Está certo, eu corrijo. Os caras entendiam pouco. Puderam o que fizeram, coitados.

- Entendiam muito. Mas o inimigo era muito forte.

- Era e é. E se não entendiam isso, entendiam pouco.

- Entendiam muito. Só não conseguiram segurar o povo. Cederam pra não serem atropelados.

- Nós é que fomos atropelados.

- Você merece, bestalhão!

- Você também. Mas a garota, não!

Zé Honório me olhou e disse sem emoção:

- A garota é minha. Fica comigo.

Mas a garota não ficou. Zé Honório teve que fugir da polícia. Escafedeu-se. Depois soube que estava escrevendo. Fez um romance. Inédito, como muitos.