O rei e o hipopótamo
Com insônia, o rei levantou-se numa calorenta noite de lua cheia, e fixou os olhos mal dormidos nos longos gramados de seu jardim esbranquiçados por aquela luz noturna que nomeava as distâncias. Não muito longe, distinguiu uma coisa um pouco disforme mais parecendo um grande animal que se movia em gestos lentos. Aguçou o olhar, e viu um hipopótamo banhando-se nos esguichos da fonte. Pelo seu natural tamanho, ele não espargia água em quantidade como era de se esperar; apenas estava deitado, e se movia lentamente para que os jatos de água lhe lambessem o metálico couro.
O monarca esfregou os olhos com as costas da mão; não acreditava no que via. Voltou ao quarto e acordou a rainha, que incomodada, e após impropérios, o ouviu contar do absurdo recebendo de volta uma pergunta: como um animal, desse porte, poderia estar se banhando nas águas de nosso chafariz a estas horas da noite?
Não quis conferir, chamou o marido de doido e virou-se de lado para continuar seu plácido sono real no leito rodeado de dosséis donde caiam exageradas rendas. O rei ficou por ali alguns minutos, e voltou à janela. O hipopótamo não estava mais lá. Aguardou algum tempo e retornou, meditativo, para a cama onde dormiu um sono agitado até o romper da manhã.
Não comentou o assunto com ninguém, nem com a rainha que, aliás, parecia haver-se esquecido que naquela noite, ele a acordara para contar um fato inusitado. Talvez por ter sido bruscamente acordada, ou por não dar absoluta importância, não comentou o assunto com ninguém. Com certeza o fato lhe escapou da memória conjecturou, com satisfação, o rei.
No mês seguinte, com a mesma lua cheia que inundava todos os espaços do reino, era quase meia noite quando olhou pela janela e viu duas girafas na grama ao lado das árvores. Elas enrolavam o soberbo pescoço uma na outra, num gesto de carinho, dando a impressão que era um bicho só. Era uma visão clara e definida. Desta vez não mais chamou a rainha.
Ficou lá, absorto no absoluto silêncio da noite só cortado pelo trilar dos grilos; a mente viajava pelos longos caminhos de seu tempo de jovem príncipe, quando caçava nas florestas cavalgando em companhia de nobres e pajens. Lembrou-se das poucas batalhas em que estivera envolvido e os lugares inóspitos onde andou. O tempo ia se passando e ele não teve consciência de que adormecera encostado ao parapeito da janela.
Em seu sonho, montava um cavalo alado voando pelos enormes campos do seu território. Após sobrevoar uma montanha, encontrou um espaço habitado por animais selvagens e lá desceu. Esses bichos não falavam, mas tinham uma organização quase humana pela forma como viviam. Era um lugar onde se encontravam em harmonia, mesmo sendo eles de diferentes espécies.
O principal deles, que parecia ser o líder, era o hipopótamo, seu conhecido. Este, apesar do tamanho e desajeitado corpo, estava confortavelmente deitado num enorme e limpo colchão. Ao seu redor, duas ursas posicionavam-se como guardas da realeza. Acima, numa espécie de escadaria, encordoavam-se gigantescos cavalos selvagens que agitavam o rabo espantando as moscas; completando o séquito, alguns leões passeavam pelo gramado e, ao longe, tigres e elefantes pareciam estar atentos, como seguranças, mas aparentando calma e placidez convidativas. Olhando mais à direita, viu as duas girafas, também já suas conhecidas; estas o olhavam, espichando o desmedido pescoço, como que pedindo a ele que se aproximasse.
O rei entendeu, e se aproximou daquele estranho cenário onde camas de grandes proporções abrigavam diversos bichos, entre eles zebras que, deitadas placidamente, ruminavam sem pressa; suas listas pretas e brancas decoravam o ambiente.
Quando chegou perto do hipopótamo, este soltou um leve som e abriu a bocarra: o rei olhou dentro daquela boca, para ele incomensurável, e lá viu pessoas suas conhecidas: o comandante geral do exército com a rainha em gestos sensuais; o chefe de polícia retirando caixas do tesouro real e escondendo numa caverna; viu muitas outras coisas todas relacionadas a traições, roubos, deslealdades de seus súditos e, por último, reconheceu o noivo de sua filha, o príncipe filho do rei vizinho dizendo que, assim que se casasse, o reino de sua mulher seria anexado ao seu, e haveria um só território com ele reinando absoluto, com o apoio do comandante geral.
A esta última visão da boca do hipopótamo, subiu-lhe um pavor, queria sair daquele lugar, não sabia onde e como estava, só sabia que não poderia mais estar ali. Num esforço sobre-humano, acordou. Foi quando caiu ao chão à beira da janela.
Voltou e, novamente percebeu a rainha enrolada em lençóis coloridos, dormindo como sempre, alheia a insônias e a qualquer barulho. Com certeza tivera muitas atividades no dia, por isso sempre estava cansada à noite, imaginou, já se desenhando em sua mente a desconfiança. Caminhou pela enorme suíte a esmo algum tempo, depois vestiu-se, e saiu pelos corredores surpreendendo os guardas. Subiu até a torre e, de lá, ficou olhando ao longe os campos, as colinas, as casas, o seu reino. Era um momento em que sua mente não sabia realmente o que pensar. Só via diante de si aquela boca imensa tanto na profundidade como no mistério e nas visões, quase reais.
Amanheceu e ele ali, só os guardas à volta, respeitosos e sem entender porque Sua Majestade estaria andando pelo palácio em horas tão remotas. Desceu aos seus aposentos e não mais encontrou a rainha. Esta havia se levantado antes da hora e, como não encontrou o rei, preferiu não tomar o café ali, descendo ao salão onde alguns nobres e damas já se encontravam.
O rei não dormiu mais, o sol já estava alto. Inquieto, não sabia como interpretar o sonho. Sabia que não podia levar ao assunto ao pé da letra, porque também não possuía alguma prova daquilo que viu e ouviu. E, também, caso tais fatos fossem verdadeiros, não saberia como iniciar, porque havia visto os principais oficiais, comandantes e religiosos da corte na goela do hipopótamo.
Permaneceu inquieto durante todo aquele dia. Despachou com os nobres, compareceu a uma solenidade na qual pouco falou, todos estranharam, ele sempre usava essas cerimônias descontraindo o auditório com frases de efeito e algum humor.
Avisou que não compareceria ao banquete agendado para alguns embaixadores estrangeiros que se credenciaram no país. Estava indisposto. Alguém sugeriu a vinda do médico real, mas ele recusou. Preferia estar a sós.
Permaneceu no quarto lendo um livro até que a rainha apareceu; esta, indagou o que havia, mas ele recusou-se a falar, e mal respondia às perguntas mais óbvias entre marido e mulher. Carinho, nem pensar. Chegou a noite.
Após o jantar e um período de conversas sem assunto, ela foi dormir, como sempre. Ele, cansado, também deitou-se ao lado, fez sinal ao pajem para apagar a luz e se retirar. Ficou olhando o vazio, e os negros móveis do quarto mal iluminados pela lua crescente que teimava em atravessar as janelas de cortinas transparentes.
Nessa noite, não sonhou porque também pouco dormiu. Levantou-se antes da meia-noite e se dirigiu ao outro lado do quarto onde havia uma sacada e lá avistou o hipopótamo fixando-o com seus pequeninos olhos que destoavam de seu tamanho.
O rei, então, entendeu que, embora usasse, ou tentasse usar de justiça e equidade com seu povo, havia uma força por trás, que ele era incapaz de conceber, mas passível de ser dominada, assim como o eram os animais selvagens. Se até estes tinham a capacidade de viver em harmonia, porque não os homens? Em seus supostos aliados havia todo tipo de traições e mentiras que, um dia, haveriam de se revelar. Nem precisava daquele sol dos trópicos que banhava seu país naquele verão intenso. Apenas a luz baça da lua serviu para que ele entendesse o que lhe rodeava.
À busca de justiça decidiu, ele próprio, descobrir o que havia ao seu redor. Chamou auxiliares que não eram de sua polícia, estes seguiram os personagens que avistou na boca do hipopótamo e, assim, provou-se que cada um agia de acordo com o sonho. Com seu poder de império procurou logo defenestrar alguns, substituindo-os por outros.
Restava somente o casamento de sua filha e a situação da rainha com o comandante.
Era um caminho espinhoso para achar soluções; pensou, pensou, e ao relembrar os grandes animais de seus sonhos, tomou uma decisão: convidou ambos, o príncipe estrangeiro e o comandante para um passeio no imenso zoológico, famoso pelo elevado número de animais selvagens de grande porte, com a desculpa de mostrar algumas aquisições de novas espécies.
A pretexto de atender um chamado deixou-os, convidando os soldados que os acompanhavam para também se retiraram.
Ao ficar a sós, o comandante e o príncipe começaram a confabular seus projetos para usurpar o trono conforme tudo que haviam planejado.
A seguir, ninguém mais soube o que aconteceu com aquela turba de animais selvagens que romperam suas jaulas e o sumiço daqueles personagens que estavam tentando destruir o reino. Restaram poucos vestígios: uma estrela do comandante, o bastão de ouro que o príncipe carregava, e as longas noites de pranto de uma princesa, viúva sem ter casado.
Em eventuais insônias enluaradas, o rei não viu mais o paquiderme.
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