A Companhia Rubra: Capítulo 1.
(essa história faz parte das Crônicas Ébrias, que podem ser lidas separadamente, faz fazem parte de uma mesma grande história)
“Tem alguém chegando.” – Disse Jethro.
O garoto de quinze anos estava sentado na parte de fora da pequena torre de pedra, próximo a entrada dela, apoiando as costas na parede e comendo uma maçã, quando viu uma figura montada ao longe. Ela estava saindo da floresta que enfeitava o horizonte e ficavam além da grama verde e curta que cobria a maior parte do chão daquela planície, cedendo espaço apenas para algumas rochas e arvores solitárias e espaçadas. Uma delas era macieira, e os homens que ficavam na torre tinham o costume de alimentar-se de seus frutos durante os turnos.
“Vá lá ver quem é.” – Respondeu Othar, de dentro da torre. O homem de olhos apertados e cabelos curtos escondidos embaixo de uma bandana permanecia sentado em cima de uma cadeira de madeira apoiada para trás, enquanto mantinha os pés cruzados sobre a mesa de pedra gasta. As portas de madeira escura, abertas para dentro, lhe dariam a visão do lado de fora, mas ele sequer virou o olhar para conferir o que vinha. Permanecia com a cabeça para trás, meio dormindo, os braços caídos para baixo, a boca entreaberta por vezes escorrendo baba ou emitindo sons de ronco. Othar estivera assim a manhã inteira.
“Por que devo ser eu?” – Jethro já havia se levantado e iria de encontro ao cavaleiro de qualquer forma, mas não perderia a oportunidade de atiçar o companheiro por sua preguiça.
“Por que a chuva cai quando as nuvens ficam escuras? Por que o dia dá lugar para a noite?” – Retrucou o homem, numa voz desanimada e cansada.
Jethro soltou uma meia risada e deu as costas. Seu amigo Othar não era o mesmo desde que Dulla, a grande e desejada guerreira de cabelos cor de areia, havia começado a passar suas noites na cabana de Grannair, um dos quatro Comandantes da Companhia de Armas da Floresta Rubra. Desde então, bebia cada vez mais, e hoje carregava consigo as conseqüências da noite anterior. Era orgulhoso o suficiente para não queixar-se do mal estar e nem deixar com que outro tomasse seu turno na vigília da torre, mas estava longe de ser de grande utilidade ali.
Não que precisasse. Pouco acontecia naquelas regiões de Nyeberum, longe dos grandes castelos e das grandes cidades, tão ao leste das Terras Altas e ao sudoeste de Dyerna. O contingente do qual Jethro e Othar faziam parte era cerca de um terço do total de homens da Companhia, e aguardava o retorno do resto num pequeno vilarejo sem nome próprio, há uma boa distância dali. A torre na qual estavam os dois fora algum dia usada para algum fim, sem duvida, mas nenhum dos camponeses sabia dizer para o que. Era longe o suficiente de suas moradias e plantações para que não se dessem ao trabalho de habitá-la, mas para os mercenários era de alguma serventia, portanto sempre havia quatro homens nela, alternando em turnos de doze horas a cada dez dias, quando todos eram trocados. A torre ficava em uma grande clareira entre bosques e florestas que separavam-na da Grande Estrada, do pequeno vilarejo e do lago que servia de maior fonte de água na região.
A única companhia que tinham na construção de cinco andares baixos na qual estavam era uns dos outros, e por vezes do Lenhador Utt, um velho de peito estufado e braços fortes que mantinha uma cabana na floresta ali próxima e tinha um cachorro peludo e cansado que o seguia por aí. Utt era um homem simples e de poucas palavras, mas as vezes compartilhava a fogueira com os mercenários que mantinham vigília na torre e lhes dava alguma caça em troca da bebida que carregavam. Na noite anterior, quando Othar e ele compartilhavam um garrafão de vinho, chegou até mesmo a contar uma história a respeito de um monstro na floresta, mas Jethro acabou dormindo logo no começo dela. Sabia que precisaria estar em boas condições para o seu turno amanhã, mesmo que o companheiro não estivesse. Lembrava-se de ter fechado os olhos quando Utt falava algo sobre “Dentes grandes e afiados”...
Mas o que vinha na direção na torre não tinha nada a ver com isso. O homem avançava rapidamente inclinado sobre um cavalo marrom, e já havia atravessado dois terços do caminho quando diminuiu o trote para ficar frente a frente com Jethro. O desconhecido estava coberto com um velho manto de lã cinzenta e um gasto chapéu de palha com aba grande e redonda que cobria boa parte de seu rosto e o protegia do sol forte daquele final de tarde com poucas nuvens.
“Salve, companheiro.” – Disse ele, quando o cavalo parou. Levantou a mão direita com a palma aberta na frente de si, e com a esquerda retirou o chapéu. O manto abriu-se com o movimento, pendendo atrás de si como uma capa, e embaixo dele havia um longo e surrado casaco bege aberto com golas altas levantadas e cheio de bolsos.
O homem tinha um rosto magro, marcado e esburacado, como se faltasse carne para separar a pele dos ossos em alguns pontos, e noutros houvesse sido bicado por um pica-pau. No lugar de suas bochechas, duas cavidades pareciam afundar em sua face. Seus olhos cansados eram de um verde escuro que estranhamente flertava com o marrom, enquanto o cabelo emaranhado castanho-claro com grandes entradas dava a impressão de que sua testa cheia de dobras fosse maior do que realmente era. Lábios finos formavam um largo e contente sorriso que não mostrava dente algum. Ele aparentava ser alto, mas o modo curvado como se sentava sobre o cavalo diminuía um tanto sua altura.
“Salve, viajante.” – Respondeu Jethro, também levantando a mão direita em cumprimento. Era um sinal de amizade comum entre mercenários e em situações de diplomacia. A mão direita era comumente a mão que empunhava a espada, e levanta-la deixava claro que não havia intenção de agressão entre estranhos.
“Trago noticias de Andward e seus homens. Eles chegarão dentro da próxima quinzena, assim que se livrarem dos bandoleiros da ponte de Hyvttain, e esperam encontrar e unir forças com Grannair e Lorde Vaethro e seus homens nesse vilarejo para a futura campanha.” – Disse ele.
“Ele devia conferir com certeza de que eu faço parte do grupo antes de falar isso.” – Pensou Jethro. Esse tipo de informação, nas mãos erradas, poderia dar aos inimigos da Companhia a chance de uma emboscada. No ramo dos mercenários, palavras eram tão perigosas quanto qualquer lâmina, haviam lhe dito.
Observou-o por um momento, e disse: “Como você sabe que eu faço parte do bando?”
“Ah, não se ofenda pela minha pressa em liberar minhas noticias. Cavalgo há muitos dias, estou cansado e com a bunda doendo. Fui informado de que estariam num vilarejo próximo, mas que possuiriam homens na torre próxima ao fim da floresta.. Mas foi de olhá-lo que eu tive certeza de que era um dos Rubros, como eu. Você possui o rosto de seu pai.” – Disse o homem, sorrindo, enquanto colocava o chapéu de novo e se ajeitava na sela.
Era verdade. Jethro era sempre comparado com o pai por seus homens, e muitas foram as vezes que disseram que tinha seu rosto. No começo, anos atrás, quando havia sido levado pela primeira vez a um acampamento dos mercenários, fora zombado por muitos. “Não tem como um garoto tão ruim com a espada ser filho de Lorde Vaethro.” – Diziam. Mas com o tempo, conforme aprendia, melhorava e se adaptava, foi sendo comparado com o pai em várias outras coisas além do rosto.
”Seja bem vindo, então.” – Disse, enquanto fazia um sinal para que o seguisse até a torre. – “Vamos lhe arranjar comida e um pouco de descanso, e partimos amanhã para o vilarejo. Como é seu nome?”
“Sou Aart.” – Respondeu o homem. – “É um prazer conhecê-lo, jovem Lorde Jethro.”
“O prazer é meu.” – Disse polidamente. Eram poucos os homens que lhe tratavam melhor por sua suposta origem nobre – geralmente era justamente isso que faziam com que o chamassem por nomes ofensivos ou lhe dessem as piores funções – mas sempre que o faziam, ele respondia com a educação que lhe fora ensinada quando menor. Agora, mais velho, desconfiava que ter sido tratado como um garoto qualquer durante os últimos anos pela maioria dos membros da Companhia fora parte da criação proposta pelo pai, que repudiava os tratamentos nobres e queria transformar o filho na sua visão de um homem de verdade. Por isso, Jethro estava agradecido. No começo fora difícil – ele era acostumado demais com certas cortesias, costumes e idéias da nobreza Nyeberdiana - mas eventualmente acostumou-se com a viver entre os mercenários sujos, brigões e beberrões, e agora imaginava a vida pela espada bem melhor do que a cheia de bailes, sedas, cores e vestimentas espalhafatosas, embora vez ou outra ainda sentisse falta de certos aspectos da infância.
Jethro levou o batedor até a torre, e lá o apresentou para Othar, que deu um grunhido de cumprimento e voltou a fechar os olhos. Jethro levou-o até onde haviam estocado os mantimentos, serviu-o com água, queijo e o que sobrara da carne salgada de cervo trazida pelo Lenhador Utt, e por fim ofereceu-lhe uma cama de palha no terceiro andar da torre, enquanto outros dois mercenários descansavam no segundo. A torre era pequena e seus andares estreitos, mas poderia muito bem acolher seis homens apertados em cada um. Entretanto, Othar roncava alto demais, e Jethro, de sono leve, odiava o barulho o suficiente para dormir ele próprio no andar de cima, e ofereceu sua cama ao visitante. Ficara acertado que ao anoitecer, quando os turnos trocassem, ele seria levado até o acampamento, onde estava o resto do grupo.
”Fico agradecido.” – Respondeu Aart, por fim, e acomodou-se para dormir. Após isso, Jethro desceu, terminando a ultima seqüência de degraus com um pulo. Othar tomou um susto com o barulho, e sua cadeira de madeira caiu para trás, fazendo um grande barulho.
“O QUE???” – Gritou o homem, num susto, se levantando e olhando para os lados, assustado.
“Não foi nada. Acho que você pegou no sono.” – Disse Jethro.
“Ah..” – Respondeu Othar, levantando a cadeira e sentando-se de novo, dessa vez com os pés apoiados no chão. Ele esfregou o rosto e colocou as mãos na testa. - “Que tal você levar o homem para a vila? Eu fico até você voltar.”
“Tem certeza que não ir comigo? Nossa vez acaba daqui dois dias. Podíamos ir agora, e arranjar um jeito de nos substituírem mais cedo. É melhor do que ir e voltar pela floresta.”
“Não..Eu vou ficar por aqui. Não quero voltar para a vila agora..” – Disse, e suspirou.
Jethro sabia que se tratava da paixão do homem por Dulla, e do desprezo que sentia por Grannair, mas sabia também que ele só falava a respeito disso quando bebia, e que evitava o assunto quando sóbrio. Preferiu não discutir.
“Certo. Eu levo ele, você fica. Talvez eu não volte, se tiver sorte, mas mando alguém no meu lugar.” – Respondeu. Já estava cansado de ficar naquela torre. As maçãs eram boas, mas havia comido mais do que o suficiente por um bom tempo, e passado dias demais sentado do lado de fora, olhando para o nada. A chegada de Aart fora uma benção inesperada. Lhes fora dito que os homens de Andward eventualmente os encontrariam no vilarejo, mas não esperou que fosse tão cedo, ou que passariam pela torre na clareira da floresta em seu caminho. Não tardaria para que seu próprio pai retornasse, e então a Companhia estaria completa, e iniciariam uma grande campanha, da qual sabia pouco a respeito, mas esperava ter conhecimento quando a próxima reunião acontecesse, na qual se tivesse sorte seria convidado a participar. Estava cansado de ficar de fora desse tipo de coisa.
Passou o resto daquele dia ansioso. Ficou um bom tempo jogando sua adaga contra a árvore de maçãs mais próxima, tentando acertar alguma, e na maioria das vezes conseguiu. Quando se cansou disso, praticou um pouco com a espada longa de aço comum que havia conseguido do estoque, dando algumas dezenas de golpes no ar, se acostumando com o peso dela, como havia aprendido um bom tempo atrás. O céu já estava escurecendo quando acabou, e retornou para dentro da torre. Tertt já havia acordado. O alto mercenário de vinte e tantos anos tinha grandes olheiras, pele pálida e cabelo escuro curto, e comia um pedaço de pão no primeiro andar, sentado contra a parede.
”Acordou primeiro?” – Perguntou Jethro, brincando, quando o homem lhe cumprimentou. Seu companheiro de turno, um jovem e magrelo ex-fazendeiro chamado pelos outros de Nabo, que havia fugido para ganhar a vida entre os mercenários, sempre acordava depois dele, e tinha que comer e se vestir depressa, enquanto os outros três o atiçavam e exageravam a importância de estar pronto para o inicio do turno no tempo certo.
“Eu nunca vi ninguém que gostasse tanto de dormir quanto aquele filhote de fazendeiro.” – Respondeu Tertt. – “Sorte a minha. Só tinha mais um pão.”
Jethro lhe informou de que estava partindo com o recém chegado Aart rumo ao vilarejo onde estava acampada a maior parte dos mercenários do grupo, e que os informaria a respeito dos suprimentos que faltavam. Quando terminou de recolher seus pertences e se arrumar, Othar já estava dormindo, mas Aart havia acordado. Algumas poucas horas de sono foram suficientes para o enviado de rosto magro e feio se dar por satisfeito.
Existia um pequeno estábulo improvisado com madeira e couro anexado ao lado da torre, e nele ficavam guardados quatro cavalos, além do marrom que havia vindo com o mensageiro. “Não vou sentir saudades de cuidar deles.” – Comentou, enquanto montava em um cinzento, e Aart acomodava-se no pangaré que o acompanhava desde Hyvttain. O homem agora carregava o chapéu de palha preso na sela do cavalo, e seu conforme cavalgavam seu cabelo ia para trás, aumentando suas entradas e fazendo-o parecer mais careca ainda.
Seguiram viagem rumo ao sudeste, passando por uma estrada simples de terra na planície de grama curta por algum tempo. As arvores foram ficando menos esparsas conforme seguiam, e logo estavam fora da clareira e dentro da floresta, cavalgando por um caminho estreito improvisado entre a folhagem. “Tome cuidado.” – alertou Jethro. – “Existem alguns buracos e galhos que invadem seu caminho. Pouca gente passa por aqui, ainda menos montadas.”
Ele seguia na frente, carregando um lampião e vez ou outra desviando de alguma coisa que surgia, avisando o homem para que fizesse o mesmo. Após quase duas horas, as arvores estavam tão grandes que mal podiam ver o céu estrelado entre as folhagens.
“Que floresta sombria. Existe algum animal feroz por aqui com o qual devamos nos preocupar?” – Comentou Aart, num tom que mostrava humor sem esconder certo receio. Havia fechado o casaco e coberto o manto melhor sobre si. Mantinha uma lâmina curta ao alcance da mão direita, mas por algum motivo Jethro acreditou que não fosse fazer grande diferença em um combate.
“Não se preocupe.” – Disse Jethro. – “O máximo que veremos aqui são Macacorujas.”
“Macacorujas?” – Perguntou ele, em descrença.
“Sim. Misturas de corujas com macacos, como o nome já diz. São pequenos, redondos, tem cauda e possuem pequenas patas e bicos, mas só comem frutas e talvez alguns ratos. Não são problemas pra gente. Não adianta explicar, você tem que ver com os próprios olhos.”
E não tardou muito para isso. Cerca de vinte minutos depois, Jethro avistou algo pequeno pulando de um galho para outro a sua esquerda, parou, fez sinal de silêncio e aproximou vagarosamente o lampião, para que Aart pudesse ver.
Eram três, encostados contra uma arvore, em cima de um galho. Todos refletiam o laranja e vermelho da luz do fogo em seus grandes e redondos olhos brilhantes, e embaixo cada um tinha um pequeno e estreito bico amarelado. Compartilhavam também de um pelo arrepiado, pintado de forma irregular com tons de marrom, cinza, branco e preto. Os animais eram pequenos, dois menores e arredondados que poderiam caber na palma de sua mão, e um maior e de formato oval que podia talvez ter o tamanho de seu antebraço, se muito. Minúsculas patas rosadas com pequenos dedos surgiam na frente e embaixo de seus corpos, escondidas entre os pelos, e uma longa cauda da mesma cor se enrolava atrás deles. Suas pequenas orelhas ficavam geralmente abaixadas e quase que cobertas pelo seu pelo, mas o maior deles estava com elas levantadas, atento. Não eram tão assim parecidos com macacos quanto o nome poderia levar a crer; não fossem seus rabos, sequer haveria muito com o que comparar, mas eles eram chamados assim pelos povoados simples.
“Que coisa.” – Comentou Aart, como se não tivesse palavras melhores para descrever a espécie, mas assim que ele falou os três escalaram agilmente o tronco da arvore e sumiram em sua folhagem verde-escura.
”São tímidos, mas existe um homem na vila que aprendeu a domesticá-los. Ele carrega um no ombro, e faz ele limpar seu ouvido e lhe trazer seu cachimbo.” – Comentou Jethro. Havia conhecido o alegre e animado homem chamado pelos outros de Fill Macacorujo nas primeiras semanas em que passou no acampamento no vilarejo, e lembrava-se de como ele estava animado em ter tantos forasteiros para mostrar seus velhos truques. Além de se apresentar para eles, conseguiu até mesmo vender alguns espécimes treinados para membros da Companhia.
“Já basta disso. Vou ter pesadelos da próxima vez que dormir, com uma coruja e um macaco trepando.” – Disse Aart, e ambos riram.
Passou-se quase mais uma hora, sem incidentes, até que finalmente a floresta foi se abrindo e eles começaram a avistar algumas plantações de trigo, e uma estrada de terra batida e mais espaçada entre uma seqüência de casas simples de madeira e pedra os levou até o centro vilarejo, que nada mais era do que quatro estradas se cruzando num amontoado de construções simples, cercados de madeira com alguns animais e pequenas plantações.
Já era tarde o suficiente para a maioria de seus habitantes, mas os homens da Companhia tinham costumes e obrigações diferentes, portanto não foi surpresa alguma para Jethro avistar uma grande fogueira com muitos homens gritando, rindo, discutindo, comendo e bebendo, pouco depois do pequeno templo de pedra da vila, que demarcava seus limites, ao longe. As barracas ficavam um pouco mais além, próximas ao poço do qual a maior parte da água usada por eles era retirada, e nelas outros homens dormiam e fornicavam. Havia uma boa quantidade de moças dispostas a abrir suas pernas por algumas belas palavras ou um punhado de moedas naquele vilarejo, assim como qualquer outro lugar, e os mercenários se aproveitavam disso. Estavam estacionados ali fazia um bom tempo, sem nenhuma guerra pela qual lutar, e muitos com certeza já haviam se cansado de jogos, treinos e brincadeiras.
Fora esse o caso com Keel, aparentemente. Ele atravessou sem calças, rindo, o caminho de Jethro e Aart, após pular pela janela de uma das casas dos camponeses onde as estradas se cruzavam e correr no lado oposto, enquanto gritos vinham de dentro. Um homem robusto com vestes de pelo saiu pela porta brandindo uma forquilha, mas ele já havia desaparecido.
“VOLTE AQUI, SEU MERCENÁRIO DESGRAÇADO!!! VOU CAPAR SEU PINTO!!!” – Gritava o homem.
Ele continuou por algum tempo, até que uma mulher o puxou para dentro. Jethro e Aart observaram a cena por algum momento, trocaram olhares de dúvida e depois seguiram adiante.
”Ele já foi?” – Perguntou um arbusto pelo qual eles passavam.
“Sim, pode sair.” – Disse Jethro, rindo. Keel levantou-se, sorrindo e mostrando os dentes, e bateu a folhagem da sua túnica roxo-esverdeada de algodão, que felizmente o cobria até bem abaixo da cintura.
“Já voltou, Jeet?” – O homem de pele escura e longos cabelos lisos negros, com olhos estranhamente amarelos como um gato e corpo esguio e ágil, costumava pronunciar nomes da mesma forma que eles eram dados ao seu povo, cortando-os em pequenos pedaços e aumentando-os na metade. – “Achei que não o veríamos por mais alguns dias.”
“Andward mandou um enviado com notícias, eu vim trazê-lo. Esse é Aart, e esse é..”
“Keel Ptt’Zull, o Espadachim Sorridente.” – Terminou Aart, antes que Jethro pudesse fazê-lo. – “Já ouvi falar muito do senhor. É um prazer conhece-lo.” O enviado fez um gracejo extremamente educado.
“Coisas boas, eu espero.. Ah, a quem estou enganando?” – Disse Keel, e deu uma grande risada. – “Seja bem vindo ao acampamento, Aart. Aarrt. Arrrt. Que nome ruim de se falar. Arranje um melhor, enquanto ainda não é famoso. Enfim.. Dizem que o seu Dwaard não deixa seus homens se divertirem com as damas tanto quanto nosso amado comandante Grannair, é verdade?”
”Acredito que sim, senhor. Andward é rigoroso, por vezes até demais.”
”Então escolhi o capitão certo.” – Disse Keel, sorrindo e coçando o saco embaixo da túnica.
“Não aja como se não estivesse sem calças.” – Disse Jethro, em tom de brincadeira. O chamado Espadachim Sorridente era mais velho, mais forte e mais experiente do que ele, mas por vezes parecia agir como se fosse uma criança. – “O que aconteceu ali atrás?”
“Aquele fazendeiro tem a filha mais bonita que eu já vi em vida, mas não tem trancas em sua janela. Tudo o que fiz foi cortejá-la, e quando finalmente consegui um “sim” entre muitos “não”... Bem, o maldito me atrapalha no meio do trabalho, abrindo a porta de seu quarto e jurando minha morte. Eu teria levado-a para fora, num lugar com mais privacidade, mas esses camponeses andam colocando vigias por aí, de tantas filhas que andamos deixando com bebês em suas barrigas, e é mais fácil pular dentro por uma janela quando um não olha do que arrastar uma moça para fora de sua casa. Realmente uma pena, ser acordado pelos gemidos da própria filha.. Mas é claro, tudo tem seu lado bom. Como não finalizei o trabalho, não há chances dela engravidar. Muitas vezes, no calor do ato, nos esquecemos de soltar a semente fora, até ser tarde demais..Eu bem sei.” – Dizia, enquanto caminhava entre os dois, que estavam montados em seus cavalos, rumo ao acampamento.
Jethro não soube o que comentar. Naquela época, tudo o que sabia sobre mulheres havia ouvido de outros mercenários, e não tinha certeza do quanto daquilo era verdade.
“Pra falar a verdade” – Disse, por fim, após um momento de silencio no qual pareceu notar algo a respeito de si mesmo. – “Vou plantar minha semente naquele arbusto no qual eu estava.” – E foi-se embora.
Aart ria da situação. Virou-se para Jethro e perguntou: “Ele é sempre assim? Ouvi falar de como lutou contra os piratas do Mar Estóico com seu pai, do modo como sempre faz piadas antes de puxar sua espada e de como é imprevisível em combate, mas nada a respeito.. disso.”
“Creio que seja a bebida. Ela é capaz de fazer coisas estranhas com um homem.”
O enviado de Andward concordou com a cabeça e eles seguiram caminho.
Jethro deu uma breve olhada na grande fogueira cercada por pessoas, agora que ambos passavam por ela.
Em sua luz, podia ver Olard, com sua longa barba escura com um chifre amarrado na ponta, o robusto lanceiro Lhermes que havia lhe vencido inúmeras vezes quando treinavam com pedaços de madeira, o Durdiano Vitt que acreditava piamente no Bom Deus e a todos irritava quando bebia demais e cantava a Canção da Criação do começo ao fim, os jovens irmãos Aaztarte de baixa estatura e cabelos cor de avelã, com suas histórias a respeito de um império antigo e esquecido do qual supostamente sua linhagem fazia parte, o ravatene mestiço de pele queimada e poucas palavras chamado Arak, Larinne, a jovem de cabelo escuro trançado, com os costumeiros Arbatas, Jibbs e Lauco tentando entretê-la, e Dorund, que compartilhava dos mesmos cabelos cor de areia da irmã.
Haviam também Lorlan, que tocava músicas e compunha suas próprias, Vukk, Kirsto, que passava a maior parte do tempo jogando Carteado, Jael, Nemera, Rourke, Ghardo, Wart, Louque e muitos outros do qual não lembrava o nome, mas lhe eram familiares, e um tanto afastados de todos, Nardur, Grim e Leffidas sentados com as pernas cruzadas no chão, dividindo um cachimbo com Erva de Dullis e deixando a fumaça subir enquanto riam e conversavam.
Cumprimentou alguns deles com a cabeça rapidamente quando o notaram, e seguiu reto. Grannair não estava ali, e ele não queria perder tempo com as pessoas. Possuía vários amigos ali, mas a maioria deveria estar tomada demais pela bebida e celebração, e ele tinha um trabalho a fazer. Pediu informações para um dos sentinelas que guardavam o acampamento e ele o levou até a grande tenda esverdeada do comandante.
Dois homens com lanças guardavam sua entrada, um deles ele conhecia, e Jethro perguntou se o comandante estaria acordado.
“Acho que sim, Dulla está lá dentro.” – Respondeu o homem, e gritou para dentro.
“SENHOR? JETHRO ESTÁ AQUI PARA VÊ-LO, COM UM ENVIADO.”
“UM MOMENTO.” – Respondeu a voz grossa dele.
Após alguns minutos, uma mulher alta saiu da tenda, ainda encaixando as presilhas de ferro e couro do seu gibão que cobria os grandes seios. Ela carregava em cima de um dos ombros a capa dobrada, com as duas ombreiras ligadas nela pendendo atrás de si. Vestia uma calça escura com longas botas que lhe iam até os joelhos, e dois cintos se cruzavam e pendiam em sua cintura. Seus dedos eram grossos e as mãos calejadas, suas unhas gastas e curtas. O cabelo cor de areia era curto e bem aparado, e os grandes olhos em tons de azul enfeitavam um rosto que já era bonito por si só. As maçãs salientes, o queixo fino, o nariz levemente empinado na ponta, os lábios carnudos naturalmente rosa-alaranjados e suas curvas extremamente delineadas faziam de Dulla a mulher mais desejada daquele lote da Companhia. Havia outras, como a jovem Larinne, de baixa estatura, sorriso fácil e costumeiramente tímida, mas que durante a batalha gritava e xingava com avidez, Evaine, de ombros e quadriz largos e cabelo grisalho, que só perdia para Lhermes no combate com lanças, Veera, careca e caolha, que tinha uma vasta coleção de facas que guardava presas ao seu corpo, e o casal Jarla e Natta, que raramente saiam de sua tenda em tempos de paz, além de meia dúzia de senhoras que acompanhavam o grupo, cuidavam de seus afazeres, mas não participavam das batalhas. Entretanto, segundo o que os homens costumavam dizer, Dulla ganhava de todas elas.
Jethro, particularmente, preferia alguns traços de Larinne, mas era obrigado a admitir que a agora mulher do capitão era mais desejada, e muito mais bonita do que uma mercenária normalmente tinha o direito de ser. Ele próprio já havia feito dela esperma muitas vezes, quando o sono não vinha.
Dulla passou por eles sem parecer olhá-los diretamente, apenas dando um meio sorriso um tanto debochado e seguindo adiante, ainda arrumando suas vestes.
“ENTREM!” – Disse rudemente a voz de Grannair, e eles assim fizeram.
A parte de dentro da tenda do comandante era abafada, iluminada apenas por quatro velas derretidas pela metade espalhadas pelas suas superfícies, deixando o lugar inteiro com um tom escurecido. Em um canto, uma mesa de madeira coberta por um pano tinha algumas jarras, dois canecos, uma cesta com frutas meio-mordidas, dois pratos vazios, um lampião e um candelabro apagados. No outro, dois tonéis e três largos baús de madeira fechados com trancas, além de um suporte que ia do chão até o teto e guardava lanças e espadas.
Deitado em um amontoado de peles e pelos em cima do tapete colocado sobre do chão e coberto apenas da barriga pra baixo, o homem de longos cabelos e cavanhaque escuros, nariz entortado para baixo, cicatrizes na testa, na bochecha e no canto da boca, estava apoiado nos cotovelos, ainda meio deitado, e gotas de suor escorriam pelo seu rosto com feições duras. Ele carregava um sorriso leve, mostrando os dentes em um canto da boca.
“Sejam bem vindos, os dois! Espero que me tragam palavras boas, em conta da interrupção.” – Disse ele, enquanto se colocava sentado.
“Senhor Comandante.” – Disse Jethro, fazendo uma leve reverencia. – “Trago comigo o batedor Aart, um dos homens de Andward. Ele traz noticias a respeito da vinda de seu comandante e também outras palavras.”
Grannair olhou para o homem por um momento, e seu maxilar pareceu se mover enquanto pensava em algum coisa. Logo, assentiu com a cabeça e disse:
“Pois bem. Jethro, traga duas banquetas para vocês e uma caneca de vinho para mim. Quer algo, Aart?”
”Aceitaria um pouco de vinho, senhor.”
“Então sirva-o, e tome um tanto você também, Jethro.”
Jethro primeiro encheu duas canecas, e deu uma para cada um. Estava com a garganta seca, mas se serviu apenas após colocar as cadeiras. Quando sentou-se, Grannair já havia acabado a sua dose, e limpava a boca com o braço.
“É uma bom vinho.” – Comentou Aart, em voz baixa, após um breve gole. Ele permanecia sentado com as costas parecendo curvadas, embora também desse a entender que estava, de algum modo não muito eficiente, tentando manter-se ereto na cadeira.
Andward retribuiu o comentário com algo que poderia ser tanto uma prévia de risada quanto o começo de uma tosse. Coçou as partes intimas por baixo do cobertor cinzento de pelos.
”Como anda a campanha de Andward em Hyvttain, Aart?” – Perguntou ele, em seguida. –“Há muito que não temos noticias confiáveis daquelas partes.”
O homem respondeu de imediato.
“Estivemos em confrontos com os bandoleiros na ponte da Estrada Principal, e no momento metade de meus companheiros, uma força de cerca de quinhentos homens, invadem a fortaleza dos bandidos nas montanhas, enquanto os outros protegem a população. Descobrimos a localização da base deles com um informante de Dyerna chamado Lurkas, o qual disse já ter negociado com o senhor.”
“Esses informantes supostamente deveriam ser conhecidos por serem discretos.” – Zombou Grannair, parecendo um tanto irritado, embora mantivesse um sorriso no rosto. Ele próprio encheu de novo seu caneco e deu um grande gole.
“E são, senhor. Ele só disse após pagarmos uma boa quantia.” – Retrucou Aart, respondendo com seu sorriso humilde de boca fechada.
“Heh..” – Riu Grannair, e limpou a boca com o braço novamente. – “Eu negociei com esse e outros homens há um bom tempo, antes de entrar na Companhia. Lutamos juntos contra os Fumegantes de Herkk e os Bruxeiros de Ghalla. Nada demais. Não é o tipo de gente que você quer ter por perto, mesmo entre mercenários.”
“Se me permite, ele disse o mesmo a respeito de Belthardd, o Arcanni que o senhor trouxe para a Companhia.”
Grannair pareceu irritar-se de verdade com o comentário. Belthardd era um homem velho, de pele clara e costumes estranhos, que ficava em sua tenda particular com seus três serviçais de mantos escuros e raramente dava as caras. Jethro havia visto-o poucas vezes, mas os homens costumavam comentar que ele vinha de Kalvas, flertava com demônios e sabia sobre magia.
“Lurkas é um idiota. Ele teme o que não entende. Esse Arcanni de quem fala faz poções e misturas que ajudam a tratar as feridas de meus homens, tem armas de ferro e fogo que causam mais estrago do que um pelotão de arqueiros e dá bons conselhos quando preciso. Se Andward tem algum problema com isso, falará comigo a respeito quando suas tropas chegarem. E quando é que chegarão, afinal? Estamos esperando aqui há um bom tempo, conforme Vaethro disse para fazermos.”
“Assim que os bandoleiros forem exterminados e a outra metade da recompensa for adquirida. Os contratos andam cada vez mais escassos, e o dinheiro será bem vindo, para o que virá. Presumo que antes da próxima lua meus companheiros nos encontrem aqui.”
“É bom que isso aconteça. Estamos estacionados nesse lugar há tempo demais. A região é bem localizada e fértil, mas os camponeses estão cada vez mais irritados conosco.. Não sem motivo. Suas filhas estão engravidando a todo momento. Claro, não deixo nenhum dos meus homens forçar as garotas para a cama, e muito menos fazer algum mal aos habitantes daqui, mas esses fazendeiros não tem olhos para isso, só para o lado ruim da coisa. Sequer conseguimos recrutar um bom contingente aqui, como antes era a idéia. Existe um bom numero de jovens que querem se unir a nós, mas a maioria tem pais que não deixam. Consegui cerca de uma dezena de novos garotos, todos verdes e precisando de treinamento, e mais alguns quinze que prometem que fugirão de casa para nos seguir quando formos embora, mas ainda é pouco. Em todo caso.. como anda o recrutamento de Andward?”
“Pensamos que talvez alguns bandoleiros pudessem trocar de lado, mas aqueles homens são a escória da escória, senhor Grannair, e o comandante decidiu que não queria nenhum deles. Em Hyvttain, muitos jovens dos assentamentos locais já morreram lutando contra eles, e eles estão com mais espadas do que mãos para segura-las. Soube de três com intenções de se unirem a nós, apenas.”
Jethro estranhou. Não era do feitio da companhia aceitar qualquer tipo de pessoa entre seus membros. Vez ou outra, algum rapaz sem experiência, mas com potencial, era recrutado, e passava por um árduo treinamento quando era o caso, como ele próprio havia passado. Quando fora levado pelo pai, nada sabia sobre o combate, a guerra e a sobrevivência. Todo o conhecimento que lhe fora passado no Castelo fora para a corte, para as ciências e para a história. Havia o Velho Yuhrl, com seus contos sobre as estrelas e as guerras, mas jamais lhe fora concedida uma espada, nem quando pedira. “A elite dentre os Nyeberunes não precisa disso em Heimsfend. Temos cavaleiros para nos proteger, exércitos formados apenas para servir a nossos desígnios, e quando você tiver idade e seu dom despertar, sequer precisará disso para vencer qualquer batalha.” – Lhe diziam, e ele até hoje não havia entendido. Soube que em Durdia a nobreza normalmente era treinada em armas, e que se esperava dos Lordes que tivessem noções básicas de montaria, armas e comando. “Em Nyeberum, a nobreza é covarde. Se esconde dentro de seus muros e se alimenta de iguarias enquanto seus soldados dão a vida sem jamais receber mérito algum.” Dizia Vitt, o Durdiano, em uma das muitas noites ao redor de fogueiras.
“Vamos torcer para que Vaethro e os outros tenham tido mais sorte, senão teremos que recrutar nossos homens da Prisão dos Espinhos.” – Disse Grannair, por fim, já na terceira dose de vinho. Aart ainda estava no primeiro, mas Jethro mal havia dado dois goles no seu. Não apreciava aquele gosto, ao menos não naquele momento. Era amargo demais. Sabia que deveria gostar; era uma das coisas que fazia de alguém um homem de verdade, pelo que havia aprendido entre os mercenários, mas ainda não havia se acostumado com aquilo. – “Pois bem. Creio que não nos resta nada a fazer além de continuar esperando. Já está tarde. Jethro, entregue Aart aos cuidados de Olard, e descanse um pouco antes de voltar a torre.”
Era esse o momento.
“Senhor..” –Disse Jethro, enquanto se levantava. Por algum motivo, tomou o resto do vinho em seu caneco de uma só vez, como se fosse deixar suas próximas palavras saírem mais fácil. – “Eu gostaria de saber se não poderia ter a sua permissão para permanecer no acampamento. Faltam apenas alguns dias para terminar meu tempo na torre, e creio que talvez e-..”
Grannair interrompeu-o.
”Eu sei, eu sei, o lugar consegue ser mais monótono do que esse vilarejo. Se conseguir arranjar alguém pra tomar seu lugar até o amanhecer, pode ficar. Se não, é bom chegar a tempo de começar seu turno.” – Disse ele, e mandou ambos embora.
Saindo da tenda, Jethro foi em direção a fogueira, procurar alguém que talvez aceitasse substituí-lo no serviço da torre. No caminho, dentro de uma arena improvisada com estacas e riscos no chão de terra, viu um dos irmãos Aaztarte, o mais velho e robusto, duelando com Evaine, ambos portando lanças de madeira, enquanto três ou quatro homens observavam. O jovem bloqueava dois a cada três golpes, e acertava um a cinco que dava. A velha lanceira zombava dele enquanto lutavam.
“Venha, ‘Ztarte! Não foram suas lanças que tomaram Ramvas? Onde está toda aquela bravura?”
Xavaer, que era talvez dois ou três anos mais novo que Jethro, resistia bravamente, apesar de estar claro para todos que ele não tinha chances contra Evaine, fosse num treino ou numa luta de verdade. Jethro assistiu aquilo por algum momento e logo seguiu andando.
O grande Olard ainda estava na fogueira, com sua vestimenta costumeira. Um apertado e gasto colete de couro curtido cobria seu peito estufado, e os braços grossos e peludos com tatuagens de símbolos simples e estranhos ficavam a mostra do ombro até abaixo do cotovelo, onde um par de luvas grossas luvas cobria o resto. A calça e as botas eram escuras e cheias de remendo, com um machado de duas faces preso em fitas na sua coxa e uma adaga do outro lado do grande cinto. Seu rosto cheio, com os olhos apertados, o nariz achatado e a grande boca com dentes faltando estava um tanto avermelhado. Era completamente careca no topo da cabeça, mas uma grande barba ia de suas orelhas e embaixo do nariz até sua cintura, formando uma longa trança e finalizando em um nó dado em um chifre torto e pontudo, o qual dizia ter arrancado de um demônio, e agora sempre guardava bebida dentro.
Jethro ia perguntar ao homem se ele sabia de alguém que tivesse interesse em ir para a torre e tomar sue lugar, talvez em troca de alguma coisa. Não tinha mais do que um punhado de moedas, mas era comum favores e considerações serem trocadas entre os mercenários. Se pudesse fazer daquilo uma aposta, ainda melhor. Uma boa partida de Carteado era sempre bem vinda.
Mas antes que pudesse falar com Olard, Aart tocou seu ombro, e perguntou-o:
“Precisa de alguém para ficar no seu lugar?”
O homem sorria sem mostrar os dentes, um sorriso doce e simples.
“Sim, vou ver se consigo alguém para fazer isso por mim.
”Já conseguiu. Eu cubro os dias que lhe restam.”
“Você? Mas você acabou de chegar, Aart.”
“Sim, e já fiz o que deveria fazer. Pra falar a verdade, não gosto de festejos e não conheço ninguém por aqui, e acho que a clareira onde a torre está deve ser um lugar bem mais agradável e calmo do que esse acampamento e essa vila, entende?” – Disse o homem, parecendo um tanto apreensivo.
Jethro aceitou de imediato a oferta do homem, e seus próximos dias foram cheios e divertidos.
Durante uma manhã, ajudou Vitt, Jael, Nardur e alguns outros com uma pequena plantação que haviam feito. Descobriu que os fazendeiros do vilarejo estavam aumentando os preços dos produtos para os homens da Companhia, e que nem todos estavam satisfeitos com isso. Fora idéia do próprio Nabo, antes de partir para sua vigília na torre afastada, começarem a cultivar algo por si próprios, e os outros haviam gostado da iniciativa.
”Que o Bom Deus abençoe essa plantação para que cresça forte e saudável.” – Dizia Vitt, entre uma prece e outra, quando todos já haviam terminado de arar, plantar e molhar a terra. A maioria não se importava, mas Nardur, com seu pequeno Macacoruja de pelos marrons e cinzentos apoiado no ombro, ria sozinho e comentava com quem quisesse ouvir:
“É besteira rezar para um deus Durdiano! Estamos em Nyeberum, onde os deuses moram em castelos e não se importam com as plantações dos homens simples. Se ele resolvesse rezar para o sol ou para uma nuvem, iria adiantar o mesmo, eu lhes digo.”
“O homem louva o seu deus. É melhor um deus Durdiano do que nenhum deus.” – Disse Jael, com a voz seca. Ele era um homem robusto e vivido, com cerca de trinta anos, e vinha das Terras Altas, onde os descendentes dos Archondes, o povo das montanhas, ainda cultuavam seu deus antigo, o mesmo pelo qual haviam entrado em guerra com o resto de Nyeberum e quase causado seu extermínio há mil anos atrás, como havia lhe ensinado o velho Yuhrl.
Posteriormente, Jethro havia passado suas tardes treinando com os outros em uma pequena área improvisada para o combate. Era um circulo grande de terra fofa e enlameada cercada por estacas sem ponta, e ele ficava ali horas e horas enfrentando seus companheiros e superiores, embora nem todos costumassem perder tempo ali.
Com sua espada longa e escudo emprestado, havia vencido com certa facilidade o ruivo Jibbs, de braços finos, idéias tortas e um ano mais novo que si, Lauco, que era tão bom com o arco quanto era ruim com a espada, Jael, que apesar de forte, sempre deixava a arma cair se você soubesse onde bate-lo, Xael, o mais novo dos Aaztartes, que não tinha mais que dez anos mas insistia em lutar sempre que possível, ainda que de forma tosca, e Leffidas, que se cansava fácil e desistia antes de se machucar demais. Jethro costumava ter boas lutas contra Nardur, que defendia e empurrava com um grande escudo, Arbatas, que era rápido e certeiro, Louque, forte e experiente, e Vukk, que olhava para um lado e batia em outro. O grande, calmo e esperto Grim e Xavaer, o mais velho dos Astartes sempre venciam Jethro, ainda que por pouco, mas eram Dorund, Arak, Olard, Keel, Vitt, Lhermes e Evaine quem lhe humilhavam por completo durante os treinos. Ainda assim, se divertia e continuava tentando vencê-los, colecionando cicatrizes e praticando.
Em mais de uma noite, sentou ao redor de uma grande fogueira com os outros e ouviu as histórias que eram trocadas. Olard bebia de seu corno preso a barba negra e contava a todos sobre o dia em que se casou com uma mulher de Kalvas, que mais tarde se revelou um demônio, e de como ele havia matado-a, mas guardado um de seus chifres para lembrar-se dela. Nardur, que havia comprado um Macacoruja treinado para si e que considerara este o maior investimento já feito, mantinha-o por perto e alimentava-o com pequenos pedaços de pão, enquanto contava sobre a vez que havia sido confundido com um bruxeiro por uma comitiva de trinta Vigilantes, perto da Rocha de Durdia.
Já Lauco, enquanto fazia suas próprias flechas com a adaga e pedaços de madeira, relatou os boatos que havia ouvido de um homem no vilarejo, sobre o Lenhador Utt, e de como ele havia certa vez roubado a mulher de outro homem, e por isso havia sido expulso do vilarejo e obrigado a entregar um certo numero de madeira a cada estação para continuar vivendo na floresta. Um outro homem comentou sobre sua passagem por Trezamores, de tudo o que havia visto por lá e de como iria retornar algum dia, para fazer mais dinheiro do que poderia carregar. E no fim, quando as muitas vozes se cessavam, lá ia mais uma vez Xavaer, magro e bem apessoado com cabelos cor de avelã penteados para trás, contar novamente a história dos Astartes, dos Aaztarstanos, dos Astartares e de Aaztartia, outrora Aaztart, ou seja lá como se chamava o Império do Sul, de onde todos haviam vindo, que havia sido destruído há mais tempo do que qualquer um se importava, mas que ainda era motivo de orgulho para os dois pobres garotos, que nada tinham na vida além do sobrenome.
Tudo o que Jethro sabia era que, conforme Yuhrl havia lhe contado, há muito existiram bárbaros Ravatenes que, diferente dos outros bárbaros Ravatenes, decidiram sair de Ravate e fundar seu próprio Império, próximo a onde agora se situavam os Baronatos de Durdia. Nesse Império, o culto a um Deus Serpente(“e só pelo conceito, você já sabe que nada de bom pode vir disso.”, lhe dizia Yuhrl) era obrigatório. Esse Império cresceu e dominou grandes porções de terra, até que finalmente suas inúmeras famílias de nomes parecidos, suas disputas internas, a expansão territorial Durdiana e os confrontos com os Ravatenes fez com que tudo chegasse ao fim.
Não adiantava ficar lembrando de um passado glorioso que você sequer viveu, ou tentar reerguer algo que é apenas fruto de histórias e lendas com as quais ninguém mais se importa. Jethro sentia um tanto de pena pelos irmãos Aaztartes.
Alguns dias se passaram sem grandes problemas, entre jogos de Carteado, pequenas tarefas e treinos.
Certa noite, durante uma partida com Kirsto, Vitt, Lhermes e outros dois, Jethro viu-se com a melhor mão possível para o jogo: Segurava para si O Devorador, a figura de uma besta de focinho imenso, pelo escuro e arrepiado, com olhos vermelhos e centenas de dentes afiados, e duas Damas, mulheres bem vestidas, cartas baixas que valem pouco, mas quando em dupla são capazes de superar um Bardo, um Nobre ou até mesmo um Rei, as exatas cartas de Kirsto, o único que permanecia na rodada.
As cinqüenta moedas de cobre que Jethro ganhou jamais equivaleriam a quantidade de dinheiro que ele já havia perdido com o Carteado e suas regras complicadas, mas foi dormir satisfeito naquela ocasião.
Tertt e Nabo, que outrora alternavam turnos com Jethro e Othar, eventualmente retornaram de seu período na torre, e comentaram como o recém chegado Aart estava indo.
“Ele cozinha bem, tem boas histórias sobre a campanha do comandante Andward em Hyvttain..” – Contava Nabo, num tom animado.
“E sempre acorda cedo.” – Cortava Tertt.
“Quando é que você vai esquecer isso?”
“E Othar? Onde está?” – Jethro perguntou. Apesar de ter passado um bom tempo compartilhando turnos com o rapaz amargurado por causa da mulher do Comandante, ainda eram amigos, e por vezes sentia falta dele.
“Resolveu ficar, disse que não queria voltar pro acampamento tão cedo. É a primeira vez que eu vejo alguém querer ficar mais tempo do que o necessário por lá. Ele e Aart parecem gostar do lugar, e Jael e Wart já estão a caminho para nos substituir.”
Despediu-se dos colegas, e estava voltando de um matinho no qual havia se aliviado quando um sentinela lhe informou de que Grannair queria vê-lo imediatamente.
Jethro caminhou, perguntando-se durante todo o percurso qual poderia ser o motivo da chamada.
Não lembrava-se de ter feito nada de errado, mas o Comandante raramente convocava alguém além de seu mão-direita Azned, do qual muitos falavam e poucos viam, e Dulla, a qual muitos viam e desejavam. Claro, Grannair recebia visitas e atendia audiências, mas se ele próprio chamava alguém, deveria haver algum motivo importante. Provavelmente uma repreensão.
Conforme se aproximava da tenda do capitão, via uma pequena comitiva na frente dela. Pôde identificar a principio Keel, de costas, seu longo cabelo negro escorrendo até abaixo dos ombros, vestindo uma capa com tons escuros de roxo, e Veera, a mulher careca que raramente falava.
Quando se juntou a eles, viu também Lorlan, que vestia um capuz e segurava seu banjo, Grim, o jovem, alto e forte mercenário que fedia a Erva-de-Dullis, vestindo uma gibão de placas no peito e duas manoplas nas mãos, Rourke, de armadura de couro, Jibbs, carregando uma pesada mochila nas costas, e Kirsto, o mercenário de fala mansa que adorava apostar e Arak, o ravatene de pele escura, vestindo um manto de pelos com presilhas de ossos, além de outros cinco que não reconheceu. Estavam todos parados aguardando Grannair, que logo surgiu de dentro da tenda, com um homem ao seu lado.
O desconhecido não chegava a ser baixo, mas passava por pouco os ombros do grande comandante. Ele tinha um rosto duro e quadrado, parecendo estar na metade dos seus trinta anos ou um pouco mais. Seu nariz era um tanto achatado, e abaixo dele ficava um bigode cheio separado de um cavanhaque, ambos bem aparados, da mesma cor que os cabelos negros cortados pela metade, que caiam em curtas ondas pelo lado e pela parte de trás do cabelo. Seus olhos eram escuros, e as sobrancelhas grossas e franzidas. Parecia olhar para todos ao mesmo tempo, e não estar muito contente com o que via. Vestia um longo sobretudo com golas abaixada, alguns remendos e que parecia estufado sobre suas outras vestes simples e leves.
“E quem são esses que você me arranjou dessa vez, Grannair?”
O comandante vestia uma capa escura sobre uma bonita armadura de couro, e segurava um cálice com uma das mãos. Molhou os lábios antes de falar:
“São os melhores homens para essa missão. Temos aqui Keel, Veera e Lorlan, os quais você já conhece. Lorlan pode ler, do contrário não carregaria suas partituras consigo, e Jethro foi educado numa corte, como você deve muito bem saber, Azned. Kirsto consegue identificar palavras num papel melhor do que a maioria, de tão bem que sabe roubar no Carteado. Rourke, Arak, Grim e Jibbs são bons homens, leais e que sabem usar uma espada.”
“Pois bem.” – O homem virou-se novamente para eles e apresentou-se, numa voz imponente. – “Chamo-me Azned. Alguns de vocês já devem ter ouvido falar de mim. Histórias sobre a Dyernia, a Cidade das Sombras, sobre missões perigosas e de alto risco, sobre como arranco informações de quem não quer dá-las e sobre como eu e meus homens nos infiltramos em castelos, cidades e fortes. É tudo verdade.”
Ele parou por um momento para avaliar as reações dos homens. Keel mantinha o sorriso costumeiro no rosto, e Veera parecia séria e indiferente como sempre, mas a maioria dos outros parecia um tanto apreensiva. Jethro ouvia atentamente.
“Felizmente para vocês, o que vamos fazer não é nem tão perigoso nem tão difícil quanto as coisas nas quais costumo me envolver. Devemos ir até a cidade mais próxima, Pelzand, recolher algumas informações simples e comprar alguns produtos de uma lista para o alquimista Belthardd, que pretende construir mais uma amável máquina de guerra que vai inutilizar mais um batalhão de homens. O que preciso é de homens que saibam ler, para que sigam a lista de ingredientes e ferramentas que são necessárias quando chegarmos na cidade, e um pequeno contingente para a escolta. Meus homens normalmente seriam suficiente para as armas, mas resolvi não arriscar dessa vez. Partiremos ao anoitecer. Se alguém tiver algum problema com isso, reclame com seu amado comandante, não comigo. Eu não quero nem saber.” – Disse ele, e entrou novamente na tenda.
Grannair deu um sorriso um tanto sem graça, como se não fosse com ele, e disse:
“Vocês ouviram o homem. Aprontem suas coisas, sigam suas ordens. Ele sabe o que faz.”
A noite demorou a cair. Jethro sabia sobre Azned, o famoso e misterioso homem que comandava um pequeno grupo de homens e realizava as missões mais obscuras da Companhia, onde era melhor manter-se nas sombras e evitar que fossem descobertos. Ele e os seus foram responsáveis por garantir algumas das maiores vitórias dos Rubros, a mais recente contra os marisqueiros e piratas na baia estóica. Estava ansioso para fazer parte daquele grupo, ainda que por apenas uma missão.
Quando a hora chegou, Jethro estava de pronto há tempos. Vestia uma armadura de couro simples, mas reforçada, abaixo de um manto verde pálido e cinzento que o cobria da cabeça aos pés. Anteriormente, quando juntava seus pertences e se preparava para a viagem, havia ido até a grande tenda onde ficavam os estoques, e selecionado o melhor equipamento para a situação.
Normalmente, o intendente responsável por tomar conta daquilo tudo, um homem velho e mal humorado de costas curvadas chamado Krull, teria requisitado autorização especial e feito inúmeras perguntas antes de entregar algo nas mãos de Jethro, mas Grim e Jibbs já estavam lá quando chegou, e sequer teve que se explicar para o velho, que apenas assentiu com a cabeça e disse: “Vá logo você também. Não tenho o dia todo.” Enquanto olhava-os e anotava riscos em um pedaço de papel conforme escolhiam algo. Jethro duvidava que o homem soubesse ler ou escrever, mas sem duvida possuía algum sistema de contagem que lhe servia para tomar nota do que ia e vinha ali.
Grim parecia demorar um bom tempo para avaliar cada uma das muitas peças de armadura e armas que olhava, e por vezes teve dificuldade em achar partes que se acomodassem a sua altura, e Jibbs serviu-se de flechas com ponta de aço, uma adaga e um meio-elmo. Jethro trocou a já gasta espada longa que usava por uma do mesmo formato, mas um tanto mais leve e fina. Grim em certo momento comentou que os ventos seriam fortes na estrada, e que deveriam ir preparados para chuva. Quando eventualmente todos haviam escolhido o que melhor lhes serviria, foram juntos de encontro aos outros.
A noite parecia cair bem em Azned. Se de dia o mercenário já soava ameaçador, ali ele era quase que sobrenatural. Seu casaco parecia diferente também, cobrindo-o por inteiro, com as golas levantadas para se proteger do vento, os braços cruzados e os olhos focados em todos que se aproximavam. A comitiva se reuniu ali e partiu em silêncio, sem nenhuma despedida ou anunciação.
Era assim que aquele homem gostava de fazer as coisas, Jethro começou a notar.
Os treze, mais Veera, caminharam para longe do vilarejo e dos acampamentos em silêncio. Keel foi o primeiro a falar, depois de algum tempo.
“Não falem nada.” – Ele disse para ninguém, e continuou sorrindo e andando.
Era tarde quando Azned ordenou que parassem e montassem acampamento. Foi algo modesto, com poucas barracas e uma pequena fogueira. Com poucas palavras, ele informou a todos que iriam partir na primeira luz do sol, e se retirou. Seus quatro homens continuaram, mantendo vigília. Eles eram mais velhos, bem equipados e raramente abaixavam os capuzes ou falavam uns com os outros.
Naquela noite, Jethro levantou-se para mijar num arbusto próximo, e viu Veera sentada sozinha perto do que restava da fogueira, coberta em um manto e afiando uma faca. Ela parecia jovem, e seu rosto não era feio, embora a falta de cabelos e o tapa olho a deixassem, no mínimo, indesejável. Quando seu único olho negro virou-se para Jethro, ele sentiu um calafrio forte o suficiente para fazer com que desviasse o olhar e fosse logo tratar de seu assunto na moita mais próxima. Quando retornou, ela não estava mais lá.
Demorou a dormir naquela noite.
Seguiram alguns dias de viagem pela pequena estrada até encontrarem uma maior, e por ela andaram ainda mais. Descansavam tarde e acordavam cedo. Algumas vezes um ou dois batedores tomavam a dianteira por boa parte de um dia ou de uma noite, mas mais a frente eles sempre se juntavam ao resto do grupo. Se encontravam algo de interessante ou incomum durante o percurso, não compartilhavam com Jethro e os outros.
Foram-se dez dias cavalgando quando finalmente puderam avistar a cidade ao longe. Além de uma grande planície esverdeada, grandes elevações de terra cresciam no horizonte, cercando pelos lados e por trás a cidade. Seus muros, que cobriam a pequena parcela que não era naturalmente protegida pelas montanhas, eram de rocha simples e amarelada. O topo de algumas poucas torres e grandes construções podiam ser vistos atrás delas, e algumas outras estavam espalhadas pelas elevações que cercavam a cidade. Um rio vinha pela extrema direita, beijando o pé do alto relevo enquanto passava, exatamente no ponto onde uma barragem havia sido posta para suportar uma grande azenha, com uma pequena ponte ligando duas construções. Uma delas, a conectada com o moinho d’água, parecia possuir uma ligação com uma grande torre no alto do cume, com algum mecanismo estranho levando grandes recipientes de madeira até o topo por algum tipo de corda ou cabo.
O rio seguia sua direção cortando a frente da cidade pela diagonal, afastando-se dele, serpenteando e alargando-se até sumir no horizonte, pela direita. Eventualmente seria necessário atravessá-lo, mas três pontes, duas de madeira e uma maior de pedra, podiam ser vistas por sua extensão.
Um gigantesco moinho de vento se encontrava pouco antes da divisa entre o lado esquerdo da muralha com a pequena montanha, e vários outros surgiam pelo alto relevo, dentro e fora da cidade.
Por fim, em meio as inúmeras montanhas mais distantes ainda, um pequeno ponto escuro que talvez fosse um castelo, embora estivesse distante demais da cidade, podia ser visto.
“Vocês esperam aqui. Vart, Keel, Kirgo, Veera, venham comigo.” – Disse Azned, e o grupo ficou fora o resto daquele dia.
”O que você acha que eles foram fazer?” – Perguntou Jibbs, enquanto os rapazes estavam sentados descansando, após montar acampamento, cuidar dos cavalos e tentar, sem sucesso, conversar com os homens de Azned. Eles apenas devolviam olhares irritados e ordens para que se calassem. Pareciam não gostar de responder perguntas.
“Não faço idéia, mas espero que não demorem.” – Respondeu Jethro. Queria entrar na cidade de uma vez, agora que estavam tão perto. Fazia um bom tempo desde que havia visitado uma cidade daquele porte. Estava há quase dois anos indo de vilarejo em vilarejo com a Companhia, entre pequenas campanhas, sem nunca visitar nenhum lugar realmente grandioso.
“Azned sabe o que faz.” – Disse Grim.
“Será que sabe mesmo?” – Perguntou Jibbs, coçando seu cabelo emaranhado e ruivo.
“Ora, não seja bobo, Jibbs. Você já ouviu as histórias que contam sobre ele. Olard Corno-na-barba contou a todos nós sobre a vez que ele e seus homens envenenaram o suprimento de comida dos Ladalanos que faziam cerco ao Castelo de Tarfia, como invadiram o reduto dos bruxeiros e mataram seu líder enquanto dormia.. E ele senta com os Comandantes no Conselho da Companhia. É um homem importante.” – Jethro disse. Não acreditava que o amigo pudesse realmente estar duvidando do famoso Azned, o Lâmina Negra, como era chamado em algumas histórias.
“É..Eu ouvi coisas a respeito dele e dos seus, os feitos e as glórias.. Contam pra gente quando entramos na Companhia, e são histórias sombrias e cheias de terror.. Mas onde estão os homens dele? Se fossem tão bons assim, não precisariam da gente. Tem alguma coisa errada. Eles não levam qualquer um em suas missões.”
“Não é uma missão perigosa. Azned já disse isso.” – Comentou Grim.
“Então por que precisam de nós? Por que não usam dos seus?”
“Talvez não queiram gasta-los com coisas simples assim.” – Tentou Jethro. Estava um tanto intrigado pelo que Jibbs falava.
“Se fosse o caso, não teriam trago Keel. Ele é melhor espadachim dentre os homens de Grannair. E Veera também não é de se brincar. Ela me dá calafrios. Dizem que já matou mais de cem homens e que seus cabelos caíram de tanto sangue que ela bebeu.” – Jibbs parecia realmente assustado. Era estranho ver o quão esperto e bobo ele podia parecer ao mesmo tempo.
“Deixe suas teorias e temores para lá. Não vamos descobrir nada assim.” – Disse Grim.
“Eu acho que não vamos descobrir nada nunca..”
Azned e os outros retornaram ao anoitecer, enquanto a maioria dormia, e pronunciou-se apenas ao amanhecer.
“Vamos entrar no final da manhã, quando a maioria dos camponeses também o faz. Alguns devem se vestir como camponeses comuns, enquanto o terceiro deve cobrir-se da melhor forma possível e carregar as armas do outros. Não queremos chamar a atenção. Nosso trabalho é entrar, comprar as coisas nessa lista, e ir embora, sem incidentes.”
“Por que isso tudo? Não estamos em guerra com Nyeberum, nem somos procurados..” – Disse Jibbs, numa voz que mais parecia sinceramente curiosa e boba do que contrária ao que era dito.
“A vida não é justa para mercenários. Você ficaria surpreso com o tipo de coisa que pensam de nós. E temos cada vez mais inimigos.. É melhor não arriscar. Agora fique quieto, e se você me interromper de novo, corto sua língua e enfio ela no seu rabo.” – Disse Azned, e o jovem se calou. – “Iremos em grupos de cinco, cada um com ao menos um membro que saiba ler, e os outros para ajuda-lo na negociação e garantir sua segurança. Cada um dos grupos será responsável por uma parcela diferente de compras, para evitar que alguém suspeite do que vamos fazer com essas coisas. Lorlan, Guo, Grim, Rourke, sigam Vart.” – Ele entregou um pergaminho enrolado para o homem de manto escuro que comandaria eles, e continuou.
“Kirsto, Jibbs, Keel, Bargan, sigam Naja” – Disse ele, e entregou mais um pergaminho, dessa vez para um homem careca vestindo um manto verde-escuro com o capuz abaixado. Em sua nuca, a boca aberta de uma cobra surgia, pintada em cores fortes e vivas.
“E por fim.. Veera, Mart, Jethro, Arak.Vocês vem comigo.”
Os três grupos se dispersaram ainda ali, cada um indo atravessar por uma das pontes. Jethro percebeu que existiam pequenas habitações, talvez postos de vigilância, próximo a cada uma delas, e que seria melhor se não passassem todos juntos. Azned era realmente um homem cauteloso, embora as dúvidas de Jibbs, por mais simplórias que fossem, ainda estivessem plantadas em sua mente.
“Veera, cubra-se por inteiro.” – Dizia ele, entregando-lhe grandes pedaços de trapos. – “Não queremos que chame a atenção, é conhecida demais, e seus traços muito aparentes. Arak, só de olhar pra você já dá pra saber que é de longe. Se perguntarem, seu nome é Leel, e você vem da Ilha Larana, assim como Keel. Esses camponeses burros não sabem diferenciar os povos, então não vão imaginar que você é um Ravatene a não ser que diga que é. Eu diria para vestir trapos, mas acho que você já está bom do jeito que é. Mart, fique de olho nas coisas. Jethro, tente não estragar tudo. Fique quieto. Mantenha-se calado a não ser que o contrário seja absolutamente necessário. Se precisar, invente um nome. Mas cuidado com o que fala. Deixe a conversa para nós, a não ser que eu diga o contrário.”
Azned também fez com que se afastassem na hora de atravessar a ponte. Ele disse para todos passarem com cerca de uma hora de diferença, e se encontrarem já dentro da cidade. Seguiu primeiro com Jethro, e ambos atravessaram sem problemas. Estavam quase chegando aos portões, quando o jovem tomou coragem para perguntar.
“Senhor.. Por que nos chamou para essa missão? Digo, tudo bem, eu, Kirsto e Lorlan sabemos ler, mas, ainda assim.. Alguns de nós somos bastante verdes, se comparados com..”
“Eu estou sem homens.” – Respondeu Azned, secamente.
“O que aconteceu com eles?”
“Fizeram perguntas demais.”