Não preciso disso.

Cafarnaúm - Continente de Dozzer. 1998 depois da Queda.

Noah Armstrong

– Não. – estou convicto.

– Sabe que não tem escolha. Se isso é um fato e ponto por que não o aceita e sofre menos? – a voz áspera e monocórdia arranha o ambiente. Aquele cheiro de pólvora que o acompanha desde sempre. Não importa como tente disfarçá-lo, minhas narinas nem queimam mais.

– Podemos nos recusar a vender. A D.Armstrong é uma empresa sólida, com um mercado em crescimento e pioneira no que faz, no modo como faz. – argumento. Acredito que já tivemos esse diálogo antes, em algum momento passado próximo, mas nunca tenho certeza de algo que envolve Gerard.

– A D.Armstrong vende armas, Noah. Você não deve romantizar isso. Ainda cheira a leite se acha que a vida é simples assim, com os bandidos e mocinhos em lados opostos. As pessoas querem matar umas as outras, isso é uma necessidade básica, como comer e se vestir.

– O capitalismo faz isso com as pessoas. – rebato sem pensar, estou permitindo que a raiva se instale e isso é um erro. Respiro devagar e tento me controlar.

Gerard me fulmina com o olhar, duro, inflexível. Retira as mãos dos bolsos e alisa o terno cinza da Dormanis. É o mesmo olhar de reprovação que me cedia quando quebrava algo ou trazia o cão para dentro de casa nas noites de chuva. Um helicóptero pousa no terraço e a janela vibra suave a nossa frente, ainda o encaro, não posso correr agora.

– As pessoas criaram o capitalismo, Noah. O mundo é assim e ficar reclamando nada muda. Precisamos assinar aqueles papéis hoje, pois daqui a um ano a D.Armstrong valerá 5% do que vale agora. Irão nos sufocar, nos processar por cada fagulha fora do lugar, atacar nossas fontes de matéria prima e dizimar a mão de obra. Esperam que neguemos para terem a chance de fazer isso, por isso vamos aceitar e vender. Pegamos o dinheiro e é o fim. – a voz não se altera, firme e calma.

– Passou meio século criando o império, a empresa é a sua vida... Vai mesmo vendê-la e tirar férias vitalícias? – sei a resposta, mas preciso perguntar.

– Sim. – ergue a xícara e sorve o café sem pressa. Volta-se para a vista panorâmica de Naástii, o grande centro urbano, exalando fumaça e corrupção por cada poro de metal e vidro. Um oceano de prédios de concreto e asfalto quente e impermeável. Quando desisto de uma explicação mais ampla ele me surpreende ao continuar. – Não se pode lutar contra o instinto natural de auto-preservação. Não podemos ir contra um sistema de reinos milenares e espécies xenófobas. Eles estão se engolindo e temos que somente sair do caminho. Não estaremos vivos quando se matarem e levarem o planeta junto, e também não podemos impedir, nos resta resignar e assumir o anonimato, ser ninguém é não ser um alvo. – termina a xícara e a abandona sobre o pires de porcelana artesanal pintada a mão por uma tribo qualquer das fronteiras da civilização.

– O problema é o dinheiro. O sistema monetário obriga as pessoas a serem inimigas, adversárias, enquanto a mídia floreia a vida com falsos votos de amor e amizade com o próximo. Não podemos alcançar a excelência em matéria de sociedade se a mesma for baseada em valores mesquinhos. – desabafo. Odeio o modo como funciona o mundo e preciso fingir que posso mudá-lo.

– Eles não querem melhorar a sociedade. Querer ficar ainda mais ricos e poderosos. E se não sairmos do caminho vão nos matar, somos somente gado. Comprando e bestando, consumindo e reproduzindo para manter a máquina funcionando. É só, Noah. Não se culpe, você não pode fazer nada. – ouvir meu velho pai admitir ser gado é assustador. Não estava preparado para isso.

Fico em silêncio. Os tubarões devem estar chegando à sala de reuniões agora e não tenho mais tempo. Acabou, e eu falhei. As armas que venderia a preço de custo para povos oprimidos serão usadas para dizimá-los, com juros e correção monetária. Ária entra e avisa que está na hora, e se vai quando recebe um aceno de Gerard, sempre discreta e prestativa. Meu pai volta a me observar e posso jurar que seus olhos estão úmidos pelo brilho excessivo, toca-me no ombro e aperta de modo fraternal. Aquelas rugas me dizem tanto, seu rosto sofrido parece ter sido esculpido em mármore bruto, sem qualquer maquiagem ou cirurgia plástica, seco e cru. Um homem justo e verdadeiro consigo mesmo. Vira-se e caminha rumo à porta, abre-a e adentra a sala de reuniões, os tubarões estão lá, famintos. Sentados em bilhões e ainda contando as migalhas, vendendo doenças em frascos e hambúrgueres e lambendo o mundo, estuprando-o com um expansionismo predatório.

A porta se fecha e fico sozinho, o café esfriando sobre a mesa de tampo de aço inoxidável e vidro. Olho ao meu redor e vejo muito suor e sangue em tudo, cada obra de arte nesta sala, cada móvel e material de escritório. Quantas pessoas deram horas de suas vidas a troco de algumas notas coloridas para que eu fique aqui parado com cara de idiota? Tudo que tenho acaba por me prender. Borrar a realidade a minha frente, o conforto faz eu não querer lutar. Sou escravo de meus confortos fúteis e mesquinhos. Pastando e bestando enquanto permito que outros decidam o destino de meus filhos e netos. Não lutar é permitir. E eu não preciso disso. Nasci nu e chorando.

Lembro-me de Gerard feliz quando fechou seu primeiro grande contrato e pudemos comprar a casa nas montanhas, onde não teríamos mais medo dos bandidos que rondavam nosso bairro. Essa é uma das estratégias: pregam que o banditismo é composto por desfavorecidos e oprimidos e que os ricos são culpados pela má distribuição de renda, que por acaso é culpa deles, banqueiros e políticos de riso fácil – assim quando alguém sequestra seu filho a sensação é que se está somente a pagar uma dívida de classes. Malditos filhos da puta.

Não me lembro mais de ter visto meu pai feliz.

É nesse momento que decidi abandonar tudo, sem amarras e luxos, sem confortos e reclamações, levantar de minha segurança e seguir uma meta clara e que me preencherá com o maior prazer desse mundo podre.

Vou matar todos eles.