OBERON - 1ª parte
OBERON
Meu pai! Meu pai! Não ouve então
O que me sussurra tão docemente o Elfo-Rei?
Erlkönig (O Rei Elfo)
Goethe
Há quem passe pela floresta e só veja lenha para a fogueira.
Tolstói
Mãos de velho afastam um pouco as cortinas pesadas. Um nariz adunco, muito grande, e enrugadíssimo, avança para a claridade. Olhos claros e sem brilho, cinza, quase transparentes, acostumam-se à luz exterior. Apertam-se, ainda que não demonstrem qualquer sinal de possuírem pupilas. Observam.
Lá embaixo, um táxi acaba de estacionar. Do lado oposto ao motorista, salta uma mulher. Ela é quase jovem e talvez ainda traga consigo algum traço da antiga beleza. Dirige-se para a porta de trás do automóvel, enquanto ajeita a saia, que amarrotou durante o percurso. Abre a porta.
De lá, salta uma criança. É uma menina, terá dez, onze anos, não mais. Salta para a calçada sem o menor jeito de mocinha, e a mãe a repreende. A menina, contudo, não abaixa a cabeça, e enquanto a mulher abre o porta-malas do carro, ela fixa os olhos no edifício. E fixa-os ainda mais detidamente na última janela, naquela em que dois olhos muito gastos, e muito atentos, observam a ela e sua mãe...
Depois a cena se dissipa, porque a mulher pede à criança que segure um dos pacotes, o menor, no que a filha obedece. Então se dirigem ambas para a escadaria do edifício.
Instantaneamente, os olhos recolhem-se à escuridão. Uma língua pálida e quase seca lambe a boca descolorida de lábios. O que estes fazem em seguida recorda um sorriso.
— Pronto! Acabou, mamãe!
— Então pode botar aí, Estela.
A criança abaixa-se com cuidado para colocar o pacote sobre um amontoado de outros que abarrotam o ambiente, o qual, no futuro, irá se parecer com uma sala. Então olha sorridente para a mulher ajoelhada, debruçada sobre uma enorme caixa de papelão.
— Eu gostei muito do apartamento. E a senhora?
— Assim, assim. Não é mau, mas achei que fosse maior. Quando soube que íamos nos mudar para uma cidade pequena, a primeira coisa que me veio à cabeça é que não precisaríamos mais morar em cubículos como na cidade.
— São as coisas que estão pelo chão que fazem tudo parecer menor. E esse lugar não é um cubículo! — retruca a menina.
— Cubículo ou não, é aqui que vamos morar por um bom tempo, a partir de agora. E além do mais, estou satisfeita por estar longe da influência do seu pai.
A criança dá um suspiro e senta-se sobre uma das caixas. Ouve-se um ruído de vidro partindo e a mãe se ergue num salto.
— Estela! Meu Deus, eu sabia!
A menina levanta-se também e se afasta da caixa. Parece estar com medo de saber o que destruiu.
A mãe se adianta, rasga o lacre, dá um grito:
— O espelho! O presente de casamento que minha mãe me deu... Ah, Estela!
— Mamãe... mamãe...
Num raio, a mulher se aproxima e toma o braço da filha. Sacode-a tão violentamente que o corpo pequeno e frágil parece sacolejar no ar. Quando a solta, seus braços rosados estão tão vermelhos que dão a impressão de estar em brasas.
Estela protege o vermelhão com a mão e se afasta. Senta-se no chão com a cabeça entre os joelhos e, de olhos fechados, começa a soluçar.
São precisos três soluços para que ela sinta uma mão sobre seus cabelos. Não precisa olhar para saber o que está acontecendo. Conhece todas as nuanças dos carinhos da mãe. Regina tem um carinho para cada situação, e é por isso que Estela a ama. Agora, o seu carinho quer dizer: “Por favor, por favor, me perdoe, meu bem”.
Mais tarde, quando Estela já está sentada à mesa da cozinha na expectativa do café que Regina, sua mãe, está tentando produzir, as lágrimas já estão secas, ainda que o braço continue a latejar. Mas não é para falar sobre isso que ela abre a boca:
— Gostei muito do apartamento, mamãe. Só não fui com a cara de uma coisa.
Regina está concentrada na preparação do café. A cozinha não é o seu cômodo preferido nesta casa, ou em qualquer casa. Ainda assim, encontra espaço na sua mente para perguntar:
— Sim, meu bem, e o que foi?
— O homem que olhava para nós da janela do terceiro andar. Não gostei dele.
— Querida, por favor...
— ... Não gostei dos olhos dele. Me fizeram pensar... em alguma coisa muito velha, alguma coisa que eu nem consigo lembrar o que é, sabe?
— A única coisa que eu sei — a mãe a interrompe, tira o bule do fogo, despeja seu conteúdo sobre um filtro de papel branco que em segundos escurece com o pó do café — é que você é a filha mais imaginativa que eu já tive.
A criança abre um sorriso.
— Mamãe! Eu sou sua única filha!
— É verdade! Eu havia me esquecido! — brinca a mulher.
— Ah, mamãe!
Elas ouvem o toque da campainha.
— Nossa! Quarenta minutos na casa nova e já temos visitas. — diz Regina.
— Não abra, mamãe. Por favor!
A mulher olha para a filha e durante dois instantes talvez hesite. Mas enxuga as mãos na toalha de prato e diz:
— É feio deixar gente do lado de fora. E, além disso, não estamos mais na cidade grande, não é preciso ter esse medo todo.
Ela cruza a sala esquivando-se das caixas ainda fechadas e abre a porta.
— OLÁ!
Parada no batente está uma mulher de meia idade. Ela ainda está com sua grande boca manchada de batom aberta do grande “OLÁ” que acaba de pronunciar. Está usando um quimono rosado e gasto, o que lhe confere um ar de dona de casa relaxada. Sua aparência, pensa Regina, lembra muito a de uma tia sua, que morreu solteirona.
— Olá, olá. — repete a mulher com um sorriso — Sou a Raquel, sua vizinha. Moro logo embaixo de você, no 101. Somos só nós três nesse prédio velho. Vim lhe trazer minhas boas vindas.
— Ah, obrigada. — Regina pensa que sua tia, na solidão da sua existência de mulher solteirona e solitária, talvez tivesse um gesto semelhante ao da vizinha, e sorri. — Entre, Raquel, meu nome é Regina. Acabei de fazer um café, ainda está bem quente. E eu quero que você conheça alguém.
— Mas será que não vou atrapalhar? Você tão atarefada com a mudança...
— Hoje não vou arrumar mais coisa alguma e... Ah, aí está você. Por que não veio até a sala, Estela?
— É sua filha? — pergunta a mulher de quimono — Mas é um encanto!
Regina ouve o elogio e, apesar de saber que é dito com sinceridade, assim como outros tantos que já ouviu sobre a aparência da criança, ainda o acha estranho. Estela é sua filha e, por mais que a ame, e ela a ama muito, sabe o quanto sua beleza é... diferente.
— Esses olhos enormes, tão brilhantes... Ela não os herdou de você, não é? — indaga a vizinha.
— Minha mãe sempre me diz que eu me pareço com minha avó. — responde a menina.
— É verdade — Regina deposita uma xícara bem cheia na mesa, em frente de onde está sentada Raquel, a vizinha — Minha mãe era bem assim, como Estela. Os olhos escuros... o cabelo negro escorrido... até mesmo o jeito... a estatura...
— Ela é pequenininha, não é? — a mulher de quimono parece divertir-se — Tem um jeitinho de gnomo, não tem?
— Eu não sou gnomo! — replica a criança.
— Estela!
— Não tem problema, Regina. — Raquel sorri para a menina — Você sabe o que é um gnomo, meu bem?
— É claro que sei. É um ser mágico dos contos de fadas. Como um duende, ou um elfo. Minha avó costumava me contar histórias sobre eles, mas agora que ela morreu, eu não me lembro mais de quase nada.
— Você é muito inteligente, meu amor. Parabéns, mamãe. E quando o papai vem?
Regina abandona o sorriso que tinha a pouco. Diz, grave:
— Espero que nunca. Estamos nos separando.
— Eu sinto muito.
— Não sinta. Não vale a pena.
— Está bem. Eu também não tenho marido, se isso te consola. Nem nunca tive. Pode parecer estranho dizer isso, mas acho que nunca senti muito a falta de um. — ela parece meditar um instante — Não que isso queira dizer que nunca desejei um homem. Tive alguns namoricos, mas já passaram.
Ela se levanta com alguma dificuldade. Aperta a mão de Regina.
— Foi um prazer. A próxima visita será sua. A propósito, — Raquel contrai as sobrancelhas, adquire um ar estranhamente sóbrio — não vá abrindo a porta para qualquer um como fez comigo. Da próxima vez, pode não ser uma fadinha bonitinha como eu que você vai encontrar.
Ela dá um riso gostoso e sua boca volta a mostrar toda a sua intimidade bucal, que, a bem da verdade, nem é tão atraente assim. Regina repara também que ela quase não tem seios.
— O prazer foi meu. Mas eu também tenho um “a propósito”. Você disse que há apenas três pessoas nesse prédio. Você mora no primeiro andar, eu no segundo. Quem está no terceiro?
— Não, não, você não entendeu, meu bem. Somos três, de fato: você, eu e Estela.
— Mas, no terceiro... — insiste Regina.
— Nenhum ser humano vive lá, há dez anos, querida. Eu lhe garanto.
Na segunda parte:
Regina tenta se acostumar à vida nova que tem pela frente. Enquanto isso, Estela ouve uma música estranha vindo do terceiro andar, deixando a criança curiosa sobre quem (ou o quê) realmente vive ali. O único jeito de descobrir é subindo as escadas...