Os Estressadinhos

OS ESTRESSADINHOS

O sujeito estava no maior porre na porta de um boteco, feliz da vida. Era um morador conhecido da população, boa praça, dono da única banca de jornal do lugar, mas que depois das 19 horas gostava de beber e bebia muito.

De repente apareceu uma procissão descendo a rua principal da cidadezinha. Era a padroeira do local, reverenciada há mais de um século pela população de pessoas simples, muito devotas, crentes e esperançosas nos milagres da santinha. Das localidades vizinhas vinham muitas outras rezar e pedir graças especiais. Era uma festança, com fogos de artifício, jogos e comilanças, nas barraquinhas na praça em frente da sóbria e centenária Igreja, construída nos anos finais do sec. XIX, a única da cidade...

Centenas de pessoas reunidas, carregando ordeiras e contritas uma Santa num andor, toda decorada de verde e rosa, na rua estreita da pequena cidade do interior de Minas Gerais.

O bêbado ficou parado, quieto, copo vazio na mão, olhando com os olhos arregalados o povo que passava rezando. Tirou o chapéu de palha em respeito à Santa. De repente ficou alvoroçado e berrou bem alto:

- Olha a Mangueira aí, geeeente!

Enfezado, o padre se vira pro bêbado e esbraveja:

- Olha a falta de respeito, seu excomungado! Fique aí com o seu vício, quieto e calado, e nos deixe em paz com a nossa fé!

Muitos dos romeiros acompanharam o vigário na sua brabeza. Secundando-o diziam, entre os rogai por nós que repetiam sem parar, ritmicamente: - mal educado, bêbado sem vergonha, tenha respeito pela Santa seu infeliz.

Mal o padre acabou de falar, a Santa bate com a cabeça no galho de uma mangueira, cai e se espatifa toda no chão.

A procissão para. O Padre, as beatas e os beatos, o povo que acompanhava a marcha, não mais caminham, todos estupefatos. O que fazer? Continuar só com o andor? Catar os cacos da Santa para restaurá-la? Acabar com a festa e mandar todos para a casa? Continuar com a procissão sem a Santa?

O bêbado falou da porta do bar, meio sorrindo, meio babando, mal se agüentando em pé:

- eu avisei... Mas o padre e os procissioneiros são todos uns estressadinhos..., não quiseram me ouvir.

- Pensaram que eu estava saudando a Mangueira, a gloriosa Verde Rosa do carnaval carioca – grande e gloriosa Mangueira. A que tem a melhor bateria, a melhor tocada de bumbo, a que bate uma marcação dobrada. Querem ver como é? E passou a bater, com as mãos cerradas, na porta do bar: BUM bum, BUM bum...

- Não escutaram e aí está: deu no que deu... Foram logo, cheios de stress, esculachando e chingando o aviso que eu dei de bom grado. Bem feito. A Santa não merecia este fim – até que era bonitinha... Vocês todos são os culpados.

- Parem de ficar abestalhados aí na rua com cara de vaca que perdeu a cria. Escutem a voz da sabedoria que sai da minha boca: - não percam a noite. Encham de mangas esta porra que estão carregando aí, vazia, sentem no chão, comam as frutas que estão maduras e gostosas. A árvore está carregadinha. Depois vão dormir felizes, de barriga cheia. A Santa, pobrezinha, vocês podem ver, se lascou toda... Aproveitem gente boa, aproveitem.

O Padre viu o seu mundo desabar. A procissão preparada e ensaiada há meses estava liquidada, o maior e mais importante evento da paróquia. O que dizer aos fiéis que estavam à espera de uma orientação sobre o que fazer? Não se conteve: deixou de lado as suas ovelhas e desesperado entrou no bar, todo paramentado, olhou furioso para o bêbado e berrou para o dono:

- por que não cortaram a merda daquele galho?

A seguir, como era de se esperar de um religioso, paramentado, falou alto uma frase, mas já na tonalidade decrescente, terminando num quase sussurro:

- porra seu moço, cagaram minha procissão. Me dê duas cachaças, agora: uma para a Santa e outra para mim.

Segurou o primeiro cálice e jogou seu conteúdo no chão, para surpresa tristonha do bêbado. Bebeu o segundo de um gole só e disse baixinho:

- põe outra prá mim, a Santa não bebe muito.

O bêbado chegou rápido ao lado do Padre e disse:

- Reverendo, companheiro de desgraças inexplicáveis, fui eu que avisei do galho, mereço uma dose também, não tenho culpa se não me deram atenção.

- O Padre olhou com os olhos semicerrados, fruto da intensa meditação teológica raivosa a que se dedicava naquele momento de decisão e disse para o dono do boteco:

- bota uma aí prá este infeliz profeta que não foi ouvido e mais uma aqui para o vigário deste cú do mundo...

E assim a noite foi passando. No firmamento Orion, o caçador, se pondo no horizonte, a oeste, para escapar da picada do Escorpião, enviado por Atenas – deusa protetora dos animais, que aparecia no outro lado do céu, no leste. As constelações contavam histórias mitológicas, marcavam o tempo e embelezavam o ambiente. O Padre e o bêbado, totalmente alcoolizados, sentados na calçada, cantavam, sem parar, música pouco canônica, do Chico Buarque, aos altos brados:

“... Mangueira teu cenário é uma beleza

Que a natureza criou

O morro com seus barracões de zinco

Quando amanhece que esplendor

Todo mundo te conhece ao longe

Pelo som dos seus tamborins

E o rufar do seu tambor

Chegou ô, ô, ô, ô

A Mangueira chegou, ô, ô...”

E aí se abraçavam, velhos amigos que se tornaram, rindo até se mijarem nas calças. Perderam a voz e a consciência e se puseram a roncar, estirados na calçada.

Os fiéis, comidas as mangas, que estavam muito boas por sinal, voltaram para casa, pois o resto do que sobrara da procissão: o andor, os livrinhos com os cantos e as ladainhas, os tocheiros, o toldo de seda, as velas meio queimadas e os restos da Santa, já não era mais assunto deles...

Fez-se um silêncio total na cidade. Um vento fresco começou a soprar mexendo de leve as árvores. Ninguém mais nas ruas.

A Santa, vagarosa e silenciosamente, recolheu seus cacos, limpou seu manto, recompôs-se toda, passou a mão no calombo que se erguera na sua testa, olhou em volta, persignou-se e riu bastante e alto – uma gostosa gargalhada:

- madeira dura esta que me acertou, estou com um “galo” enorme na testa.

Voltou os olhos para o céu, viu o Cruzeiro reluzente reconhecendo, nele, o rosto do Salvador, bem no meio das estrelas e disse:

- perdoai-os Senhor, eles não são maus, só que beberam além da conta, não viram o galho da mangueira e com minha queda ficaram desnorteados. Os outros não queriam rezar, gostaram mais das mangas, estavam com fome, e já foram dormir. Aqueles dois ali vão acordar envergonhados pelo que disseram. Eu já me acertei e vou voltar a pé para o meu lugar, no altar da Igreja. Não se embraveça nem se entristeça Senhor, por favor, é gente boa esta aqui da cidade. É pouca coisa face da grandeza do seu Plano de Salvação e da sua Mensagem Evangélica.

E o Senhor, lá do alto, no meio das estrelas, lembrou-se das tradições do seu povo, os judeus, daqueles que habitavam a Bessarabia no início do sec. XX, precisamente na cidadezinha de Britchon e disse, com voz cansada, entonação jocosa e sorriso maroto no rosto, um dito dos moradores do local, de fina ironia:

-“não temos com quem ir para a guerra...”.

- Boa noite minha filha. Volte para o seu lugar lá na Minha Igreja e continue a inspirar algumas orações sinceras, aquelas que me agradam e sensibilizam. Só assim, aos poucos e com muita paciência, imagino ser possível divulgar o Meu Evangelho.

Dizendo isto continuou o seu passeio pelas galáxias, fazendo-as rodopiar esplendorosamente com seus passos, chutando umas para lá, outras para cá e com as mãos achatava umas e espichava outras. Assim procedendo, num trabalho continuo de supervisão da sua criação evolutiva, mantinha a razão e o sentido da existência do Universo. Arrumava, com cuidado especial, os astros, os campos de força, as curvaturas do espaço/tempo e os elementos que os constituíam, com a intenção de, fazendo-se conhecer por Suas obras, também expressasse o Seu poder criador ao preparar todo este extraordinário cenário para abrigar, em condições favoráveis, a eclosão da vida consciente e livre, da vida humana.

- Estes homens e mulheres estão custando a perceber que desde a primeira partícula que criei, foi Minha intenção que o bêbado da porta do bar pudesse gritar, como gritou, livre e alegremente: “olha a Mangueira aí, gente”. Morri e ressuscitei, lhes dei de presente o meu Evangelho, a minha Boa Nova, não para condenar um porre ou o fim desastrado de uma procissão, por desinteresse dos fieis que dela participavam. Não entenderam que Estou, desde antes do início do infinito, gritando junto com meu Pai e com o Santo Espírito, um poema de amor, de amor pelas pessoas, já que sou o Amor Perfeito.

- Os teólogos e filósofos, Papas e Bispos, fizeram uma confusão fantástica com minha mensagem simples, feita com palavras simples, escolhidas com o cuidado para que pessoas humildes e analfabetas pudessem entender. Não sei como meus fieis e os meus pastores vão desatar este nó apologético, que construíram com a intenção de me defender e passem a entender e a ensinar que Eu sou só Amor. Tudo o que preguei só tem sentido se for percebido como um caminho para o abraço e o beijo do Amor pleno, isto é, dos homens e mulheres se integrando em Mim, num novo e especial renascer, com uma só intenção de fazer o bem e evitar o mal. O Teilhard de Chardin acertou ao falar na Cosmogenese - “tudo que sobe converge”- a integração total, do Cosmo inteiro, no fim dos tempos, no meu corpo Ressuscitado, Salvador e Redentor da Humanidade que Sou. É por aí, é por aí que vão poder me entender, não listando pecados ou condenado um porre de padre. Estão todos muito estressados, muito estressados...

- Com medo de não Me entenderem construíram uma selva teológica quase que intransponível para a maioria dos meus filhos e filhas. Depois do Agostinho, do Tomas e do Francisco, deveriam ter parado de escrever tentando dizer o que Eu sou e como sou e se dedicado mais a rezar e abraçar os pobres. Às vezes parece que Deus não é o que Sou, mas o que eles afirmam que Sou, ora bolas... Tornaram a minha Igreja, criada para ser uma comunidade simples e fraterna de convivência e oração e a tornaram uma vasta instituição burocrática, com papeis carimbados, permissões, indeferimentos, hierarquias, que até para mim, às vezes, é difícil de entender aonde meus queridos pastores querem chegar. O bêbado estava certo, estão todos muito estressados lá na minha Igreja...

Nosso Senhor continuou a falar consigo mesmo na sua caminhada cósmica. Sabia que mesmo entre os santos e santas, só alguns poucos o entenderam o suficiente para amá-Lo exemplarmente: o Francisco que nem padre era, a Tereza de Calcutá que só queria abraçar os miseráveis moribundos das cidades indianas, a Dulce baiana que pretendia abrandar o sofrimento dos pobres da Bahia, a dinâmica espanhola Tereza que discutia com Ele e a Terezinha que se entregara por Ele, o Cura d’Ars que ouvia por horas e horas as confissões das almas aflitas que precisavam de alguém para simplesmente escutá-las e o Marcelino que se encantava em poder ensinar as criancinhas a ler e escrever.

- Os bêbados e os pobres, aqueles que nada mais tem o que fazer ou a esperar da vida, a não ser contemplar o que se passa ao seu redor, tentando entender o Meu amor por eles, me atraem sobremaneira, pensava o Senhor, caminhando no chão de estrelas.

- Amor complicado este meu: já estou percebendo isto há muito tempo...

- Preciso inspirar um desses Papas para que instruam os religiosos e religiosas a começarem os seus estudos lendo o Fernando Pessoa, precisamente a sua poesia belíssima – a Liberdade - onde sentencia, com rara sabedoria o entendimento da Minha Pessoa: “... Grande é a poesia, a bondade e as danças.../Mas o melhor do mundo são as crianças, /Flores, música e o luar, e o sol, que peca/ Só quando, em vez de criar, seca./ O mais do que isto/É Jesus Cristo,/ Que não sabia nada de finanças/ Nem consta que tivesse biblioteca...”

- Não me importei com o acontecido com a procissão e os palavrões. Até achei graça com a confusão que se estabeleceu. A Santa está certa, todos são gente boa. Os meus pastores e os meus fieis precisam aprender a rir. Deixarem de ser tão sérios o tempo todo. Um Bispo meu lá no interior do Brasil, em Lins, disse: – “Deus é amor e humor...”, um piadista este Bispo, um piadista, mas está certo...

- Começo a acreditar que usei pouco vinho nas minhas narrativas e nenhuma manga... O povo gosta de beber e de comer frutas. Que gostosa esta tal de manga que Eu criei. Aprecio muito. Como a árvore ficou linda, bem copada, com uma tonalidade verde que não sabia que Eu era capaz de fazer surgir no bojo da evolução.

- Talvez se tivesse usado vinho, cerveja e mangas em maiores proporções e com mais intensidade, nas Minhas falas, seria melhor entendido e aceito e Minha pregação tivesse tido mais sucesso.

E lá se foi o Senhor a caminhar por entre as estrelas, cuidando de cada detalhe da sua obra, ainda rindo do acontecido com a procissão...

Eurico de Andrade Neves Borba, 71, Ana Rech, Caxias do Sul, janeiro de 2012.

Eurico de Andrade Neves Borba
Enviado por Eurico de Andrade Neves Borba em 11/01/2012
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