Deixe Queimar.

Algum lugar no continente de Dozzer. - 1996 depois da Queda.

Zendrix

A vila não tinha nome, nunca fora fundada de fato. Não passava de um aglomerado de residências, estalagens, tavernas e armazéns espalhados, entremeados por ruas levemente pavimentadas e outras tantas de solo cru e poeirento em meio ao cerrado ressecado por um verão causticante. As pessoas indo e vindo com os vasos d’água sobre as cabeças, vencendo as distâncias várias vezes ao dia, reduzidos ao trabalho de subsistência. O gado enfraquecido agonizava e falecia nos campos áridos sem gemer e os abutres eram alvejados a flecha para a saciedade dos famintos desafortunados. Mesmo os animais domésticos estavam a desaparecer com o passar das semanas e nenhuma planta resistia verde, ressecadas e desprovidas de quaisquer resquícios de vida.

Um meio dia qualquer quando o cavaleiro galopou pela rua que atravessa a vila com seu malhado esguio e veloz, que resfolegava inquieto assim que pausou sua viagem em frente ao único armazém que permanecia comerciando. Amarrou o cavalo em uma viga da varanda e gritou qualquer coisa sobre água e feno para as mulheres que picavam tubérculos por ali. Adentrou o armazém cobiçando as garrafas a mostra sobre tábuas dispersas acima do balcão. Notou um mendigo caído abaixo da janela, aparentemente dormindo, vestia trapos escuros e desbotados, jovem com os cabelos lisos fartos e a pele clara para alguém da região, e apesar da aparência de pedinte usava botas fortes de couro caro, que certamente valiam mais que o próprio.

O homem senta-se num alto banco e debruça-se sobre o balcão no momento que um anão sobe num tablado do outro lado, mantendo-os na mesma altura. Uma breve olhada mútua e ambos formam seus estereótipos mentais e ligam seus pré-conceitos culturais. O homem fala primeiro:

– Água, filtrada se possível. E conhaque, duas doses.

– Cobre, prata se possível. E identifique-se, nome e procedência. – rebate o anão.

Um ronco sonoro e entrecortado do dormente mendigo interrompe a resposta do homem, que a retoma assim que possível.

– Perdão. Devem estar tendo dias difíceis e entendo isso. Louniel, emissário do magistrado missionário Onahf, o puro. – o homem retira um rolo carimbado da algibeira e o abre em frente ao anão.

O pequeno homem observa por algum tempo e chama aos berros por um nome feminino. Logo uma jovem desdentada surge dos fundos do estabelecimento, sobe o tablado e se abaixa para ler algumas linhas, retorna ao anão com sinais positivos de cabeça e volta a se perder no mirrado estoque do mercado. Sem demora alguns copos com água e conhaque surgem sobre o balcão. O homem bebe primeiro o conhaque.

– Isso é bom, por Jefhar! Precisamos mesmo de uma comitiva para trazer comida e prata para essa secura. Em quantos vem? – pergunta o anão, visivelmente animado.

– Algumas dúzias de serventes, dois nobres protetores e uma penca de seguidoras de acampamento. Chegarão amanhã e irão encher essa praça aí da frente. Devem ficar uns dois dias para descansar as montarias e para a convocação. – responde Louniel, agora tomando água e subitamente lembrando-se dos outros povoados por onde passou nos últimos meses como sinaleiro. Seu trabalho é avisar com antecedência sobre a visita do magistrado e sua comitiva para que os cidadãos em questão se preparem de antemão. Uns enfeitam as cidades, outros escondem seus filhos e outros preparam listas de pedidos. Para Louniel tanto faz, mais duas viagens e está livre, e por este serviço não terá que servir na guerra como milhares de outros homens. Bebe mais uma dose de conhaque.

– Ótimo. Lucro para mim e menos garotos para se preocupar depois, o que posso querer mais? – ri o anão ao servir mais água. Uma mosca gorda voeja e o mendigo libera outro ronco. – Mais alguma coisa, senhor?

– O mesmo que ele bebeu. – Louniel aponta para o mendigo, quer parecer engraçado. Quando se viaja por terras secas tempo demais é justo querer compartilhar alguma alegria com quem quer que seja.

– Vai ser difícil, a não ser que queira mais água. Esse daí não tem grana para se embebedar. – o anão nem olha para o dormente ao comentar. – É somente um louco.

– Mais conhaque então. – pede Louniel.

Enquanto conversa com o anão o sinaleiro batedor consegue ouvir a movimentação se espalhar pelo povoado, a notícia passar de boca em boca, o burburinho, boas novas para um povo sofrido.

Primeiro vieram os cavaleiros e suas imponentes montarias. Chegaram ao fim da tarde, quando o sol arrefece e se pode respirar melhor. Adentraram a praça enfeitada com bandeirolas e iniciaram o levantamento das tendas. Colocaram o trono do magistrado em um pequeno palanque improvisado ao lado de um poço artesiano seco, ao lado a arca com o sagrado ramo da Viisante: a árvore sagrada dos Ouvidares, antigo reino humano pré-queda, queimada sobe o ataque do dragão Mehrartios. Os galhos e ramos restantes estão espalhados pelos continentes desde então e se tornaram objeto de culto por toda Exíllia.

A comitiva chega com as mulheres espalhando folhas secas quaisquer no pavimento antigo, atrás a longa carruagem range languidamente sob o próprio peso, sacode e rincha como que viva ao adentrar a praça onde todos aguardam ansiosos. Muitos ali jamais viram qualquer autoridade real ou algo parecido, somente o cobrador de impostos, e outros tantos jamais verão. É momento de pedir e suplicar, entregar algum filho ao exército e acreditar que o mesmo terá uma vida melhor longe do sertão infértil.

O parar da carruagem é seguido por um silêncio incomum, mesmo uma cadela ao latir de fome e estranheza fora silenciada a chutes e colocada a correr para outra viela qualquer. As mãos pressionadas, untadas em suor, e olhos bem abertos para nada perder. O povo sem notar mais se aproxima da casa sobre rodas enquanto os cavaleiros os mantêm a uma distância segura para seu senhor. E o senhor surge. Abre a portinhola e sob aplausos desce da carruagem. As roupas mais leves que seu cargo permite o empapam em suor e todas as viagens desgastantes não colaboram com seu humor, tornando-o pouco afável no dia. O peso extra ganho com anos de sedentarismo burguês foram amenizados com a falta de todas as mordomias que lhe são comuns, mas ainda lhe sobram dezenas de quilos egoístas para apresentar aos súditos em nome do rei. Caminha sem pressa sobre o palanque, ouvindo-o ranger e pensando em quem matará se aquilo ceder sob seus rechonchudos pés. Assenta-se no trono e se ajeita, ergue o braço roliço e faz cessar os aplausos. Os archotes são acessos nas vielas enquanto o ocaso se finda no horizonte árido. Um menestrel ao lado do trono anuncia o início dos trabalhos da noite:

– Onahf, o puro, magistrado real está presente! Louvado seja Jefhar que ouviu seus clamores nesta terra seca. Antes das apresentações, do recrutamento e das petições iniciaremos com uma oração à Viisante! – o bardo abre a arca e retira com extremo cuidado o grosso ramo ainda enrolado em veludo lilás com o selo real. Coloca-o sobre uma armação metálica apropriada e revela seu conteúdo nodoso e irregular, sagrado. As bocas se abrem assim como os olhos e o povo estático observa com devoção e temor.

Ao término do clamor Onaf começa a ouvir as apresentações, nobres menores e cavaleiros livres, muitos dos quais o seguem durantes as viagens e alguns cidadãos mais abastados da região. Nomes e sobrenomes são proferidos, famílias são exaltadas e brasões erguidos e hasteados em mastros improvisados. Toda a pompa burocrática é seguida a risca. Então o magistrado proclama:

– Ajoelhem-se perante Jefhar, o rei, a Viisante e a mim!

O movimento se multiplica pelo povoado, todo joelho se dobra e as cabeças se abaixam em reverência. Onahf observa a cena, um gesto seu e todos se erguerão, contudo o experiente magistrado gosta do que vê: a submissão, até hoje isso lhe massageia o ego e lhe dá prazer, depois de tantos anos. Estende a situação alguns segundos além do necessário e se delicia.

Então ele surge.

No silêncio submisso coletivo ele abre ruidosamente a porta do armazém com um empurrão. Caminha despretensioso e cambaleante, escora-se em uma parede e retira o membro viril, sacode-o um pouco e urina sem qualquer pudor. Pende a cabeça para trás e abre suavemente a boca, aliviado pelo ato simplório.

Os mais próximos cidadãos notam a situação e paralisam, mesmo os nobres mais distantes, ao redor do palanque, ergueram as cabeças para ver e ainda assim não sabem o que fazer. Seria prudente se levantar sem o consentimento do magistrado e dar um sumiço no mendigo? Ou melhor fingir que nada acontecera e continuar com a cerimônia santa?

Onahf também se surpreende, mas logo se recompõe e pergunta com autoridade:

– Quem és tu para desrespeitar este sagrado momento?

O homem o ignora. Guarda o pau e sai caminhando e coçando a cabeça com um bocejo longo. Um murmúrio crescente se espalha pelos aglomerados, aos poucos as cabeças se viram para entender a situação discrepante.

Onahf sua um pouco mais, seus seguidores se entreolham e o olham cabisbaixos, não podem tomar as rédeas da situação e aguardam que seu senhor o faça. Assim, pela primeira vez em anos, Onahf pergunta uma segunda vez:

– De onde vens para agir com tal repúdio a lei e aos bons costumes?

O homem cessa os passos. Algo muda em sua mente confusa. As últimas palavras proferidas em sequência parecem tê-lo resgatado de um sono profundo dentro de sua própria sobriedade. Gira a cabeça, abre um sorriso largo e responde aos berros:

– VELHO, EU VENHO DA LUA! – abre os braços e seus cabelos, antes caídos, eletrificam-se, tornando-se rijos e espetados como um espinheiro. Uma gargalhada estridente e desconcertante assusta os mais próximos, espalhando-os, quebrando assim o culto santo.

O respeito e reverência são perdidos e tudo se resume à gargalhada insana.

Mediante a notória inaptidão do magistrado em lidar com a situação os nobres avançam, desembainham as espadas enquanto as pessoas saem do caminho, confusas e assustadas. A gargalhada persistia ante o avanço dos homens armados que logo cercaram o insano risonho.

Louniel a tudo observa ainda próximo ao palanque, atônito. Vê os homens estocando e golpeando o ar enquanto o mendigo dança entre eles sem parar de rir com uma graça felina, girando e saltando e confundindo-os com acrobacias e elasticidade incomum. O sinaleiro chega mais perto, contraria a turba que se afasta da contenda e se achega para ver melhor como um ninguém brinca entre fios afiados de seis homens experientes em armas.

A gargalhada engasga-se em dor assim que um talho se abre nas costas do mendigo, que tropeça cambaleante por mais dois passos e soca Hernar Lorefutt com força e técnica, deslocando-lhe o grande maxilar em um estalo ruidoso seguido por um grito horrível. Ambos caem e rolam, atracados no pavimento rústico. Os outros homens decidem por não golpear a esmo para resguardar o amigo e preferem por tentar segurar o maluco. Onahf berra por sobre o palanque:

– Não o matem! Eu quero enforcar o herege e vê-lo dançar! Não o matem!

O magistrado vê seus subordinados agarrando o maldito que se recusa a largar Hernar. Os gritos seqüenciais assustam por não terem motivo aparente. A descarga elétrica sai do corpo do mendigo e se irradia pelo toque para todos os envolvidos, grudando-os em um momento e espalhando-os em outro. Alguns caem imóveis e poucos ainda se contorcem no chão. O insano se ergue trôpego, o rasgo largo aparente no dorso sangra sem parcimônia, cambaleia e se escora na mesma parede que havia urinado, olha na direção de Onahf e vê o magistrado engolir a seco.

– Arc’karraton mandou dizer que os dados estão rolando, mas que o seu lado está visível hoje! – brada o louco. Uma luminosidade macabra emana de seu grave ferimento, pulsa por vezes e o torna uma cicatriz horrenda e larga. A gargalhada retorna.

Os poucos cidadãos ainda presentes, mesmo que de uma distância segura, bradam acusações de bruxaria e maledicências e se evadem por fim, deixam Louniel entre o menestrel atônito, o magistrado que se ergue do trono de modo desajeitado e o louco, que caminha aos risos e caretas rumo ao palanque.

O sinaleiro mal pensa, e sai do caminho, permite que o louco passe e continua a observar. Não se sente capaz de andar ou algo assim tão drástico. Somente observa. Observa o mendigo se aproximar do magistrado e o mesmo berrar para que o menestrel o defenda. O pobre bardo treme com o gordo às suas costas e o louco à sua frente, rindo.

– Corra maldito! Corra! Corra até suas pernas descolarem do corpo porque vou atrás de você, bardo fajuto filho da besta! – grita o louco.

O menestrel se move tão rápido que derruba o magistrado em sua fuga, deixando rastros de urina e um gordo perplexo e assustado no solo.

O louco se aproxima e observa Onahf retirar um antigo revolver trabalhado em marfim e madrepérola. O gordo aponta o artefato e ordena:

– Afaste-se em nome do rei! Afaste-se e me deixe em paz!

– Paz é uma boa palavra, um conceito digno e honrado, na teoria é claro. – o louco força o passo e o gatilho é pressionado, mas a arma falha. A idade da arma, talvez a falta de manutenção ou somente o caos, nada será explicado. A natureza não se explica, descubra você.

O louco retira a arma das mãos do indefeso magistrado, uma ruína humana que somente consegue balbuciar palavras desconexas assim que sua mente começa a se desfazer e inicia o processo de declínio racional consciente ladeira abaixo.

– Não... Você... Não pode... Magistrado... Eu... Rei... Não pode... Você... – balbucia Onahf com olhos parados e perdendo o foco, a boca fecha e abre sem emitir sons reconhecíveis.

– Esperto. Querendo fugir não é? Se esconder nessa cabeça oca e careca. Não vai dar certo, volte para mim. – o louco penetra alguns dedos na boca entreaberta e segura a cabeça com a outra mão. O arranco é tão forte que estala quando a bochecha se rompe com a pressão, tracionando Onahf de volta a realidade crua, com um rombo na face e um pesadelo risonho à frente. Os gritos são guturais, viscerais e vermelhos.

Louniel, ainda incapaz de reagir, vê o louco ir às lanternas a querosene e pegar duas, retornar e despejar o líquido por sobre sua vítima e atear fogo, a seda e o cetim não demonstram nenhuma resistência. Os gritos pioram. Muito. E o magistrado ganha forças para se levantar em chamas e correr, tropeçar cair tornar a se levantar e voltar a tentar correr, aos tropeços.

O louco acompanha com o olhar e o detêm ao ouvir algo.

– Você ateou fogo... O magistrado está pegando fogo. – comenta Louniel, sem entender por que.

– Tem razão. – responde o louco. – Não podemos deixar assim. – finaliza. Reaproxima-se do palanque e tenta retirar as hastes metálicas que seguram o ramo da Viisante, ao perceber a imobilidade dos mesmos retira o próprio ramo sagrado e corre rumo a sua vítima. Espanca-o sequencialmente em meio às gargalhadas até que pare de se mover, muito depois de o fogo ter se extinguido.

O louco respira ofegante e limpa o suor da testa, sujando-a com sangue. Observa o ramo sagrado e decide por tomá-lo para si. Não pelo cunho santo e sim pela resistência incomum a impactos potentes e sucessivos. Se pega sendo observado por Louniel que ainda estático se pergunta sobre sua própria situação nisso tudo. Ambos se olham e o assassino pergunta:

– E então, o que aconteceu aqui hoje? – abre o sorriso e se aproxima do sinaleiro.

– Você matou várias pessoas, destruiu um culto sagrado e desrespeitou as leis do rei. – responde Louniel, de forma muito mais rápida e prática que se acharia capaz.

– Não, não, não. – o dedo indicador negativa ao sacudir de um lado a outro. – Eu me defendi contra um grupo que quis me matar, findei a vida de um parasita capitalista, livrei essas pessoas de credos imbecis e lhes dei comida e água para enfrentar esse verão terrível. – rebate o louco, apontando tudo da comitiva que acaba de ficar sem dono.

Louniel pensa um pouco e somente diz:

– Não. Isso está errado.

– Sim, claro. Se houvesse algum herói ou algo parecido eu poderia ter problemas para explicar meu ponto de vista. Tem algum herói aqui? – pergunta o louco. Volta-se para as casas trancadas e insiste. – Alguém? Algum herói? Somente um! Algum? – retorna a olhar Louniel. – Algum herói por aqui? – erguendo uma sobrancelha.

– Não. Nenhum. – responde Louniel. Suando frio.

– É o que parece. E isso prova meu ponto de vista. Da próxima vez deixe-os queimar. – o louco dá dois tapinhas no ombro do sinaleiro e se despede com um sorriso, seguindo rumo ao poente com o ramo ensanguentado da Viisante e botas boas para viagens longas.