A Árvore Vermelha Cor de Sangue (Música da Vida)

Era domingo e como de costume muita gente se amontoava em um desorganizado círculo no começo da Feira da pequena e humilde Cidade de Penholder. No centro estava Antony, o jovem tocador de violino. Sua bela melodia ecoava por todos os lados, e apesar de triste parecia que trazia uma paz interior instantânea, uma euforia quase que mágica. Ninguém sabia muito sobre ele. Onde morava, o que fazia, quantos anos tinha, se tinha família… Tudo o que sabiam era que ele aparecia todos os domingos para tocar sua música. Alguns tentavam dar algum dinheiro, como uma recompensa por aquela beleza sonora, mas ele sempre recusava. Dizia que não tocava por dinheiro, tocava apenas por amor a música. Não era de muito falatório e tinha um jeito eufêmico de ver a vida. Quando lhe perguntavam coisas sobre sua vida, respondia vagamente com metáforas. Tinha uma beleza incontestável, havia sempre mulheres a sua volta, mas ele pouco parecia notar. Enquanto tocava, com seus olhos cor de mel fechados, seus cabelos negros na altura do pescoço balançando enquanto o vento soprava, parecia mergulhado num sono profundo, parecia estar em outro mundo. A quem diga que ele realmente ia para outro mundo, e graças a isso conseguia tirar notas tão perfeitas e compatíveis aos ouvidos até do mais perverso dos corações.

Lilian, todo santo fim de semana acordava cedo para poder escutar sua música. Aquilo mexia com ela de um jeito que ela não sabia explicar. Sua mãe andava doente, deitada em uma cama, seu pai um bêbado medíocre que vez ou outra aparecia em casa, para trazer ódio e discórdia. Seu irmão mais velho, Mateus havia puxado a vadiagem de seu pai, quase não parava em casa, ficava dias fora na farra com mulheres da vida, se embebedando e se drogando. De segunda a sábado era Sua irmã mais nova Nathalia era quem tomava conta de sua mãe enferma, enquanto Lilian passava todo o dia limpando a casa dos outros, lavando, passando e cozinhando, aguentando humilhações por parte das donas das casas que cuidava em troca de poucos trocados. Sendo assim, Lilian não se sentia feliz, o único momento em que conseguia sorrir era no domingo, quando estava a escutar as canções de Antony. Por vezes ela tentou saber mais sobre ele, mas este sempre se esquivava. Tinha um olhar triste, era conhecido por alguns como o misterioso lobo solitário.

Aquele domingo parecia ser como todos os outros. Após acabar de tocar, e as pessoas se dispersarem, Antony colocou seu violino debaixo dos braços e começou a caminhar em direção ao horizonte. Apesar de saber que não devia fazer, que era errado, Lilian resolveu o seguir, precisava descobrir mais sobre ele. Ele era como um imã, e ela um pedaço de metal. Ele entrou na floresta de Penholder, que antes era grande e majestosa, mas atualmente estava quase toda destruída. No caminho Lilian podia ver vários homens com capacetes derrubando as poucas árvores que ainda restavam com tratores. Depois de quase uma hora caminhando, chegaram a lugar nenhum. Não havia saída, era apenas a parede de uma grande montanha, não havia mais nada. Lilian estava escondida pelas sombras de um grande eucalipto, observando o que Antony faria a seguir. Seus olhos se arregalaram. Conforme Antony começava a tocar seu violino, uma parte da parede de pedra se levantou fazendo aparecer um tipo de entrada secreta. Antony se adentrou pela passagem recém-aberta e no mesmo instante a parede começou a se fechar. Lilian teve que ser rápida, para também conseguir entrar. Conseguia ver a silhueta de Antony a alguns metros à frente. Continuou a segui-lo em silêncio pelo túnel escuro, metade assustada, metade incrédula.

Ela podia ver uma luz no final do túnel, seja lá para onde estavam indo, não faltava muito. Ao chegar ao fim daquele buraco húmido, uma forte luz inundou sua visão, e ela teve que colocar a mão contra os olhos. Era a luz do sol. Ela não conseguia acreditar em seus olhos, como aquilo podia se encontrar dentro daquela montanha? O Chão do lugar estava forrado por um tapete da grama mais macia e verde que ela já tinha visto. Árvores de todas as cores e tamanhos, plantas que ela jamais havia visto. Pássaros cantavam e sobrevoavam tudo, o teto era uma enorme fenda, fazendo os raios de sol banhar tudo o que existia ali.

“Voltei para vocês, sentiram a minha falta?”

Lilian procurava com quem Antony podia estar falando. Não havia ninguém, ele parecia estar dialogando com as árvores. Sentou-se em uma pedra e começou a tocar. Até mesmo os pássaros pararam para ouvir, e podiam chama-la de louca, mas ela podia ver a vegetação crescendo e ficando mais viva e cheia de cor a cada nota do violino de Antony.

“Isso tudo é lindo!”

Lilian deixou escapar, e apareceu no campo de visão de Antony. A Música cessou, E ele agora a olhava de olhos arregalados.

“O que faz aqui? Como achou esse lugar?”

“Desculpe-me… Eu te segui até aqui. Não podia ser diferente, Sua música é a única coisa que me faz sentir viva, precisava saber mais sobre você, eu… não resisti”.

Ele a olhava de cima a baixo. Parece que era a primeira vez de fato que ele reparava na existência dela. Lilian mais uma vez quebrou o silêncio.

“Não pude deixar de notar… Isso tudo parece reagir a sua música, como se ela fosse à água que regasse tudo aqui”.

“Sim… a água da chuva pouco entra nesse lugar isolado do mundo. Minha música é o que da a vida a tudo que aqui existe. E em troca, esse lugar me retribui do mesmo jeito”.

“Como assim? Eu não entendo…”.

“A mais ou menos cinco décadas atrás, eu era apenas um ladrãozinho barato. Em uma de minhas fugas, fui atingido no ombro esquerdo por uma flecha com um poderoso veneno originado de uma planta. Já quase morto, eu corria o mais rápido que conseguia pela floresta, e dei de cara com a parede da montanha. Não havia saída, era meu fim. Então uma passagem se abriu bem na minha frente. Entrei em disparada já começando a agonizar, o veneno se adentrando por minha corrente sanguínea. Não faltava muito para o meu fim. Encontrei esse lugar, um enorme espaço vazio dentro da montanha, que parecia não ter fim. Cai no chão e comecei a me contorcer. O Violino, esse que carrego comigo hoje, fruto de meu roubo e que pretendia vender por alguns trocados ainda estava em meus braços. Então escutei uma voz, não sei de onde vinha, mas era intensa e calorosa. Ela disse dentro de minha mente, que poderia salvar minha vida, se eu pudesse oferecer algo em troca”.

Ele parou sua narração por alguns instantes. Lilian sabia que era provavelmente a primeira pessoa para quem ele estava contando aquilo. Secou seus olhos cheios de lágrimas e respirou fundo, como se arranjando forças para continuar sua fabulosa história:

“Qualquer coisa, faço qualquer coisa, só não quero morrer. Foi o que eu respondi para a voz. Então um raio de sol entrou pelo buraco do teto da montanha e me atingiu exatamente onde a flecha envenenada se encontrava. As dores de cabeça, a queimação interna, todos os sintomas produzidos pelo veneno sumiram, e não era só isso, até mesmo a flecha que estava fincada em meu ombro tinha desaparecido. Pus-me de pé, e então a voz soou mais uma vez dentro de minha cabeça. Agora sua parte. O veneno ainda corre em suas veias, mas você viverá, para todo o sempre. Seis dias por semana aqui será seu lar, deverá permanecer tocando o objeto fruto do pecado que esta em suas mãos, e assim tudo ganhará vida”.

Ele parou novamente. Já não conseguia segurar, as lágrimas haviam tomado seu belo rosto, e escorriam em direção ao chão como uma leve garoa de fim de tarde.

“Eu não entendia… Eu não sabia tocar. Mas então, quando tentei, eu simplesmente sabia como fazer. Eu mesmo fiquei surpreso com o som que eu produzia. Conforme eu tocava, árvores surgiam do solo até então morto. Grama, flores, era como se fosse um milagre. Antes do fim daquele dia, a vida e a paz começou a reinar nesse lugar. Desde então, aqui permaneço, seis dias por semana, tocando para manter sempre essa chama acesa, assim como noutrora mantiveram a minha chama acesa. O único dia que saio é no domingo, e ainda sim, vou compartilhar minha música com as pessoas, pois ela agora é minha razão de viver, ela é minha alma. Peço-lhe que jamais conte para ninguém desse lugar, o ser humano não consegue simplesmente apreciar algo bonito, existe algo dentro dele que sempre destrói, exatamente como estão fazendo com a floresta de Penholder. E peço-lhe que não volte mais aqui, por precaução”.

Apesar de não querer, Lilian prometeu. Mas pediu a Antony que a deixasse ficar ao menos aquele dia naquele lugar, escutando sua música. Fora o dia mais feliz da vida de Lilian. No outro domingo, ao terminar de tocar Antony deu uma rápida olhada para ela e sorriu, antes de começar a se afastar em direção a seu paraíso perdido.

Os meses foram se passando, e o estado da mãe de Lilian se agravou. Já não podia ficar em casa, teve de ser levada as pressas ao hospital mais próximo. Os médicos disseram que ela teria que fazer um rigoroso tratamento e uma cirurgia o mais rápido possível, pois se não o fizesse morreria em poucos meses. Lilian não tinha o dinheiro necessário para pagar o tal tratamento e a cirurgia, e assim se desesperou. Tentou pedir ajuda as pessoas, mas todos em Penholder eram muito humildes, não tinham como ajudar. Ficou sabendo por alguns moradores que o homem por de trás da derrubada de árvores da floresta de Penholder era um senhor muito rico. Sendo assim, sem ter outra escolha Lilian foi procurá-lo e de joelhos pediu-lhe ajuda. Ele tinha olhos maldosos e obtusos.

“Por que lhe ajudaria? Nem mesmo te conheço, por que me importaria com a doença de sua mãe? Tem algo pra me oferecer em troca? Bem provavelmente não. Já estou de saída, em poucos dias irei-me embora dessa maldita cidade, tudo o que essa cidade tinha para me dar eu já tomei para mim, agora suma daqui moça, não me comovo com suas lágrimas”.

Uma coisa passou pela cabeça de Lilian. Era algo terrível, algo sujo. Mas ela não podia deixar sua mãe morrer, não tinha escolha.

“Tenho sim algo a te oferecer… Eu sei a localização de outra floresta, muito mais rica e grandiosa do que esta”.

Dessa maneira Lilian conseguiu a dinheiro para o tratamento da mãe. Duraram três longos meses de muita luta e sofrimento, Lilian agora quase não saia do hospital. Chegou o dia da cirurgia. Era de risco, tinha cinquenta por cento de dar certo e cinquenta por cento de não dar. As horas se passavam, a espera era insuportável. Quando o médico apareceu, Lilian correu e segurou seu braço.

“Como ela esta doutor, como minha mãezinha esta?”

“Eu sinto muito senhorita Lilian, fizemos tudo o que foi possível, mas sua mãe infelizmente faleceu”.

E o mundo de Lilian desabou. Era um castigo, um castigo de Deus pelo que ela havia feito, por quebrar a promessa feita por ela. Naquele dia ela correu em direção montanha. Ao chegar, encontrou a passagem aberta. Entrou pelo túnel sem luz e continuou seguindo rapidamente. Quando chegou ao final, não havia luz alguma, a beleza havia sumido, junto com toda a vida. Tudo o que restara era restos de árvores derrubadas, jazidas no solo antes verdejante.

“O que eu fiz Meu Deus o que eu fiz…”.

Ela caiu de joelhos em planto. Foi quando viu algo caído no chão. Na verdade, eram duas coisas. A primeira era um violino, o mesmo violino usado por tantos anos por Antony. Do seu lado havia uma flecha ensanguentada.

“Antony Oh Antony, me perdoe, por favor… Me perdoe…”

Segurou o violino entre suas mãos e começou a tocar. Ela jamais havia tocado qualquer instrumento musical que fosse, mas misteriosamente, ela sabia como o fazer. Era uma melodia exatamente igual à de Antony. Em alguns minutos, a flecha se transformou em uma pequena muda de árvore, que foi crescendo e crescendo. Juntamente com ela, várias outras árvores, flores e plantas cresciam, dando vida e luz novamente ao lugar. Quando parou de tocar, a antiga flecha agora era a árvore mais alta do lugar, e era vermelha… Vermelha cor de sangue.

“Agora carregarei sua dor comigo Antony, Para sempre. E sei que nem assim conseguirei pagar meu pecado. Mas não deixarei que você morra novamente… Nunca mais”.

E ela então voltou a tocar, com toda a sua alma.

DarkShura
Enviado por DarkShura em 21/02/2012
Código do texto: T3510831