OBERON – 3ª parte

— Hum, você pode limpar esses óculos para mim? Ah, obrigado. Então, você tem uma filha... — o homem no assento do motorista diz, enquanto retira os óculos e entrega-os para a mulher ao seu lado.

— Sim. — responde Regina.

— Por que... hum... Por que não me disse ontem? — ele insiste, enquanto aperta a vista para ver a rua sem os óculos, quase escura.

Regina fica em silêncio alguns instantes. Então diz, também hesitante:

— Eu... eu acho que tive medo.

— Medo de mim?

— Oh, não, não, Fernando! É que... bem, não tive muita sorte com homens nos últimos tempos, sabe?

Regina abaixa o rosto profundamente corado. O homem toma de volta os óculos. Ainda estão embaçados.

— Eu entendo... sim, acho que entendo. Você está falando do seu marido, hum? Você me disse ontem, quando eu lhe trouxe em casa, que ele não era um grande sujeito.

— Não, isso você pode apostar que ele não era.

— Eu entendo, entendo perfeitamente. Sabe, se isso te faz sentir melhor, eu também não tive muita sorte com... hum... mulheres.

— Não? — ela quase esboça um sorriso — Bem, eu não vejo como. É por que você dedicava mais tempos aos seus estudos que a elas? Ou tem alguma coisa a ver com o seu hálito?

— Meu hálito? Hum! Por quê? É ruim?

Regina esconde o riso com a boca. Diz, sem se conter:

— Não, é claro que não! Estava só brincando, você é tão sério. Ser advogado não deve ser uma profissão fácil, sobretudo numa cidade pequena como essa...

— Sabe, eu até gosto, rende um dinheiro bom. — ele sorri, mas parece um riso mecânico, forçado — E quanto à cidade, não é má, desde que saibamos compreendê-la... É o que minha mãe sempre diz. Aliás, eu gostaria de lhe falar sobre isso.

— Sobre sua mãe? Não acha que é um bocado cedo? — Regina indaga sorrindo.

— Não sobre minha mãe, mas sobre a cidade. Quer dizer, mais ou menos isso. Na verdade, é sobre nós. Eu... hum... tenho que lhe dizer que você... bom... eu gostei um bocado de você desde que a vi lá na biblioteca, e saber que você tem uma filha não muda nada isso...

— Eu realmente espero que não. — Regina o interrompe, secamente.

Ele vai manobrando o carro e o estaciona em frente à casa da mulher. Desapertando o nó da gravata, ele se apressa em dizer:

— Não, não, é claro que não, eu... hum... até gostaria de lhe pedir para... bem, se você concordar, poder visitar você na sua casa e conhecer a pequena Estela. Eu... eu posso subir?

— Receio que hoje seja impossível, Fernando. Eu e Estela temos uns assuntos complicados para resolver... Mas amanhã no café, por que não?

Ela curva o corpo até ele, que se afasta instintivamente. Regina não se intimida e lhe dá um beijo de boa noite no rosto. Já está abrindo a porta do carro quando se vira e pergunta:

— Ei, mas afinal de contas, o que tudo isso tem a ver com a cidade?

— Bom, Regina, em cidades pequenas como essa, tudo que se faz é da conta de todos. E uma mulher como você...

— Como eu?

— ... divorciada, ou em vias de divórcio, é sempre a mais visada... E, hum, eu não falo isso por mim, mas sobretudo por você... A minha mãe sempre diz...

Batendo a porta, Regina fala:

— Pois saiba, meu bem, que só vim para cá porque havia oferta de emprego. Quanto ao conselho, eu agradeço, mas não sei o que posso fazer.

Ao subir as escadas ela pensa: “Não é mau sujeito, mas como é conservador!” Então, tenta apreender de onde vem aquela sensação ruim que acaba de sentir, uma sensação que já lhe ocorreu antes...

— Ah, mas claro, que fora eu dei! Ele tem um hálito péssimo!

Regina chega ao primeiro andar e toca a campainha. Ouve passos. A porta se abre.

— Olá, Raquel. Ele tem um hálito horrível.

— Ah, resolveu me falar sobre o quase-namorado, não é? Entre, entre, meu bem.

— Certo, mas hoje não posso demorar.

Raquel retira algumas revistas de sobre um pequeno sofá verde-limão e senta-se com Regina:

— Hálito ruim... Feio, pelo que você deu a entender ontem... A coisa vai mal...

— E além de tudo, adora falar na mãe. — Regina dá uma risada — Mas não parece ser um mau homem, apesar de tudo.

— Sei, sei. — Raquel se impacienta — Mas não é só isso que uma mulher quer, não é?

— Ora, Raquel... Depois de tudo o que eu passei...

— Por isso mesmo. Acho que você merece ser tratada como uma rainha. — a vizinha ajeita a camisola comportada, abre um sorriso malicioso — Aliás, quando poderei julgá-lo?

— Convidei-o para vir tomar café lá em casa amanhã. Passe lá.

— Eu não perderia isso por nada do mundo, querida. Mas por falar em café, você toma uma xícara de chá comigo, não é?

— Tome você, comigo, lá em casa. Chame Estela aqui e nós...

— Estela?

Regina se levanta.

— Como assim? Ela não está aqui?

— Não, não. — replica Raquel também se levantando — Só achei este bilhete, pregado na minha porta, dizendo...

Regina toma das mãos o papel que Raquel lhe estende:

“Raquel, Estela foi comigo para o trabalho. Regina.”

— Meu Deus, ela mentiu! Mentiu para nós, Raquel! Eu não posso compreender... — balbucia Regina.

— Deixe para compreender depois, meu bem. Agora precisamos agir. — Raquel sacode os ombros de Regina — Vá ver se Estela está na sua casa, ela pode estar. Enquanto isso, eu vou pegar uma lanterna.

— Uma lanterna?

— Vai, eu já disse.

Três minutos depois, Raquel, com o quimono rosa sobre a camisola e uma enorme lanterna na mão, termina de subir o último degrau que leva ao segundo andar, o andar de Estela e Regina. Esta está parada no corredor, soluçando:

— Eu não entendo... não entendo... Ela... ela não está em casa, também. Não pode ser...

— Acalme-se, querida. Vamos encontrá-la, eu tenho certeza. Você só precisa ser forte.

— Mas onde, onde, Raquel? Se não está com você, nem em casa, onde uma menina de onze anos pode estar numa cidade que ela nem conhece...?

— Aqui mesmo. Exatamente aqui.

Regina olha para Raquel, que parece fitá-la profundamente. Mas então se dá conta que a amiga não olha para ela, mas além, muito além.

Regina vira então seu rosto para contemplar o que Raquel, com tanta determinação, está mirando com seus olhos azuis.

No fim do corredor, as escadas que levam ao terceiro andar.

Pois hoje eu ouvi uma música que vinha lá de cima. Era de uma flauta, eu tenho certeza, porque eu estudei uns dois meses com a vovó, lembra? Uma música linda, linda mesmo, mamãe, e eu fiquei morta de medo, mas também morta de vontade de subir lá e descobrir quem estava...

— Sabe, eu estou morrendo de medo pela minha filha, Raquel.

— É preciso ser forte, meu bem.

— Eu estava me lembrando... lembrando do que Estela falou... Quem mora lá em cima, Raquel?

Raquel pousa rapidamente um olhar de pesar sobre Regina, mas depois volta a se preocupar com o facho da lanterna a iluminar os degraus.

— Aqui é tão escuro... Não posso acreditar que minha filha veio para cá. — a voz de Regina sai trêmula.

— Isso, meu amor, depende do que ele lhe prometeu, caso viesse.

— Ele?

— Olhe.

Elas deixam para trás o último degrau. Um cheiro de mofo e umidade começa a chegar até o nariz de Regina agora, enquanto Raquel vai iluminando com a lanterna todo o ambiente.

— Ah, ali está. Exatamente como há dez anos. — exclama Raquel.

Ela aponta o facho para uma porta triste e pesada. A parede em volta dela está descascada e suja. Manchas de mofo escuras e profundas podem ser vistas, como tumores antigos e encravados.

— Temos que arrombar a porta! — grita Regina.

— Não é preciso. — responde Raquel — Veja: já está aberta...

Escuridão. Regina não sabe onde está, apenas que respira sôfrega com todo aquele bolor, aquele cheiro de mofo e umidade entrando pelo seu nariz e fazendo estragos em todo o seu sistema respiratório. Mas ela não se importa. Só o que importa agora é Estela. E ela precisa encontrá-la, ainda que no meio de toda essa imensa e infinita...

Escuridão, sim, sempre a escuridão. Regina tateia as paredes em busca de pistas sobre onde está: são ásperas e úmidas, como todas neste andar infernal. Sente, logo atrás, Raquel, a lanterna apagada numa mão, a outra a segurar o seu braço, como uma irmã.

— Há uma porta por aqui, eu penso — sussurra Raquel.

— Onde?

— Na altura de seu antebraço.

— Ah, encontrei. Mas a maçaneta... está emperrada.

— Force mais. Devagar.

— Não consigo.

— Você está forçando para baixo ou para cima? — indaga Raquel num sussurro quase inaudível.

— Para baixo.

— Tente para cima.

A porta faz um rangido, como uma animal recém-acordado de um sono muito antigo. Regina prende o ar. Quase não pode ver Raquel ainda, mas percebe por intuição que também ela está sem respirar. Porque, pela fresta da porta, uma luz mortiça como de uma vela, chega até elas agora.

— Não, Regina!

Raquel não consegue segurar o braço da amiga quando ela irrompe pela porta rumo à luz misteriosa que guarda o segredo do paradeiro de sua filha.

Regina corre, corre, corre como jamais correu, e então estaca, paralisada, ante a visão que tem a sua frente.

Estela, sorridente, sentada sobre as pernas de um homem desconhecido, tranqüilamente recostado sobre uma poltrona gasta. Um velho quase sem cabelos e com um olhar e um sorriso tão mortiços como as velas que iluminam sua fisionomia encovada.

— Olá, mamãe! Que bom que a senhora está aqui.

— Meu Deus, meu Deus, Estela! O que está acontecendo? — berra Regina avançando tropegamente.

— Ele está me contando histórias, mamãe. Histórias antigas, como vovó fazia. Venha, sente-se aqui conosco. E pode chamar a tia Raquel também, se ela quiser.

— Não, não, Estela! Nós vamos embora daqui. Agora! — insiste Regina.

— Eu não vou! — retruca a criança.

O velho afaga gentilmente a cabeça da menina. Diz, sussurrante:

— Estela, sua mãe lhe chama. Você deve ir.

— Mas... sr. Henker...

— Vá. — diz ele tomando-a nos braços descarnados e colocando-a no chão. — Assim poderá voltar mais vezes, sempre que quiser.

— Ela não voltará! — Regina grita, tomando a filha pela mão — E amanhã nós vamos embora deste lugar, para não voltar nunca, nunca mais!

— Realmente — o velho abre um sorriso, seus olhos quase transparentes fitam divertidamente a mulher — não sei porque deve jogar toda a sua raiva sobre mim. Ela sempre soube de tudo.

Do seu escuro canto, a voz de Raquel se faz ouvir:

— Regina, me perdoe, eu...

— Vamos sair daqui, Estela. O quanto antes. — anuncia Regina. Mas silencia. Seus olhos percorrem, lentamente, os 360 graus do aposento. Indaga, tremendo de raiva:

— Que significa todos esses lençóis cobrindo a parede? Hein, que significam?

— O sr. Henker é pintor, mamãe. — responde Estela ao seu lado — Ele faz quadros. Mas detesta que vejamos o que ele pinta. Só a mim, ele...

Regina engole em seco. Sente uma sensação muito ruim agora gelar-lhe toda por dentro, até ficar arrepiada. Está prestes, ela sabe, a descobrir alguma coisa, alguma coisa realmente terrível...

— Não toque nesses lençóis, eu ordeno! — a voz do velho, rouca mas decidida, se faz ouvir no aposento cercado pelos panos pesados de mofo e traças.

Regina não lhe dá atenção. Adianta-se mais. Toca, com a mão da aliança, o pano carcomido, erguendo-o lentamente até que possa ver um pedaço da moldura escura. Puxa, então, com mais força o pano, rasgando-o para deixar à mostra a pintura inteira.

Surge, a vista de todos, a figura horrível que Regina não sabe dizer o que é: uma criatura metade homem, metade fera, com duas enormes orelhas bulbosas e pontiagudas. Seu rosto, fino e liso, está voltado para frente a contemplar a todos com desdém. Sobre seus grandes ombros magros, um manto enorme e pesado desce até os pés nus, que são de bode. Logo abaixo do calcanhar grotesco, lê-se:

OBERON

— Meu Deus, meu Deus! Quanto horror!

— Acalme-se, mamãe. Eu... — Estela tenta segurar Regina que corre pelo aposento. Sem controle, ela vai rasgando um a um os panos que cobrem as paredes, deixando à mostra os outros quadros.

— Mulher maldita! — brada o velho, sua voz rouca se confundindo com o urro de um animal — Maldita pelos séculos!

Exausta, Regina cai no chão. Raquel se adianta para ampará-la, mas ela a afasta. Ergue então os olhos para o aposento, e vê...

— Ao menos, espero que aprecie a minha obra, já que teve tanto trabalho para observá-la. — diz o velho sorrindo malignamente — Há muito de mim nela, eu confesso...

Num quadro comprido e estreito, pintado com incrível realismo, está um bode negro. Uma de suas patas aponta para a terra, a outra para o céu. Seus olhos convergem para uma mulher que está parindo com inacreditável dor. A criança que sai de seu ventre possui apenas um olho e os dois sexos.

Ao lado desse, outro quadro revela uma fogueira. Três jovens nus dançam ao redor dela. Cada um deles tem na mão o sexo do outro. Seus rostos suados exalam o máximo prazer possível. Na escuridão, afastada da balbúrdia, uma velha observa a cena deliciada.

Na parede oposta, um outro quadro, gigantesco, cuja moldura quase toca o chão, mostra uma paisagem campestre e noturna, onde um bosque ao fundo aparece iluminado de festas. Em primeiro plano vê-se um tronco oco, morto de cupins, sobre o qual está sentada uma menina...

Regina se levanta com dificuldade. Tremendo como está, não observa o olhar de Raquel e Estela, fixos no último quadro. Ela agora só se preocupa com o que deve fazer a seguir...

Na última parte:

A menina dentro do quadro. Regina, Estela e Raquel fazem uma viagem. O que existe na outra margem.

Aimberê
Enviado por Aimberê em 28/02/2012
Código do texto: T3525475
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