Crônicas Ébrias: O Mercenário e a Meretriz - Capítulo 1.
CAPÍTULO 1: Fuga
Saiu de Ticulis às pressas. Já havia recebido uma boa quantia adiantada, mas contava com o resto, que nunca veio. Teria forçado o taverneiro a lhe pagar o que havia prometido, mas não havia tempo; a guarda estava atrás de Jethro, e em breve todo e qualquer filho da puta portando uma espada também. Sua cabeça em pouco tempo valeria um preço suficiente para que ele próprio se interessasse em entregá-la.
Gastou grande parte do que tinha em um cavalo. Não chegou a negociar, apenas buscou por aquele que fosse o mais rápido, tendo que confiar mais em seus olhos do que nas palavras do vendedor, um homenzinho carrancudo de cavanhaque espetado com vestes simples que parecia ver na pressa de Jethro uma boa oportunidade para o lucro. Teria parado para pegar suprimentos para a viagem, mas os guardas estavam cada vez mais presentes nas ruas, e precisava sair da cidade antes que anoitecesse. Se fechassem os portões, teria que passar mais uma noite ali, e essa seria muito provavelmente sua ultima em liberdade.
Que diabos fora fazer dentro da Cidadela, afinal? Havia passado a maior parte do seu tempo em Ticulis, a capital de Durdia, fora de suas grandes muralhas, e fora justamente agora, quando menos lhe proporcionavam segurança, que se encontrava a mercê delas e de seus muitos soldados.
Jethro se lembrava de ter recebido as moedas do taverneiro Torbust, um homem de olhos negros apertados e testa saliente, que costumava banhar-se com óleos de perfumaria. Ambos estavam embriagados, e fecharam o acordo em sua residência. Normalmente, eram companheiros de bebida na taverna de Torbust, próxima a um dos portões de entrada de entrada da Cidadela, na parte de fora, mas naquela ocasião bebiam na residência dele, dentro das grandes muralhas.
Deveria ter esperado mais tempo, mas a bebida o havia deixado corajoso, como costumava fazer, e acreditava não estar alterado demais. Era um trabalho fácil, rápido, e que traria o dobro das moedas que ele já havia conseguido. Saiu cambaleando do casebre de Torbust convicto de suas capacidades e com a certeza de seu objetivo. Se o taverneiro havia feito alguma objeção, passara batida para Jethro.
Aproveitou a noite e matou o sujeito que deveria matar. Não houve classe naquilo – ele não era de assassinar desconhecidos – mas sim uma grande barulheira. Lembrava-se de ter arrombado a casa de madeira no Distrito Comercial com um chute, sacado sua espada e gritado o nome da vítima, para que descesse e lhe desse um duelo, para morrer com honra.
Pensando melhor, talvez estivesse sim alterado demais, mas agora já era tarde.
Descera o homem gordo e careca pelas escadas, vestindo seu manto claro de dormir cheio de gravuras e enfeites, olhos arregalados, sem entender o que acontecia em sua residência. Jethro, ainda assim, insistia para que ele pegasse algo para se defender.
“Vamos, não tenho a noite toda!” – Dizia o mercenário, cambaleando um passo a frente e ameaçando-o com a espada brandida. O homem, apavorado, pegou um gigantesco candelabro dourado no canto da sala e colocou em sua frente. Jethro estava rindo da situação, bêbado como nunca, mas então percebeu uma voz atrás de si, na abertura da porta que havia quebrado.
“Um ladrão!!” – Gritou uma mulher. Ele virou para trás e a figura, ao notar seu olhar, saiu correndo para a rua, fazendo ainda mais barulho.
Não é que ele não quisesse ir atrás da testemunha, eliminá-la e evitar futuros problemas, é que tinha prioridades. Já um tanto nervoso, partiu pra cima do homem que deveria matar. Com a mão esquerda, afastou o candelabro e com a direita enfiou a espada em sua barriga.
Fácil demais, mas era assim que as pessoas morriam, como ele bem sabia.
Jogou o candelabro ao chão, fazendo um grande barulho, mas que já não chamava tanta atenção em comparação com os gritos que vinham da rua. Aquilo estava começando a irritá-lo, como se já não bastasse o mundo que girava cada vez mais ao seu redor.
Arrancou a espada da barriga, encharcada de sangue, e o corpo do homem tombou ao chão. Jethro aproveitou-se do momento e passou a lâmina em sua garganta também, apenas para se certificar de que morreria. Sentiu-se inteligente por tê-lo feito. Viu Meretriz banhada em sangue e, com a certeza de que não era um completo idiota, percebeu que era melhor limpá-la antes de sair dali.
Seu erro foi não ter notado que a limpara na própria capa.
Guardou-a e saiu pela porta. Havia algumas figuras agitadas na esquina, há cerca de 20 metros dele, e lampiões e tochas pareciam se acender por todos os lados.
Ele parou por um momento, olhando o que acontecia ao seu redor, a movimentação confusa e os barulhos, as luzes, os dedos e olhares que eram lançados a ele, tudo ocorrendo em um mundo que girava cada vez mais, e então percebeu que não estava usando capuz.
“Puta merda. Deve ter caído sem eu perceber.” – Pensou. Posteriormente, se perguntou se sequer havia colocado-o antes de ter a estúpida idéia de invadir bêbado a casa do homem que havia sido contratado para matar.
Mas naquele momento, sua única opção fora correr. E correu feito um doido, pelas ruas e vielas do Distrito Comercial da Cidadela de Ticulis, e foi só quando sentiu o chão de terra da Cidade Baixa é que parou para respirar. Vomitou logo em seguida.
Encostado em uma parede qualquer de madeira, recuperou seu fôlego e olhou para trás, e ficou tão aliviado quanto surpreso em perceber que não havia sido seguido.
Cobriu-se com o capuz e, a passos lentos, seguiu mais cambaleando do que andando entre as construções mais simples e desajeitadas, a procura de uma cama e uma mulher.
Acordou no dia seguinte com uma intensa dor de cabeça e muitas moedas a menos.
Demorou a perceber onde estava; um pequeno quarto de madeira em um bordel qualquer na Cidade Baixa, onde os pobres viviam e as mulheres lucravam. Como havia chegado ali ainda lhe era um mistério, mas ao menos não estava preso, e considerava isso uma grande dádiva.
Pouco a pouco, conforme se acomodava para sentar na cama, ia percebendo o que havia feito na noite anterior, e lembrar-se do modo como o álcool que consumira com seu contratante antes de partir para o serviço havia feito com que ele tivesse feito tanta merda só o deixava com vontade de beber ainda mais.
Sabia que estava fodido. Sabia que, a essa altura, a guarda já havia interrogado as muitas testemunhas, e que todos haviam visto seu rosto e suas vestimentas. Mas foi só quando se virou para o lado, viu suas coisas e sentiu o seu saco de moedas jogado ao chão, bem mais leve do que quando havia recebido-o na noite anterior, é que realmente sentiu medo.
Sua preciosa espada, suas vestes e seu traje de couro ainda estavam ali, mas a capa..
Puta merda, a capa. Ele lembrou-se de ter limpado a espada nela. Por que, em nome do Devorador, havia feito aquilo? Sabia o motivo, mas sempre imaginara que não fosse desses que se deixam levar pela bebida, e que não seriam algumas doses que o fariam cometer tanta burrice numa noite só. Pelo visto, estava errado.
Mas o que teria acontecido com a capa? Teria dado a alguma mulher do bordel para que fosse lavada? Não se lembrava disso, mas também não se lembrava de muita coisa da noite anterior.
Será que a noticia de um assassinato no Distrito Comercial teria chego até a Cidade Baixa e a capa sido apreendida por alguma puta auspiciosa, para apresentar para a guarda como a prova de um crime? De certo que uma mulher dessas não deixaria passar a oportunidade de fazer dinheiro vendendo um criminoso que nunca antes havia visto.
Preferiu não ficar para descobrir. Vestiu-se o mais rápido que pôde e rasgou o lençol costurado em retalhos da cama para que lhe cobrisse o corpo. Havia um pequeno espelho em cima de uma cômoda rústica no quarto, e bastou uma rápida olhada para que percebesse que, com o rosto que estava, poderia passar facilmente como um dos muitos mendigos e pobres da Cidade Baixa. Havia uma janela ali, e ele pensou em pular por ela, mas a rua estava movimentada demais, e isso chamaria muita atenção. Estava talvez no terceiro andar do que parecia um casarão, e percebeu amargamente que sua melhor opção era sair pela porta do quarto.
Abriu-a com cuidado, não sem antes ficar algum tempo com os ouvidos grudados nela para ter certeza de que não havia ninguém do lado de fora. Ao sair, viu que estava em um corredor apertado, com várias portas de madeira fechadas, provavelmente cada uma delas sendo um quarto. Seguiu pela sua esquerda, até encontrar uma escadaria gasta com corrimão na altura dos cotovelos, e começou a descê-la com cuidado. Passando pelo segundo andar, quase trombou com um menino gordo que corria rapidamente, segurando um grande pedaço de bolo de cenoura.
“Ei!” – Gritou o garoto, mas ele não deu atenção, e seguiu. Não se preocupou em saber porque diabos uma criança estava em um lugar como aqueles; provavelmente era o filho de alguma puta.
As escadas terminavam no saguão principal, que se parecia bastante com uma taverna, com mesas, bancos e cadeiras, exceto pelo fato de ser enfeitado com diversas almofadas e fitas de seda coloridas que caiam do teto, além de exalar um forte perfume de flores.
Mas onde ficava a porta?
“Bom dia pra você também.” – Disse uma voz amarga atrás de si. Ele virou assustado, e viu uma mulher encorpada, que já havia deixado o ápice de sua beleza alguns anos no passado, e vestia uma camisola de seda fina, quase transparente, que deixava seus grandes mamilos à mostra.
“Eu preciso sair, mulher. Onde fica a porta?” – Perguntou Jethro, rapidamente. Sentia-se mais nervoso a cada segundo que passava. A idéia de que não podia ficar ali crescia em sua mente.
A senhora, de braços cruzados, olhava feio para ele. Seu rosto parecia carregar uma grande desaprovação e falta de paciência, e ela provavelmente teria dito outra coisa senão a localização da saída, caso não tivesse passado os olhos pelo cabo da espada do homem, que aparecia por uma abertura no lençol que o cobria da cabeça até pouco abaixo dos joelhos, o qual ela parecia muito bem saber de qual cama pertencia.
“Ali adiante.” – Respondeu, apontando, seguido de um suspiro. – “Tente não nos trazer problemas, isso já temos demais.” – Ela disse por fim, mas Jethro sequer ouviu, já corria em direção à porta.
Fechou melhor o lençol ao redor de si e escondeu o volume do cabo da espada, respirou fundo e abriu a porta. Saiu de lá de dentro com o olhar baixo e os passos apressados, tentando não chamar muita atenção, e foi em direção ao primeiro amontoado de pessoas que vira pela frente.
De lá pra cá, havia comprado uma nova capa, escura e feita de pelos que muito bem podia ser de ratazanas, num mercador de rua qualquer da Cidade Baixa, pelo qual havia passado por coincidência enquanto evitava os guardas, e um cavalo, que fora mais arriscado, pois a baia ficava próxima dos portões, e lá a movimentação era ainda maior.
Contou suas moedas, e viu que não durariam muito de qualquer forma. Mas ainda havia um grande gasto a ser feito.
Era talvez meio-dia quando chegou, puxando vagarosamente o cavalo manchado pela corda, ao fim de uma longa fila próxima ao terceiro portão da Cidadela de Ticulis.
Ao menos nisso havia pensado anteriormente. Para entrar e sair da Cidadela, era necessária documentação apropriada, ou autorização para comércio, que era fornecida tanto do lado de dentro quanto do lado de fora. Havia entrado com um papel de funcionário da taverna de seu empregador, e esperava que ainda funcionasse.
Foi a fila mais longa em que já esteve, e ele perdeu a conta de quantas horas passou ali, em passos lentos e com a tensão apenas aumentando ao seu redor.
Havia algo de errado. Não deveria demorar assim.
Três homens em cota de malha, vestindo capas azuis com o símbolo de uma porta levadiça feita de barras de aço com correntes entrelaçadas bordado em dourado passaram por ele, e Jethro tentou parecer o mais calmo possível. Era a guarda da Cidadela.
Seu coração parou por um momento quando, duas pessoas à frente, um homem grande, curvado e barbudo, acompanhado de um burro de carga coberto de sacolas, levantou a voz para eles e falou:
“E qual o motivo dessa demora toda, senhores? Tenho que entregar esses produtos lá fora antes que estraguem! Quem sabe nessa colheita ainda!”
Um dos guardas, o mais jovem e sério, respondeu:
“Houve um assassinato no Distrito Comercial. Estamos conferindo os registros de todos para ver se batem com o criminoso.”
“Estou fodido.” – Pensou Jethro, pela milésima vez naquele dia. Já estava quase no final da tarde, e havia passado tempo demais naquela fila.
Mas agora não tinha jeito, aquela era a saída mais fácil da Cidadela. Havia outros dois portões, mas era de conhecimento comum que eles eram mais bem guardados do que a virgindade de uma nobre Nyeberiana. Apenas aquele, o terceiro, chamado de “primeira opção” pela escória da cidade, poderia lhe dar alguma esperança.
Cerca de mais duas horas se passaram até que finalmente fosse a vez de Jethro de se apresentar na cabine da guarda, que ficava numa pequena salinha dentro da grossa muralha de pedra e aço que o separava da parte de fora. Como todos os outros, Jethro deixou quaisquer animais ou cargas estacionados na entrada, ao lado de dois soldados que montavam a guarda, e entrou.
Havia um homem um tanto barrigudo e de poucos cabelos, sentado em uma mesinha de madeira, cercado por várias estantes lotadas de papeis. Ele sequer levantou o olhar quando Jethro entrou, apenas escreveu algo em uma folha da pilha que estava em sua mesa e disse:
“Documentos.”
Jethro pegou o papel dobrado que estava no bolso interior do seu colete de couro, e entregou-o. Estava nervoso, mas não podia deixar com que isso transparecesse. Repassou mentalmente todos os dados dele, que havia decorado dias atrás, quando Terbust havia lhe entregue.
Nome: Jinn Harval
Cor dos olhos: Verdes
Cabelos: Negros
Profissão: Comerciante/Entregador
A cargo de: Torbust Olmey
O guarda passou os olhos pelo papel brevemente, e então olhou para Jethro, para conferir o que ali estava escrito. Mas foi nessa olhada que o mercenário percebeu que o homem sabia que havia algo errado.
Foi rápido. Jethro sabia que o funcionário abriria a boca, provavelmente para chamar os guardas, e também que não teria chances em uma luta ali. Havia separado suas moedas, colocando a maior parte delas em uma sacola e o resto escondido pelas vestes. Era a única jogada que tinha, e a fez antes que o homem pudesse falar algo:
Arremessou a sacola na mesa, que fez um barulho de tilintar de moedas, o barulho favorito de qualquer trabalhador dali, se os boatos fossem verdade.
O homem olhou para a sacola, um tanto surpreso, e depois para Jethro de novo.
“Hrmm..” – Ele fez com a boca, enquanto abria a sacola e checava o conteúdo, logo em seguida guardando-a entre as vestes bordadas com o brasão da cidade. Assinou algo no papel e entregou-o de volta a Jethro, em seguida gritando “PRÓXIMO” para os guardas lá fora.
Jethro saiu rapidamente, aliviado por um momento, mas sabendo que o pior ainda não havia passado. Montou no cavalo e partiu pela esquerda, até abertura na muralha.
Era gigantesca e guardada por seis guardas, além dos muitos arqueiros que ficavam sob suas extensões. Jethro trotou vagarosamente até os homens e entregou o documento a um deles, que conferiu e abriu caminho para que ele fosse embora.
Passou por baixo do portão levadiço da Cidadela de Ticulis, com suas espetadas pontas lá em cima, como se prontas para descer em sua cabeça e esmagá-lo por ousar atravessá-las. Mas elas continuaram levantadas, e ele atravessou.
Foi só então que sorriu, pensando em um gole para comemorar.
Passou pela Taverna de Torbust no caminho, já que ela ficava praticamente encostada nos muros da Cidadela, mas viu ali parados uma grande quantidade de cavalos, e preferiu não se arriscar. Precisava das moedas restantes pelo contrato, mas também precisava de sua cabeça no lugar. Pensou em esperar até que a movimentação abaixasse, mas pouco tempo depois viu ao longe uma comitiva de cavaleiros avançando rapidamente, e fez questão de abrir bastante espaço si e eles.
Cavalgou noite e dia, parando apenas para comprar alguns mantimentos e uma garrafa de vinho em uma pequena venda próxima as fazendas que cercavam a Cidadela de Ticulis.
Acampou nos limites da mais distante delas, longe da estrada, e comeu e bebeu até cair no sono. Estava nervoso demais, e achava que não teria conseguido descansar sem a bebida.
Acordou com os primeiros raios de sol, tomou um trago e seguiu viagem até Porto Viranna.
Seriam pelo menos mais seis dias de viagem, e ele seguia dormindo pouco e evitando as estradas, bebendo um pouco sempre que se sentia nervoso, o que ocorreria com freqüência.
Em certo momento, pensou se realmente não estaria dando valor demais a si mesmo.
Afinal, havia cometido um crime, mas seria estranho se a guarda mobilizasse tanta gente atrás dele. Pensou em ficar em algum vilarejo próximo até a poeira abaixar, e então retornar até a taverna de Torbust para pegar seu dinheiro, podendo assim viajar melhor e fazer um bom lucro daquela situação toda. Ainda não estava vencido. Poderia dar a volta por cima. Não seria como em Nyeberum, quando ele fora forçado a fugir e correr do norte com o rabo entre as pernas, para ganhar a vida como mais um guerreiro sem causa em Durdia. Não, agora seria diferente.
Foi no caminho para Porto Viranna que suas esperanças se foram, assim como as ultimas moedas.
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