Palavras que aprisionam

E ENQUANTO O TEMPO PASSAVA, O CORPO APODRECIA MAIS.

FIM ”

Fito essas últimas palavras e me regozijo. Foi um final trágico, mas satisfatório. Agora, é só procurar uma editora que publique meu livro. Talvez demore algum tempo, porém, tenho certeza que, quando publicado, fará um sucesso estrondoso.

O livro se passa no velho oeste, e conta a história de Henry Sill, um homem honesto e humilde que sofre muito na vida e um dia resolve se vingar; eu espelhei meu homem ideal nele, por isso ele é perfeito. Sempre gostei do universo de faroeste. Aprendi tudo o que sei em livros, filmes, quadrinhos e com meu pai, que dividia essa paixão comigo. Então um dia resolvi criar um romance baseado nisso. Demorou alguns meses e hoje, finalmente, terminei.

Olho o relógio, que marca três horas da manhã. Resolvo ir dormir. Já desligava o laptop, quando abruptamente, a tela treme. Uma sombra sai dela, se transformando num homem. Percebo que é Henry Sill, meu personagem.

Esfrego os olhos. Com certeza estou tendo alucinações. É isso. Depois desse dia estressante...

Entretanto, Henry Sill ainda continua onde está. Mesmo me convencendo de que é uma ilusão, a imagem não desaparece.

O choque some e me dou conta da situação. Eu estou frente a frente com meu personagem, o personagem que inventei. Isso é fantástico!

Observo Henry. Quero dizer, admiro. Sim, sim. Ele é exatamente como eu imaginei. Mas, também, ele é uma criação minha. Lembro-me de um trecho do manuscrito, em que o descrevo perfeitamente:

“[...] Então um homem adentrou o cômodo. Ele era alto e moreno, suas vestes eram austeras, tal como sua pessoa. Carregava no coldre uma pistola, que deixava à vista. Lançou um olhar de desprezo a todos no bar, como se fossem um bando de lixo. [...]”

Sill, que até aquele momento também me observava – não sei se admirava –, ajeitou o chapéu de couro e falou com uma voz carregada de tensão:

– Foi você quem fez a porcaria da minha vida?

Apesar do tom ressentido, noto um quê de surpresa na sua voz. Por que eu sou mulher, claro. Feria o orgulho dele, um homem tão másculo, ter sido criado pelo sexo frágil.

– Sim, fui eu – ignoro o “porcaria” –. E quanto a você, nem preciso perguntar quem é. Contudo, não entendo uma coisa. Como veio parar aqui?

Henry dá um sorriso pálido antes de responder:

– Ah, foi facílimo. Já ouviu aquele ditado, sempre termine o que começa? Pois bem, você não terminou minha história. E o final é como uma porta. Sem ela, dá para sair normalmente. Só precisei achar o caminho e pronto.

Isso explica algumas coisas. Mas não tudo.

– Eu terminei sim!

Dessa vez, o sorriso dele torna-se cínico:

– Você não pôs um ponto final. Às vezes, pequenas coisas fazem grandes diferenças.

Droga.

– Tá, agora sei como você veio parar aqui. E o por quê?

O seu semblante escureceu, e esse fato só acontecia quando ele ficava muito irritado.

– Querida – ele começou, irônico –, você ainda não adivinhou? O motivo é simples. Quero que reescreva minha vida. O que é muito justo, levando em conta que você a escreveu de um jeito completamente errado.

– De um jeito completamente errado?! Eu te inventei. Eu criei o enredo. O meu jeito é o certo. Se não está satisfeito, azar o seu. Não vou refazer nada. Aposto que você nem é real.

Ele me olha com uma raiva mal contida e agarra o meu braço.

– Real o suficiente pra você? – ele afrouxa as mãos e fala, mais brando – Olha, você vai sim reescrever a minha história. Porque a vida que me deu é uma mentira. Eu sou completamente o oposto.

Me desvencilho e esfrego o lugar onde ele pôs as mãos.

– Oposto? Não, você é exatamente como eu imaginei.

Ele revira os olhos. A irritação tinha voltado.

– Não digo fisicamente e sim internamente. Eu vivia sob pressão: queria ser eu mesmo, mas alguma coisa me impedia. Você, obviamente.

A situação, que antes parecera fantástica, ficou muito estranha. Penso no que ele falou. Há sim algumas diferenças, embora sutis. Mesmo assim, não dou o braço a torcer.

– Não importa. Você devia estar satisfeito por eu ter te criado, não criticando meu trabalho. Sem mim, você nunca existiria. Então, que tal voltar para o livro, de onde nunca devia ter saído?

Henry fecha os olhos e respira fundo, como se temesse perder a calma que lhe restava. Quando os abre novamente, me olha diretamente e quase cospe as palavras.

– Vou te dizer uma coisa, querida. Você acha que é bom ter seus sentimentos e atos controlados, mesmo sendo um mero personagem? Não é. Você sabe como minha vida foi uma merda.

Sim, eu sei. Foi mesmo uma merda. Recapitulo tudo na minha mente: a infância alegre dele e o assassinato do pai por um bando de ladrões. O sentimento de vingança que nasceu e foi consumado anos depois, quando Henry matou o líder do bando. O amor que ele ganhou e perdeu cedo demais. Sua segunda vingança, muito mais perigosa que a outra e depois de realizá-la, sua morte.

O remorso começa a brotar em mim, mas o sufoco. Além do quê, como eu iria saber que um dia, o protagonista que criei apareceria para mim, exigindo mudanças na sua história? E eu ainda não estava completamente convencida de que isso não é uma alucinação.

– Ei. – sua voz fica suave e ele segura delicadamente minhas mãos. – Por favor. Eu estou implorando. Você me conhece bem, sabe que eu nunca faço isso. Nem precisa mudar muitas coisas, só quero um pouco de paz. Não estou pedindo muito, estou?

Ah, aqueles olhos. O verde intenso brilhava, hipnotizante. Me vi concordando.

– Tudo bem. No entanto, mudarei somente algumas partes e pronto. Depois disso... – De súbito, uma idéia me ocorre. – Pensando bem, talvez fosse mais fácil eu pôr um ponto final no romance e você desapareceria.

– Ai, será você ainda não entendeu? Eu não te disse que o final era como uma porta? Não importa se você fechá-la, porque já estou do lado de fora.

– Na verdade, isso é meio confuso. – digo – Se você pôde sair, por que nenhum outro personagem pôde?

Ele pensa um pouco e responde:

– Acho que depende do personagem. Alguns têm a essência mais forte, pois os autores botaram seus próprios sentimentos neles. Isso, aliado a uma força de vontade nata, que no meu caso foi queres mudar o destino, destrói a tênue linha da realidade e fantasia.

Henry está certo. Eu realmente coloquei meus sentimentos nele quando o fiz pensando no homem ideal. E, embora nunca fosse admitir, ele é muito mais sexy do que as pálidas imagens que eu tinha na mente.

Antes que meus devaneios tomassem o rumo errado, ele aperta minhas mãos e fala:

– Então temos um acordo, ok? Você reescreve a minha história e ambos ficamos felizes. Eu, por ter a vida que sempre quis, e você por estar ajudando um pobre homem.

Ele sorri. Um sorriso contagiante, e me vejo sorrindo de volta. Aperto suas mãos também.

– Sim. Temos um acordo.

CONTINUA...

19/10/11