A Planície
Não sabia ele como havia ali parado. Não sabia o que havia antes, de onde havia vindo, quem era. Sentia a chuva, de pingos grossos, caindo forte sobre sua cabeça, e os pés descalços pisando sobre a lama, onde vermes retorciam-se. Vermes. Dezenas, centenas, milhares, milhões deles. Lombrigas vermelhas, longas tênias negras, solitárias, toda a súcia de vermes em desespero, esfomeados em sua incessante fome por carne macia para roer. Não entanto, não o atacaram, aguardando, sabia ele, por sua morte iminente. Sabia, logo, temia. Montou guarda ao alto com os olhos, numa tentativa de perscrutar o firmamento por entre as águas. Havia apenas, para se ver, a chuva, e a noite negra. Desprovida de Lua ou estrelas, apenas estava ali, nua, como que trazia ali assim como ele, de algum lugar além do desespero. Como enxergava, então, em meio às trevas? Também não sabia, mas havia uma espécie de iluminação cinzenta, que o permitia perscrutar além da escuridão. Olhou além. Viu uma longa, vasta, infinita planície sem fim, uma lisa imensidão, para todos os lados, plana, lisa, onde só se via a lama, e nada mais. Mas então, há sua volta, algo mais, cadáveres. E eles estavam em todos os cantos, por todos os lados. Homens, mulheres, velhos, crianças, todos antigos visitantes daquele lugar. Ali, pastavam os vermes. Banqueteavam-se daquele bacanal de vísceras, órgãos e sangue podre. Passeavam por entre as órbitas vazias, pelas barrigas, pernas e bocas abertas, eles, os senhores da morte. Devoravam a língua, macia carne úmida, ou comiam o estômago, abrindo caminho por entre os intestinos, festejando o elemento macabro da vida. Mas, para ele, que estava ali, havia algo ainda mais tétrico naquele festim dionisíaco da morte. Os cadáveres gemiam. Choravam, resmungavam qual criança, com suas vozes arranhadas, apagadas e secas pela putrefação. Andou ele na direção de um deles, tão devorado estava que era impossível determinar seu sexo ou idade. Uma massa rubro-escurecida de carne ainda cobria algumas partes daquele corpo violentado pela terra, mas, quando se aproximou, que horror! Levantou-se o velho morto, numa vaga tentativa de elegância há muito evanescida, como se o coração, pela metade roído, preservasse ainda algum resto de memória de antes do túmulo. Seu maxilar caído mexeu-se, como que tentando falar, mas além de um gemido desesperado, nada disse: sua língua alimentara os estômagos dos vermes. Servindo-se então de seus intestinos, o morto pulou corda, numa monstruosa imitação de uma criança feita apenas de ossos e vísceras. Um trejeito de sorriso monstruoso percorreu-lhe a boca semi-conservada, já sem os lábios. Tal foi o choque daquele que ali estava que quase foi ao chão, tamanho o terror. Afastou-se dali, o corpo tremendo, só para tropeçar sobre as pernas mal tratadas de uma velha que tinha a barriga aberta. Contava ela os vermes que lhe invadiam o corpo, perdendo sempre a conta, e começando de novo, inabalável em sua débil tentativa. Correu ele, também, dali, em desespero completo. Encontrou uma criança de língua semi-roída que tentava cantar uma balada infantil, dessas, de se dormir. O frenesi de terror o possuiu. Correu em desespero para canto algum, ganhando apenas a vastidão infinita daquela planície. Correu algum tempo, mas o cansaço o fez cair. Levantou-se. Correu novamente, não foi muito longe, e caiu. Levantou-se novamente, e continuou a correr, o fôlego cada vez mais drenado, asfixiado, oprimido, mortificado. Não correu muito até sua tentativa final, e caiu de vez. As hordas de vermes, então, o rodearam, esperando pelo banquete iminente. Dessa vez, não mais levantou. Para onde correr? O que havia ali, além de fome, sofrimento, dor, desespero? Aguardou, então, por sua morte, e quando ela aconteceu, foi ele também roído pelos vermes, e juntou-se àquela legião de mortos sem nome, naquela negra planície chuvosa.