A Tocadora da Harpa Dourada

Ele estava distraído. Caminhava pela rua, sem nem reparar no que acontecia ao seu redor, envolto em pensamentos que rodavam feito um redomoinho de conflitos, como a última briga com sua esposa, ou as notas ruins de seus filhos… Ou tantas outras coisas, inumeros problemas. Seu humor alegre e efusivo parecia ter ido por água abaixo. E por conta disso, nem reparou no carro que vinha em sua direção. Num momento estava atravessando uma Avenida de São Paulo, indo para o trabalho, e num outro só restava à escuridão e o silêncio.

De repente surge uma claridade fraca e misteriosa iluminando o ambiente. Ele não fazia a menor ideia de aonde se encontrava. Era uma enorme área que parecia não ter fim, e não havia nada. Sim isso mesmo, um monte de nada para qualquer lador que se olhasse. A única coisa que podia descrever o lugar era o chão, um piso liso e preto, sem nenhum desenho. A luz parecia não estar vindo de nenhum lugar exato. Ele respirou fundo, tentando por os pensamentos em ordem.

Porém, antes que ele conseguisse algo extraordinário aconteceu: Uma porta dourada se materializou bem na sua frente, e se abriu produzindo um rangido agudo. De dentro saiu uma luz tão intensa e ofuscante, que ele teve que fechar os olhos para não ficar cego. Uma linda e triste melodia encheu o ar, era um toque suave e hipnotizante. De dentro da porta saiu uma mulher. Ela não tinha nada de muito especial, devia ter na faixa de uns quarenta e cinco a cinquenta anos, cabelos negros com alguns fios esbranquissados, pele branca já mostrando alguns sinais da idade. Usava uma roupa simples, blusa branca sem estampa e calsa Jeans um pouco surrada. O que chamava atenção era o fato dela ter acabado de surgir de uma porta mística, estar flutuando alguns centimetros do chão, enquanto tocava uma enorme harpa dourada de olhos fechados.

Assim que ela atravessou a porta, a mesma se fechou. Então, suave como uma pluma ela pousou no chão, e no mesmo instante parou de tocar a harpa fazendo a bela melodia cessar. Abriu os olhos, eram castanhos e ao mesmo tempo intensos e serenos, como olhar para a lua cheia em uma noite estrelada.

“Olá Eddy, gostou de minha música?”

Ela sorria, mas parecia triste.

“Quem é você? Como sabe meu nome? Que lugar é esse? Por que eu…”

“Hey! Vamos com calma, uma coisa de cada vez. Você esta, digamos, no “meio plano”… Eu sei seu nome por que, eu simplesmente sei tudo. E quem sou eu não faz muita diferença.”.

“Então… Eu morri?”

“Ainda não, mas não falta muito. Atravessar uma movimentada Avenida de São Paulo, distraido sem olhar para os lados é o mesmo que brincar de roleta russa usando seis balas.”

“Então você é a Morte!”

“NÃO! Não sou aquele velho chato ranzinza. Estou apenas o guiando até você”.

Eddy estava completamente confuso. Provavelmente tudo não passava de um sonho, pensou ele.

“Guiar a morte?”

“Sim meu caro, ele é cego. Esta sendo guaido pelo som de minha harpa dourada. A “Vida” era quem devia estar fazendo isso, ela tem uma linda voz aveludada, um Soprano Lírico de tirar o folego. Mas pegou um belo de um resfriado coitada, não pode nem falar. Então estou a substituindo provisóriamente. Não tenho uma voz bonita, mas modestia a parte, toco sublimemente bem”.

Antes que Eddy pudesse absorver todas aquelas informações, ela o interrompeu e recomeçou a falar:

“Bem, chega de falatório, vim aqui para lhe fazer uma proposta. Eu acho que você ainda não deve partir, então vou dar-lhe uma nova chance, e com um bônus. Pense em uma vida perfeita, a vida que você sempre sonhou em ter. Pense com cuidado, e então eu concederei a você”.

“Qualquer coisa?”

“Sim. Por mais bizarra ou utópica que seja. Enquanto pensa, irei comer um Cachorro-quente”.

“Cachorro-quente?”

“Isso, do lado de fora do hospital que você esta internado tem um senhor muito simpático que vende o melhor Cachorro-quente do planeta, não consigo resistir, apesar de estar ficando gorda. Devia experimentar algum dia… Pois bem, logo mais estou de volta”.

Então ela desapareceu diante de seus olhos deixando apenas a harpa dourada. Eddy se aproximou da Harpa para tocá-la, mas antes que pudesse atingir seu objetivo uma voz vinda de lugar nenhum disse:

“Eu não faria isso se fosse você”.

Então ele se afastou assustado. “Uma vida perfeita…”, Ele começou a pensar. Dinheiro, muito dinheiro, é o que todos desejam, não? Ou talvez fama, ser conhecido e amado por milhares de pessoas, milhares de fãs. Capas de revistas, reportagens… Ou quem sabe ter poderes. Poder voar, ficar invisível, ler pensamentos…

Eddy parou. Lembranças surgiram em sua mente. Um domingo chuvoso, ele, sua linda mulher e seus dois filhos assistindo filme no confortável sofá da sala e comendo pipoca. Ele andando a noite pela praia de mãos dadas com sua esposa enquanto as ondas salgadas do mar lhes molhavam os pés. Sua filha menor lhe abraçando e desejando feliz dia dos pais… Ele sorriu. Sabia o que escolher.

Como por mágica, a tocadora de harpa voltou a aparecer.

“Esta meio sujo ai…”.

“Ah, droga! Sempre me sujo toda de ketchup” – Disse ela passando despreocupadamente a manga de sua blusa na boca, deixando assim uma grande mancha vermelha nela.

“Vou precisar esfregar um bocado para tirar essa mancha… Pois bem, me diga o que decidiu”.

“Bem… Eu pensei em dinheiro, fama, poder… Mas então vi que, tenho uma vida simples, mas perfeita, com problemas é claro, mas ela é perfeita para mim. Uma mulher linda, dedicada e carinhosa, dois filhos maravilhosos. Eu não desejo mais nada, quero apenas voltar para minha vida”.

A mulher sorriu. Seus olhos brilhavam como diamante.

“São raras pessoas como você, e é graças a elas que eu ainda existo, apesar de estar cada dia mais fraca. Se você tivesse escolhido dinheiro ou mesmo a fama, eu iria voltar a tocar minha harpa e deixar que a morte o levasse embora. Poucos são aqueles que consegue perceber que já são felizes, poucos são os que veem o copo meio cheio. Você poderá voltar para sua vida”.

Antes que Eddy pudesse dizer algo, um horrível e rouco grito gutural encheu o ambiente.

“Ah, é a Morte. Parece ter se perdido, esta furiosa. Acho que não vai gostar muito de eu ter deixado você ir… Provavelmente serei mandada embora por justa causa, ainda estou no período de experiência. Por que ele não arranja um cão-guia? Talvez Cérbero servisse bem… Mas não se preocupe, não ligo, emprego é o que não falta”.

Então ela começou novamente a flutuar, A porta cósmica voltou a surgir.

“Hey, espere… Você não me disse quem é…”.

“Você ainda não descobriu? Sou o “Amor” Eddy. Sim eu sei, quando se pensa em uma personificação do Amor, vem na mente uma mulher linda, de olhos claros, roupas deslumbrantes… Mas não Eddy, o verdadeiro amor não se importa com aparência e sim com o que há por dentro dessa casca chamada corpo. Adeus meu querido, seja feliz”.

Então ela atravessou a porta junto a sua harpa, e tudo se apagou. Alguns dias depois Eddy acordou em uma cama de hospital. Recebeu o abraço caloroso de sua esposa e seus filhos. Os médicos disseram que fora um milagre, já o tinham dado como morto. Ao receber alta, aproximadamente uma semana e meia depois, saiu na rua e sentiu as gotas de chuva molharem seu rosto, era bom. Se ele não estivesse tão feliz e como sempre distraído, teria talvez reparado em uma senhora de meia idade que o observava, sentada em uma cadeira de praia do outro lado da calçada de frente para uma barraquinha de Cachorro-quente, com a boca toda lambuzada de ketchup. Ela sorria.

“Que delicia! Por favor, faça mais dois para viagem, e capricha no molho”.

DarkShura
Enviado por DarkShura em 25/02/2012
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