O POETA DO IMPOSSÍVEL
Juliana Valis
Lentamente o universo dos sonhos se desvanecia em meio às sombras das lágrimas. E ele nem sequer tinha mais sombra. E ele nem sequer tinha mais lágrimas ou quaisquer réquiens de risos vãos. Talvez a bússola de sua alma não funcionasse tão bem quanto antes, quando ele era apenas vento seguindo as intrépidas folhas de outono, caídas de uma árvore chamada felicidade. Quem e como ele era ? Ninguém nunca saberá, exatamente, porque apenas restaram fragmentos de alguns de seus versos, publicados no céu. Sim, os habitantes do Planeta das Palavras mantêm entre si a lenda de um certo poeta, muito perspicaz e astuto, cujo maior êxito foi o de estampar um poema de amor na escuridão do espaço sideral, para que sua amada pudesse lê-lo em qualquer outro planeta onde ela estivesse. Segundo comentam os conhecedores da lenda, o poeta referido dedicou todo o seu talento literário à elaboração de um soneto no qual as letras eram formadas por estrelas, arduamente capturadas em galáxias tão infinitas quanto belas.
Foram anos e anos de trabalho para que o “Soneto do Amor Maior” fosse publicado no vasto espaço da Via-Láctea, com as estrelas mais reluzentes e coloridas. Poema de amor eterno, portanto, poema de sentimento indelével estampado no sistema solar, como se fosse, por si só, um corpo-celeste perdido na órbita das emoções. Alguns literatos do Planeta das Palavras comentam o fato de que o lendário poeta era perdidamente apaixonado por uma certa jovem chamada Ester, nem tão encantadora por fora, mas deslumbrante por dentro. Enquanto a maioria dos indivíduos vislumbra apenas a aparência de seus semelhantes, o lendário poeta tinha o raríssimo dom de enxergar a beleza das almas alheias. Talvez esse seja um boato assaz verossímil porque, segundo ressaltam alguns habitantes do Planeta das Palavras, Ester não era nenhuma musa “caliente” ou sedutora, mas tinha como atributos uma bondade e um olhar tão sereno que capturou para sempre o lendário poeta.
O grande problema surgiu quando Ester foi seqüestrada como ato de vingança proveniente de seu patrão, um senhor chamado Orgulho, riquíssimo empresário e exímio sonegador de impostos. Como no Planeta das Palavras, a Justiça funcionava de modo razoável, o senhor Orgulho foi denunciado e, durante o processo criminal, Ester foi ouvida como testemunha e disse a pura verdade, ao depor em juízo, afirmando que seu patrão não pagava quaisquer tributos nem emitia notas fiscais. Esse depoimento de Ester foi crucial para a condenação do senhor Orgulho a cumprir quinze anos de pena no Presídio dos Substantivos Sujos, em regime fechado. Ardilosamente, o senhor Orgulho conseguiu raptar Ester, como vingança, e com ela fugiu de forma célere para algum planeta longínquo da Via Láctea. Essa é a versão mais factível que os habitantes do Planeta das Palavras oferecem para o desaparecimento de Ester, a amada a quem o lendário poeta entregou seu coração e sua alma. Mergulhado em longos dias de angústia, o poeta se desesperou diante do seqüestro de Ester e decidiu que lhe declararia amor da forma mais ampla e visível: publicando um poema na imensidão do espaço sideral, com estrelas lídimas de encantamento. Assim, em qualquer planeta no qual Ester se encontrasse, ela poderia ler o “Soneto do Amor Maior”, poema cuja função precípua seria a de transcender o tempo e, sobretudo, a distância entre dois corações vinculados indelevelmente pelo sentimento mais sublime. Corações que pulsam em freqüências análogas transmitem ondas eletromagnéticas de uma emoção próxima ao êxtase e, por isso, o lendário poeta nunca esqueceu sua amada, mesmo com o transcorrer das décadas, das razões e de todos os sentidos humanos.
Ester passou a ser o astro em torno do qual o poeta girava, elipticamente, tal como descreveu um certo físico chamado Kepler, ao asseverar que os planetas descrevem órbitas elípticas em torno do Sol. Embora as leis da Física e as leis do Amor sejam assaz díspares, a alma do lendário poeta transformou-se em uma espécie sui generis de satélite natural da amada Ester, de modo semelhante aos movimentos que a Lua descreve em torno da Terra. Sem mais pieguices, o poeta dedicou cada dia de sua existência efêmera a fazer uma declaração de amor eterna e tão intensa que se solidificou como o soneto mais belo de todas as galáxias, apesar de incompleto. Sim, o lendário poeta se foi antes de finalizar sua obra-prima. Nunca se soube para qual planeta Ester foi levada. Alguns jornalistas do Planeta das Palavras traziam a notícia de que ela poderia encontra-se encarcerada em um local próximo ao anel de Saturno. Outros repórteres, porém, diziam que Ester poderia ter morrido em Vênus, juntamente com seu algoz, o senhor Orgulho. Havia ainda os fofoqueiros de plantão, segundo os quais a respeitosa Ester teria, na verdade, feito um “tour” espacial com seu amante, senhor Orgulho, passando por Urano, Marte e Mercúrio, onde teriam virado churrasco de seres monstruosos, enquanto o louco poeta se afastava de tudo e de todos, para publicar um poema de amor no espaço sideral, com estrelas capturadas dia após dia. Embora não fosse propriamente um parnasiano, da estirpe de Olavo Bilac, o lendário poeta se esmerava nas rimas, gostava de métrica densa, aliterações, hipérbatos, sinestesias, metáforas lindíssimas e chaves de ouro. Ora, se ele iria publicar um poema no espaço sideral, por óbvio que não deveria ser qualquer poema, mas o melhor soneto. E para fazê-lo, o poeta dedicou, segundo alguns historiadores do Planeta das Palavras, seus maiores esforços, demitindo-se de seu emprego, ausentando-se de sua família, enclausurado com a obsessão de expressar seu amor à Ester, onde quer que ela se encontrasse no universo.
É claro que alguns perguntariam: não seria mais cômodo publicar um poema de qualquer grande escritor marciano ou terráqueo, talvez certos versos da obra “Romeu e Julieta” de Shakespeare ou, quiçá, o “Soneto de Fidelidade”, de Vinícius de Moraes ? Mas o lendário poeta jamais utilizaria citações, paráfrases ou plágios para expressar seu lídimo amor, pois o soneto deveria ser seu e, pretensamente, o melhor de todas as galáxias já existentes. Ademais, o Soneto do Amor Maior nunca poderia ser declamado à Ester, porque o som não se propaga no vácuo; o soneto deveria ser escrito com palavras formadas por estrelas cadentes. E assim foram feitas as duas primeiras estrofes de quatro versos e as duas últimas de três versos, embora fosse o último incompleto. O poeta faleceu antes de terminar o derradeiro verso. Qualquer terráqueo com um bom telescópio constataria que o poema, feito com palavras estreladas, estava ainda para ser finalizado. E, de fato, nunca foi, nunca será. O Soneto do Amor Maior está publicado no espaço sideral e já foi traduzido para os idiomas de alguns mundos muito avançados e bastante seletos. Quanto aos idiomas terrestres, o soneto do lendário poeta somente foi decifrado e traduzido por uma equipe de estudiosos chineses que, até o presente momento, disponibilizaram na Internet apenas o título “Soneto do Amor Maior”, como se já não fosse por demais óbvia a motivação do poema. Vejam só como a arte é um complexo exercício de transcendência ! E a poesia é apenas uma das múltiplas faces da arte. De qualquer modo, creio que ninguém jamais poderá traduzir com veemência ou fidelidade o Soneto do Amor Maior, com todas as suas nuances artísticas, emocionais e psicológicas. Realmente ninguém, muito menos eu.
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Juliana Valis
Lentamente o universo dos sonhos se desvanecia em meio às sombras das lágrimas. E ele nem sequer tinha mais sombra. E ele nem sequer tinha mais lágrimas ou quaisquer réquiens de risos vãos. Talvez a bússola de sua alma não funcionasse tão bem quanto antes, quando ele era apenas vento seguindo as intrépidas folhas de outono, caídas de uma árvore chamada felicidade. Quem e como ele era ? Ninguém nunca saberá, exatamente, porque apenas restaram fragmentos de alguns de seus versos, publicados no céu. Sim, os habitantes do Planeta das Palavras mantêm entre si a lenda de um certo poeta, muito perspicaz e astuto, cujo maior êxito foi o de estampar um poema de amor na escuridão do espaço sideral, para que sua amada pudesse lê-lo em qualquer outro planeta onde ela estivesse. Segundo comentam os conhecedores da lenda, o poeta referido dedicou todo o seu talento literário à elaboração de um soneto no qual as letras eram formadas por estrelas, arduamente capturadas em galáxias tão infinitas quanto belas.
Foram anos e anos de trabalho para que o “Soneto do Amor Maior” fosse publicado no vasto espaço da Via-Láctea, com as estrelas mais reluzentes e coloridas. Poema de amor eterno, portanto, poema de sentimento indelével estampado no sistema solar, como se fosse, por si só, um corpo-celeste perdido na órbita das emoções. Alguns literatos do Planeta das Palavras comentam o fato de que o lendário poeta era perdidamente apaixonado por uma certa jovem chamada Ester, nem tão encantadora por fora, mas deslumbrante por dentro. Enquanto a maioria dos indivíduos vislumbra apenas a aparência de seus semelhantes, o lendário poeta tinha o raríssimo dom de enxergar a beleza das almas alheias. Talvez esse seja um boato assaz verossímil porque, segundo ressaltam alguns habitantes do Planeta das Palavras, Ester não era nenhuma musa “caliente” ou sedutora, mas tinha como atributos uma bondade e um olhar tão sereno que capturou para sempre o lendário poeta.
O grande problema surgiu quando Ester foi seqüestrada como ato de vingança proveniente de seu patrão, um senhor chamado Orgulho, riquíssimo empresário e exímio sonegador de impostos. Como no Planeta das Palavras, a Justiça funcionava de modo razoável, o senhor Orgulho foi denunciado e, durante o processo criminal, Ester foi ouvida como testemunha e disse a pura verdade, ao depor em juízo, afirmando que seu patrão não pagava quaisquer tributos nem emitia notas fiscais. Esse depoimento de Ester foi crucial para a condenação do senhor Orgulho a cumprir quinze anos de pena no Presídio dos Substantivos Sujos, em regime fechado. Ardilosamente, o senhor Orgulho conseguiu raptar Ester, como vingança, e com ela fugiu de forma célere para algum planeta longínquo da Via Láctea. Essa é a versão mais factível que os habitantes do Planeta das Palavras oferecem para o desaparecimento de Ester, a amada a quem o lendário poeta entregou seu coração e sua alma. Mergulhado em longos dias de angústia, o poeta se desesperou diante do seqüestro de Ester e decidiu que lhe declararia amor da forma mais ampla e visível: publicando um poema na imensidão do espaço sideral, com estrelas lídimas de encantamento. Assim, em qualquer planeta no qual Ester se encontrasse, ela poderia ler o “Soneto do Amor Maior”, poema cuja função precípua seria a de transcender o tempo e, sobretudo, a distância entre dois corações vinculados indelevelmente pelo sentimento mais sublime. Corações que pulsam em freqüências análogas transmitem ondas eletromagnéticas de uma emoção próxima ao êxtase e, por isso, o lendário poeta nunca esqueceu sua amada, mesmo com o transcorrer das décadas, das razões e de todos os sentidos humanos.
Ester passou a ser o astro em torno do qual o poeta girava, elipticamente, tal como descreveu um certo físico chamado Kepler, ao asseverar que os planetas descrevem órbitas elípticas em torno do Sol. Embora as leis da Física e as leis do Amor sejam assaz díspares, a alma do lendário poeta transformou-se em uma espécie sui generis de satélite natural da amada Ester, de modo semelhante aos movimentos que a Lua descreve em torno da Terra. Sem mais pieguices, o poeta dedicou cada dia de sua existência efêmera a fazer uma declaração de amor eterna e tão intensa que se solidificou como o soneto mais belo de todas as galáxias, apesar de incompleto. Sim, o lendário poeta se foi antes de finalizar sua obra-prima. Nunca se soube para qual planeta Ester foi levada. Alguns jornalistas do Planeta das Palavras traziam a notícia de que ela poderia encontra-se encarcerada em um local próximo ao anel de Saturno. Outros repórteres, porém, diziam que Ester poderia ter morrido em Vênus, juntamente com seu algoz, o senhor Orgulho. Havia ainda os fofoqueiros de plantão, segundo os quais a respeitosa Ester teria, na verdade, feito um “tour” espacial com seu amante, senhor Orgulho, passando por Urano, Marte e Mercúrio, onde teriam virado churrasco de seres monstruosos, enquanto o louco poeta se afastava de tudo e de todos, para publicar um poema de amor no espaço sideral, com estrelas capturadas dia após dia. Embora não fosse propriamente um parnasiano, da estirpe de Olavo Bilac, o lendário poeta se esmerava nas rimas, gostava de métrica densa, aliterações, hipérbatos, sinestesias, metáforas lindíssimas e chaves de ouro. Ora, se ele iria publicar um poema no espaço sideral, por óbvio que não deveria ser qualquer poema, mas o melhor soneto. E para fazê-lo, o poeta dedicou, segundo alguns historiadores do Planeta das Palavras, seus maiores esforços, demitindo-se de seu emprego, ausentando-se de sua família, enclausurado com a obsessão de expressar seu amor à Ester, onde quer que ela se encontrasse no universo.
É claro que alguns perguntariam: não seria mais cômodo publicar um poema de qualquer grande escritor marciano ou terráqueo, talvez certos versos da obra “Romeu e Julieta” de Shakespeare ou, quiçá, o “Soneto de Fidelidade”, de Vinícius de Moraes ? Mas o lendário poeta jamais utilizaria citações, paráfrases ou plágios para expressar seu lídimo amor, pois o soneto deveria ser seu e, pretensamente, o melhor de todas as galáxias já existentes. Ademais, o Soneto do Amor Maior nunca poderia ser declamado à Ester, porque o som não se propaga no vácuo; o soneto deveria ser escrito com palavras formadas por estrelas cadentes. E assim foram feitas as duas primeiras estrofes de quatro versos e as duas últimas de três versos, embora fosse o último incompleto. O poeta faleceu antes de terminar o derradeiro verso. Qualquer terráqueo com um bom telescópio constataria que o poema, feito com palavras estreladas, estava ainda para ser finalizado. E, de fato, nunca foi, nunca será. O Soneto do Amor Maior está publicado no espaço sideral e já foi traduzido para os idiomas de alguns mundos muito avançados e bastante seletos. Quanto aos idiomas terrestres, o soneto do lendário poeta somente foi decifrado e traduzido por uma equipe de estudiosos chineses que, até o presente momento, disponibilizaram na Internet apenas o título “Soneto do Amor Maior”, como se já não fosse por demais óbvia a motivação do poema. Vejam só como a arte é um complexo exercício de transcendência ! E a poesia é apenas uma das múltiplas faces da arte. De qualquer modo, creio que ninguém jamais poderá traduzir com veemência ou fidelidade o Soneto do Amor Maior, com todas as suas nuances artísticas, emocionais e psicológicas. Realmente ninguém, muito menos eu.
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