OBERON – 2ª parte
Muito tempo depois de Estela ter adormecido, Regina ainda se debate no colchonete que elas estenderam no chão para esta noite. Amanhã, no dia claro, irão montar as duas camas, tirar o resto dos móveis dos jornais, pendurar os quadros; mas, hoje, estão cansadas demais para pensar nisso.
Apesar do cansaço, Regina não consegue dormir. Muitas coisas passam por sua mente agora, em sua maioria coisas ruins. Ela ainda tem a lembrança muito nítida dos últimos meses que passou junto do marido, das dores que sentiu, calada, após cada pancada. Não, Daniel nem de longe é o homem com quem ela pensou ter se casado, há doze anos. É um estranho.
Como essa mudança se processou ela sabe explicar: foi o amor que acabou, não o dele, que nunca existiu, mas o dela, abrindo-lhe assim os olhos para o monstro com que dividiu a vida por tanto tempo. Talvez ela fale sobre isso com Raquel, um dia desses.
O que ela não sabe explicar é: como uma mulher inteligente como ela, independente (e, ao menos em teoria, livre), formada em Biblioteconomia, uma mulher do século XXI, enfim, se deixou dominar por tanto tempo, e cada vez mais e mais, por um simples homem. E tudo isso sem soltar um único grito que não saísse abafado, se não um grito de protesto, algum de desespero que fosse.
Ela pensa que essa sua natureza, se é que ela pode chamar assim, não herdou da mãe. Estela, muito mais que ela, tem traços da avó: um certo brilho misterioso nos olhos, imensos e escuros, um jeito expansivo e natural de se comunicar, e até...
Aquela imaginação fértil com que ela tanto se preocupa. Um talento para inventar histórias, as mais esquisitas e despropositadas. Ela ainda se lembra com clareza da noite em que a filha a acordou dizendo que havia, na casa, um bicho feio: “É um Ogro, mamãe, um Ogro sentado bem em cima do nosso sofá”. Mas não havia Ogro nenhum, como já era de se esperar. A não ser que Daniel, adormecido e cheirando a uísque, pudesse ser assim classificado. Olhando sob esse prisma, Regina não acha a idéia tão má.
O fato é que depois da morte da avó, Estela foi deixando de imaginar essas coisas, até quase parecer curada. Mas, hoje, sua imaginação voltou a pregar peças. Ela conjurou para si, e somente para si, um par de olhos observadores numa janela onde ninguém vive há dez anos, ou talvez mais. Porque, segundo Raquel, quando se mudou para cá, o terceiro andar já estava vazio.
“É preciso controlar isso”, pensa Regina. “Sim, sim, é preciso controlar essas idéias”. E então se descobre novamente tensa, percebendo, claramente, que também esta noite não conseguirá dormir. “Estou muito esgotada, preciso tomar alguma coisa”, diz para si. Levanta-se, assim, e caminha em direção ao banheiro, onde a caixa de remédios com tarja preta que ela deixou bem em cima do armário se encontra. Toma-a nas mãos, abre-a e ingere duas pequenas, minúsculas cápsulas brancas.
Como num conto de fadas, todas as suas preocupações, a figura do marido, a imaginação exagerada da filha, sua nova vida que ela vai ter que aprender a viver no dia seguinte, tudo, enfim, que é sólido, vira fumaça no ar.
— Não precisa, mamãe. Eu já sei me cuidar sozinha.
— Nada disso. Foi ela quem insistiu, não quero parecer ingrata. Vai e pronto.
— Mas mamãe, o que é que eu vou fazer lá na casa dela a tarde toda? Não, pior: todas as tardes!
Regina está sem paciência. Bate o pé, decidida:
— Olha aqui, mocinha. Quero que você fique com a Raquel essa tarde porque é a primeira que você vai ficar sozinha para eu ir trabalhar. O expediente na biblioteca não é inteiro e por isso eu sempre vou chegar antes de escurecer, entendeu?
A menina cruza os braços e senta-se no sofá com a cara fechada. A sala está com melhor aspecto agora, mas só a sala.
De repente, Estela clareia o semblante, olha para a mãe com o canto dos olhos e, ainda com o cenho franzido, murmura:
— Ok, mamãe. Pode ir sossegada. Eu fico com a tia Raquel.
Regina se adianta e beija as bochechas coradas da filha, que logo ficam vermelhas.
— Tudo bem, tudo bem! Não precisa tanto... — reclama a criança limpando o rosto manchado do batom da mãe.
— Até a tardinha, meu bem. Tranque a porta com cuidado quando sair, e seja educada na casa da Raquel, entendeu?
Estela ouve as recomendações da mãe com fingida atenção. Ela só respira de verdade quando Regina enfim bate a porta e a deixa só.
“Que chato ficar com uma mulher de idade a tarde inteira!”, diz para consigo. “Na certa vai querer me mostrar seus álbuns de retratos antigos, um monte de coisa velha... Blarg! Tão melhor seria se...”
Estela cala os pensamentos por alguns instantes. Alguma coisa, sim, alguma coisa a faz esquecer suas reclamações. Ela não pode ter certeza do que é, e no entanto...
Um som. Sim, sim, um som! Um som estranho que ela não está acostumada a ouvir em qualquer lugar. Um som que ela não sabe de onde vem, nem como é exatamente, mas sabe que existe, tal e qual sentimos o vento. É tão doce e tão baixo que ela mal pode ouvi-lo, mas quanto mais vai deixando suas preocupações, sua broncas com a mãe e todo o resto para trás, mais o som vai ganhando força e intensidade dentro e fora dela.
Um som que adquire contornos: ritmo, melodia, cores; ainda que a menina não conheça o significado de muitos desses nomes. Ela os sente, como o homem que pela primeira vez aqueceu-se ao calor do fogo sem compreendê-lo. Mas a flauta (ela já sabe que é uma flauta) continua sua música alegre (sim, alegre!), e Estela quase chega a sentir vontade de dançar... Isso se não estivesse espantada e amedrontada demais com aquilo tudo.
E apesar de paralisada, ela pode sentir a delícia que é ouvir a música, tão doce, tão adorável, e descobre, com incrível certeza, que já a ouviu uma vez, não aqui, não agora, mas há muito, muito tempo, numa...
Mas de onde vem? Estela quer saber. Lentamente, a menina se ergue do sofá. Caminha cuidadosa pela sala e pára, em frente à porta. Leva as mãos à maçaneta, gira-a e contempla o corredor vazio. No fim do corredor, as escadas: para baixo, o 101, o apartamento de Raquel; para cima... a música.
— Raquel, por favor, desculpe-me o atraso!
— Entre, Regina! Eu não posso ficar muito tempo aqui fora desse jeito. — diz apressada Raquel que, de pé no batente da porta, está só de camisola. Porém trata-se de um modelo tão antigo e comportado que Regina não pode deixar de sorrir — Mas você não está atrasada, de maneira nenhuma, querida. Chegou bem na hora do chá.
— Que bom. Mas a verdade é que poderia estar atrasada. Dei sorte, sabe? Consegui carona...
Raquel conduz a mãe de Estela para dentro do seu apartamento, cuja divisão interna é rigorosamente igual à de Regina. A mobília de Raque, porém, é que dá o tom de sua casa: uma mistura de quadros sem valor com reproduções dos grandes mestres, uma pesada mesa de estar rodeada por quatro cadeiras de varanda, uma cristaleira moderna cheia de louças antigas...
— Está olhando minha decoração, não é? Acha-me ridícula, eu sei, mas não pode negar que sou original, disso não há como duvidar, mesmo porque...
— Raquel, onde está Estela? — Regina interrompe a vizinha, o olhar girando em torno.
— Como?
— Minha filha, onde está?
— Ora, eu...
— Estela! Estela!
Faz-se um instante de silêncio. Regina está arfando. Ouve-se então passos que vêm do interior da casa. Uma pequenina cabeça aponta no corredor.
— Olá, mamãe...
— Onde você estava, mocinha?
— Ela estava vendo uns álbuns antigos de fotografias. — responde Raquel, olhando com carinho para a criança — Coisa de velha, eu disse a ela, mas ela insistiu. Mas o que há com você, Regina? Onde achou que ela estivesse?
— Não sei, para ser franca. Mas tive medo de que ela não tivesse vindo para sua casa como mandei. Sou muito boba, mesmo.
— Não, você não é boba. Tem razão em se preocupar. Mas enquanto ela estiver aqui, não há o que temer, eu lhe garanto — replica Raquel com seriedade.
— Mamãe, podemos ficar para o chá? Aí eu aproveito e termino de ver as fotos que a tia Raquel...
— Estela, você não acha que já abusamos demais da hospitalidade da tia Raquel, não?
— Ah, mãe...
— Deixe, Regina. Ela quer... e eu também! E você aproveita e nos conta com mais detalhes dessa sua... carona.
— Ah... eu... meu Deus, o que você está pensando?... Vamos, Estela.
Na porta, Raquel ainda indaga, com um sorriso malicioso e divertido nos lábios:
— Apenas me diga: ele... é bonito?
Regina tenta conter o riso, mas não consegue:
— Acho... meu Deus, acho... acho que não...
— Ah, que grande lástima! — replica Raquel.
Começam a rir as duas. Estela as contempla, pensativa.
— Sabe, mamãe, hoje aconteceu uma coisa engraçada... Mamãe?
— Desculpe, meu amor. O que foi?
— Você está distraída. É por causa do homem que te deu carona?
— Claro que não, Estela! Isso é coisa da maluca da Raquel.
— Tudo bem. Eu não ia ligar se você gostasse de outro cara. O papai não é mesmo bom para você. Mas o que eu queria dizer é sobre outra coisa.
Estela fica em silêncio até que a mãe tire as chaves da bolsa e abra a porta.
— Minha nossa, quanto suspense. Pronto, já estamos bem protegidas. Pode me contar o que aconteceu.
Regina contorna o sofá e se senta ao lado da filha. Esta tem o olhar voltado para a frente, como se compenetrada.
— Sabe, mamãe, eu descobri que, além dos olhos, deve existir também uma boca, e ouvidos. Talvez até um nariz.
— Como é?
— É como o Gato da Alice, sabe? Lembra quando eu falei que eu tinha visto uns olhos mal-encarados na janela do terceiro andar? Pois hoje eu ouvi uma música vindo de lá de cima. Era de uma flauta, eu tenho certeza, porque eu estudei uns dois meses com a vovó, lembra? Uma música linda, linda mesmo, mamãe, e eu fiquei morta de medo, mas também morta de vontade de subir lá e descobrir quem estava...
— Estela!
— Quê? É bronca?
— É claro que é! — Regina está de pé, os dedos das mãos, e talvez dos pés, crispados de raiva — Você sabe muito bem que isso tudo, essa música, esses olhos... vêm só da sua cabeça. Não há ninguém lá em cima, há muito tempo que não há e eu quero que você entenda isso.
— Mas, mamãe, se eu ouvi! Se eu vi!
— Não, não, Estela. Isso não pode ser. Você já ouviu e viu muitas outras coisas, e todas absurdas. Lembra-se quando disse que tinha visto a vovó, que tinha conversado com ela? E isso foi justamente na volta do funeral dela, Estela! Você queria ver sua avó.
— Não! Não! Eu vi!
— E quando disse que havia um elfo debaixo de sua cama? Nós havíamos acabado de ver uma montagem de “Sonhos de uma noite de verão”. Você ficou louca com o elfo Puck...
— E ele existe! Até falou comigo! Disse: “Estela, o Rei Oberon quer conversar com você. Venha logo”.
— Meu Deus, Estela, será que vamos ter que procurar um psicólogo?
— Eu não estou louca, se é isso que a senhora pensa!
— Pois é só isso que eu posso pensar!
Só mais tarde, Regina vai perceber que grande tolice cometeu pronunciando essas palavras. Agora, ela só tem tempo de ver Estela correr da sala para o quarto, e ali se fechar, sem palavras, só soluços.
No dia seguinte, Regina, que só muito tarde, e com a ajuda das pílulas brancas, conseguiu dormir, sai deixando um bilhete. Estela o vê pregado na geladeira. Está escrito:
“Descongele a comida que está no freezer. Logo que terminar de lavar a louça, vá para a casa da Raquel. À noite, conversamos.”
Não é um bilhete muito carinhoso, pensa Estela, mas ela não esperava por isso. É só um bilhete de mãe.
Lembra-se, então, talvez por associação de idéias, que, com a discussão, acabou esquecendo de contar a Regina o que descobriu sobre a tia Raquel no dia anterior.
“Não, não, foi melhor assim”, pensa Estela com sarcasmo, “ela ia dizer que eu estava inventando isso também. Ia negar que a tia Raquel também teve uma filha, uma menina linda, que morreu quando tinha a mesma idade que eu tenho agora”.
Mas o fato é que ela estava lá nas fotos (Estela a viu!), tão bela, tão cheia de vida, no instantâneo tirado no parque. E quando Estela perguntou à vizinha sobre a identidade da criança, ela a olhou com uns olhos tão tristes, tão cheios de lágrimas e de saudade que Estela não pôde deixar de dizer:
— É sua filha, não é?
Mas espere... Muito bem, o que é isso agora? Não, não. Estela não precisa indagar nada. Ela faz a pergunta só por fazer, pois já sabe, antes mesmo que seu cérebro processe a resposta, do que se trata. É a música que vem de novo. E dessa vez, muito mais alta e mais clara que da primeira.
“É como se quisesse se apoderar de mim”, pensa, mas depois se retifica: “Não, não. É como se estivesse dentro de mim”.
É a mesma melodia do dia anterior, disso Estela tem certeza. Só não tem certeza de uma coisa. Mas isso ela vai descobrir agora.
Na terceira parte:
O desaparecimento de Estela e o desespero de Regina. Aquilo que vive no terceiro andar. Raquel esconde um segredo.