Anjo da Guarda
Estávamos no trem. Já havia duas horas que ele corria sem cessar, me levando para algum lugar desconhecido. Mas eu confiava no meu guia. Mais que confiava, tinha fé.
Eu nasci com um dom muito especial. Eu posso ver. Posso ver a verdade e o que há além desse mundo. Posso ver através do véu. Vejo criaturas elementais, de pura energia. Seres que ajudam as pessoas, às guardam, as protegem, ou as atrapalham, as tentam e amaldiçoam.
Eu vejo anjos
E, porventura, demônios.
Enriel era o meu anjo da guarda. Aquele que sempre esteve comigo desde antes do meu nascimento, que sempre me protegeu e me guardou. E que matou todos os que tentaram ferir a mim. Anjos e demônios.
E foram muitos. Enriel me contou a verdadeira natureza de meus poderes. Disse-me que eu era a criança iluminada, o próximo messias, reencarnação do primeiro, e que, por isso, tenho a missão de guiar a humanidade através do apocalipse, e que muitos demônios e anjos maus (anjos corruptos que ainda não decaíram) querem a minha morte, para que a humanidade perca por completo o rumo e eles possam ceifar a maior quantidade de almas possível para levá-las ao seu reino de fogo.
Essa empreitada rumo ao norte clandestinamente no vagão de um trem comercial, por exemplo, havia sido planejada por ele. Dias atrás Enriel detectara oscilações na película e percebera a pulsação da energia e da aproximação de uma horda de demônios numa campanha para ceifar a minha vida. Antevendo o movimento inimigo, Enriel evitou fugir por vôo, pois seria facilmente localizado e me jogou no vagão deste trem, selando todo o trem com runas de uma magia poderosa.
O trem tornou-se completamente invisível aos olhos dos anjos, como se numa inversão da ordem natural das coisas, afinal, quase tudo o que é invisível aos humanos é visível aos alados. A magia trata-se da criação de um véu, tal qual o que cerca o nosso mundo, mas esse véu é no mundo espiritual e nos planos superiores, não no físico como o véu natural.
Para um anjo que olhasse na nossa direção, não veria nada, não sentiria cheiro nem ouviria som de nada acima dos trilhos, como se só houvesse a paisagem à nossa volta.
Neste momento o trem deu um tranco, reflexo do susto do maquinista ao ver se materializar à sua frente uma figura nua, de traços andróginos e assexuada, envolta em uma aura brilhante e dourada como o Sol. A buzina soou desesperada e o freio foi puxado agilmente. A força da aura emanou em ondas de calor, dilatando os trilhos e os desalinhando. A figura sorriu enquanto dois pares enormes de asas de plumas branquíssimas emanavam de suas costas.
Sacou o que parecia ser o punhal de uma espada guardada na única vestimenta que usava, seu cinto, que parecia ser feito especialmente para comportar o estranho objeto. Puxou o punhal e uma luz dourada surgiu, quente como o calor de mil estrelas, desenhando ondas no ar à sua volta.
O trem trepidou ao atingir os trilhos desalinhados e inevitavelmente fugiu dos trilhos, a locomotiva se virou completamente para o lado, mas continuou à seguir em frente devido à sua inércia. Foi então que chegou perto ao ponto de ser atingida pela espada de luz da figura que surgira nos trilhos. Um Arcanjo.
O Arcanjo havia rastreado o faro da aura do menino escolhido, até que ela magicamente sumiu pelos trilhos. Conhecedor de truques de fuga e sabendo que os trens daquela linha só vagavam em um único sentido, calculando a velocidade média do veículo e determinou a que distância estaria, rumando para lá, com o intuito de chegar à frente do trem.
Ao chegar ao local calculado, o Arcanjo materializou sua figura na esfera terrena e pôde sentir as pequenas vibrações da terra, reflexo da aproximação de algo. Ao perceber isso, usou o calor de sua aura para dilatar os trilhos, fazendo o trem se desgovernar e sair dos mesmos. Uma vez fora do trilho, não foi difícil acompanhar o rastro que o trem invisível deixava na terra do entorno, esperou que estivesse próximo, sacou a espada e atingiu o trem com um golpe que fundiu a lataria da locomotiva, estragando uma runa.
A falta de uma runa já era suficiente. Em menos de um segundo todo o trem tornou-se visível de novo, assim como seu contingente, especialmente a aura de dois passageiros no vagão número 18, uma delas, inclusive, angelical.
Dentro do trem, nós sabíamos que havíamos sido pegos. O inconveniente da magia é que ela era como uma barreira, como uma parede que selava a visão de ambos os lados. Então, enquanto as runas se mantivessem, os anjos de fora não poderiam ver o trem, e os de dentro do trem não poderiam ver o que acontecia do lado de fora, como se o trem vagasse num nada, no vazio de uma escuridão infinita.
Dessa forma, só foi possível sabermos que nos haviam encontrado quando o trem deu um tranco, saiu dos trilhos e logo havia uma espada de energia queimando a lataria da porta do vagão, abrindo uma rasgo por onde uma figura de aura poderosa entrara.
Enriel pôs-se à minha frente, voltando suas asas para trás e me encobrindo com elas, no intuito de me proteger. Ao contrário do Arcanjo, Enriel vestia roupas brancas e leves e possuía traços levemente masculinos, embora eu soubesse que isso era só uma impressão, já que conceitos como masculino e feminino não podem ser aplicados a seres de energia espiritual.
- Confesso que foi inteligente, o lance todo da fuga num veículo terreno invisível. Realmente interessante, já que a maioria dos anjos não tem um conhecimento tão vasto das coisas terrenas e não resistiria ao instinto ingênuo de fugir batendo asas, como um pássaro encurralado.
Sua voz era como se toda uma orquestra se pusesse a tocar suas melhores notas em uma vibração que repercutia no espírito e num volume que fizesse vibrar até mesmo as fundações do universo.
- Mas foi um erro risível escolher um tão previsível quanto um trem. Um trem, Lúcifer? Porque não um automóvel qualquer?
“Lúcifer” Não pude deixar de perceber como o Arcanjo o havia chamado.
- Um automóvel deixa marcas no terreno ou no asfalto, um barco oscila a água, um avião cria oscilações no ar à sua volta. Que diferença prática faria que meio eu escolhesse? Por isso escolhi o mais estúpido de todos, por que talvez assim o deixasse confuso e pudesse ter um tempo maior para pensar num plano de fuga melhor.
Era verdade. O fato de Enriel ter escolhido o trem já havia lhe dado alguma vantagem, visto que o Arcanjo, descrente da atitude estúpida do irmão, analisou todas as outras opções antes de aceitar a fuga pelo trem, o que deve ter dado mais tempo para a fuga do anjo. Mas por fim, acabou seguindo a pista do trem, aceitando o fato de seu irmão ser conhecido por sua imprevisibilidade e pela capacidade de tomar decisões que num primeiro momento parecem tolas, mas que no fim sempre acabam por revelar um grande plano.
- E esses momentos a mais lhe renderam algum novo plano de fuga? - Riu o Arcanjo, debochado.
- Na verdade, não. - Disse Enriel, aceitando a provocação e respondendo num tom de superioridade.
- E... - Encorajou o ser dourado.
- E decidi que não vou mais fugir. Já chegou a hora de nos enfrentarmos, o mundo clama por isso, o número de almas a meu favor é incontável, eu estou pronto para te matar, como nunca estive.
- Ai, irmão. Você sempre foi tão iludido. - Disse o Arcanjo, apontando sua espada dourada em nossa direção.
- Não cante vitória precipitada, Miguel, seu engano pode custar caro. - “Miguel”, o Príncipe dos Anjos. Esse nome também ficou na minha mente. Enriel sacou sua espada negra, ao contrário da de Miguel que emanava luz, aquela a absorvia de uma forma muito mais sombria e assustadora. Os dois se olharam por um longo momento e então alçaram vôo, abrindo um enorme buraco no teto do trem e sumindo do meu ponto de vista.
Os dois anjos voavam em círculos, se afastando e se aproximando, atacando com fúria. O bater de suas espadas criava ondas de choque que percorriam o local, fazendo a terra tremer até o cume das montanhas mais próximas.
E eu observava o conflito, sem entender mais nada. “Lúcifer”? “Miguel”? O que acontecera ao bom e velho Enriel, e com o bondoso Príncipe dos Anjos de quem tanto ouvira falar?
Mais um golpe poderoso e a espada luminosa suplantou a negra, atingindo parte das asas de Enriel, fazendo plumas revoarem e aturdindo seu vôo por alguns instantes, instantes estes, suficientes para que o Arcanjo imobilizasse seu rival, descendo vagarosamente com ele, trazendo-o até dentro do vagão do trem onde eu me encontrava.
- Criança - A voz do Arcanjo resplandecia, encantadora. - Ele não é quem diz ser. - O braço do anjo se cerrava por sobre a boca de Enriel, calando-o enquanto o mesmo se debatia. Os dentes de Enriel estavam cravados no braço de Miguel, em uma mordida profunda, criando-lhe uma ferida que não produzia sangue, visto que ambos eram entidades espirituais, mas que desbotava o seu brilho na região.
Em seguida o Arcanjo começou a pronunciar palavras em uma língua não só incompreensível como também impronunciável por humanos. As palavras pareciam atingir Enriel com força, fazendo ele se debater ainda mais, como um louco descontrolado.
- Mostre sua verdadeira forma! - Ordenou o Arcanjo após o pronunciamento das palavras e a pele da criatura começou a se avermelhar, os músculos tinitaram, saltando, enquanto sua pele engrossava, formando uma casca grossa e vermelha acima dos músculos supercrescidos. Garras, presas e espinhos saltaram por todo o corpo, negros. E da cabeça brotou um par de enormes, curvos e horripilantes chifres, enquanto a pele da face se desvanecia, deixando-a no formato de uma caveira espinhenta. Os olhos brilhavam num laranja incinerante, os pés se converteram em cascos, as pernas, semelhantes às de cabra. Uma pequena cauda com um triângulo na ponta surgiu e as plumas brancas das asas caíram, revelando negras asas de morcego. E a criatura começou a aumentar em tamanho e brutalidade. Rugidos ecoavam, tremendo e perturbando a alma dos que assistissem à transformação.
Mas nenhuma dessas transformações era espantosa se comparada à transformação da aura. A energia antes quase insensível, agora era de um negro terrível que emanava frio e escuridão e parecia levar todos à sua volta a um abismo sem fim.
- Este é Satã. Ele matou Enriel a algum tempo atrás e tomou sua forma para lhe enganar, criança.
- Mas porque ele não me matou, então?
O monstro acertou uma braçada no celestial, arremessando-o metros atrás, num movimento ágil para o corpo de tamanho descomunal, que agora já havia duplicado em altura e triplicado em robustez. Em seguida me segurou com uma única mão, aprisionado-me enquanto chamas negras da mesma energia que a sua antiga espada emanavam de seu braço.
- Eu ceifaria sua alma e a arrastaria até o abismo sem fim, onde meu poder é pleno e eu deteria o controle sobre ela. - Disse o monstro, com uma voz que ecoava forte como um milhão de trovões e num timbre tão irritante quanto o arranhar de unhas na lousa. - Mas isso acarretaria num adiantamento da Grande Guerra. As tropas de Miguel em instantes estariam se jogando ao abismo para resgatá-lo, e um levante desnecessário ocorreria. Achei mais sensato tentar me aproximar de você, para fazê-lo trabalhar para mim e levar quantas almas fosse possível ao meu poder. Mas agora que vejo que não consegui meu objetivo, nada me impede de levá-lo ao calabouço infernal agora mesmo. - E voltando-se para o arcanjo que lentamente se punha de pé, recompondo-se do ataque, ordenou:
- Nem mais um passo, irmão! O garoto vem comigo!
E dizendo isso, enfiou seu braço em meu peito, enquanto aquele fogo negro queimava minha alma, arrastando-a para o abismo de tormento.
- Criança, você não sabe a força que tem! Resista! - Berrou Miguel, e eu, lutando contra as piores dores da alma, criei força e contive o ferimento, puxando minha alma de volta ao receptáculo carnal. Uma pequena onda de choque se formou ao meu redor, quando a alma atormentada ecoou na carne, repelindo o braço do demônio.
Eu caí no chão, estrebuchando, sangrando na carne e desfalecendo no espírito. O arcanjo aproveitou o momento para se aproximar e espantar o monstro numa explosão de luz, enquanto recostava seu palmo sobre minha ferida, curando-a. Uma explosão de vitalidade me veio, e como num surto, saí das sombras do abismo retornando à realidade terrena. Pus-me de pé e comecei a levitar, sentindo pela primeira vez meus verdadeiros poderes. O infernal veio correndo e bufando em minha direção, mas uma nova explosão de luz surgiu, dessa vez vinda de mim, fazendo-o desaparecer por completo.
Aturdido, caí no chão, exausto.
- Você está bem? - Perguntou Miguel, mais por gentileza que por dúvida, afinal, seus olhos de Arcanjo poderiam detectar qualquer problema na carne ou no espírito.
- Vou ficar. O que houve com Lúcifer? Eu... O matei?
- Longe disso - Respondeu o Arcanjo - Apenas drenou sua essência de volta às profundezas do inferno. Criança, aqui e agora você deve fazer a sua escolha. O mundo terreno está se tornando extremamente perigoso para a sua habitação. Está pronto para ascender ao céu onde será treinado ao meu lado?
Sim, eu estava, levantei-me com cuidado e perguntei:
- O que devo fazer?
- Você é o iluminado, você guiará as almas dos homens na Terra e operará milagres para que eles recuperem a sua fé e a maior parte das almas possíveis sejam salvas. Eu lutarei nos céus, comandando as tropas no conflito real, enquanto você lutará espiritualmente na Terra, encorajando os mortais a orarem nos tempos difíceis de tribunas e catástrofes que se seguirão. A guerra nos céus repercutirá em guerras na terra, em fome, em muitas catástrofes naturais e em mortes, enquanto as fundações do próprio universo estão a cair e o véu a desvanecer. Serão tempos muito difíceis, como nunca antes vistos e guiar a humanidade e fazê-la manter a fé neste tempo de calamidades será uma tarefa extremamente árdua. Por isso te levarei comigo para que receba os ensinamentos corretos na morada de Deus.
- Eu estou pronto. - Disse, abrindo meu coração, enquanto a luz do Arcanjo penetrava em mim, elevando meu espírito, arrastando-me junto ao dele para uma dimensão superior, maravilhosa.
A guerra havia apenas começado, e no mundo inteiro já se viam os sinais do fim.