O TRADUTOR DE LATIDOS

Como às vezes faço, estava a caminhar com o meu cão chamado Banzé. Era o dia de domingo de carnaval. As ruas estavam mais calmas do que antes e eu pensava que as pessoas deviam ter brincado nas folias até tarde e agora estavam repousando para recomeçar tudo logo mais, até a quarta-feira de cinzas.

Em uma das ruas encontramos, eu e Banzé, uma figura espalhafatosa, de aparência jovem, vestida com roupas de tons berrantes, excessivamente folgadas, com um boné escuro na cabeça e o rosto pintado de várias cores. Estava sentado na calçada como se estivesse esperando alguma coisa e ao seu lado tinha um saco de tecido branco com algumas bugigangas dentro que pareciam brinquedos. Banzé se aproximou farejando e como o seu porte de Waterweiller assusta as pessoas, eu puxei sua coleira advertindo:

- Vem Banzé, não incomoda o moço!

O rapaz parecia não se incomodar e muito familiarmente passou a falar com Banzé como se fossem velhos conhecidos.

- Oi rapaz, como você está? Gostando do Passeio?

Notei que Banzé parou um pouco, virou a cabeça um pouco de lado como ele sempre faz quando está curioso e latiu para o rapaz. Eu fiquei apreensivo e voltei a adverti-lo com mais vigor na voz:

- Pare Banze, não vê que está incomodando o rapaz!

Mas o rapaz realmente parecia não se incomodar. Fez sinal com a mão como a dizer que eu não me incomodasse e continuou a falar com Banzé como se ambos se entendessem.

- Ah, você gosta de passear, sim, só não gosta porque faz isso poucas vezes.

Novamente Banzé latiu, mas eu percebia que não era um latido agressivo, era como se ele estivesse realmente interagindo com as palavras do rapaz.

- Sim, e o banho também, você acha que devia tomar mais banho, e que não dá nenhum trabalho quando querem dar banho em você. Sim, que gosta de jogar bola com o Diego, com o adolescente que também é seu dono. Sim, que gosta de sua dona, a Regina, que está sempre limpando o seu quintal e dando sua alimentação, só não entende porque é que ela fica tão nervosa às vezes, e varre, e limpa seu xixi que você marca seu território, e que volta a colocar as plantas que você tinha tirado para aliviar umas cólicas...

Fiquei surpreso com aquelas palavras do “cara” pois ele estava dizendo tudo que na realidade acontece na vida do Banzé, na perspectiva do Banzé e até com os nomes reais das pessoas que cuidam dele. Perguntei para ele encucado:

-Como é que você faz isso? Como é que você disse todas essas coisas que na verdade acontecem?

- Ah, é muito fácil, eu entendo perfeitamente a língua que ele fala. O que para você é simplesmente um au-au para mim tem todas as complexidades da linguagem. Um tom mais alto, um desvio para o agudo ou para o grave, um espaço entre um som e outro, tudo tem um significado. Aprendemos a nos comunicar desde os tempos em que habitamos as cavernas juntos. Naquela época os cães entendiam nossos grunhidos e nós entendíamos os seus latidos. Com a evolução, nós desenvolvemos uma linguagem mais sofisticada e lentamente fomos perdendo a capacidade de nos entendermos diretamente uns com os outros.

- E como você sabe de tudo isso?

- Eu sou um viajante do tempo. Os dias meses e séculos para mim não significam nada. Tenho acumulado em minha memória toda a epopéia do homem na face da terra. Hoje estou aqui, amanhã estou ali, acolá, além ou aquém. Não posso mais ficar aqui, tenho logo que sair, tenho outros compromissos, mas vou deixar algo com você que vai fazer entender um pouco melhor o que acabei de dizer.

Meteu a mão em sua sacola e retirou lá de dentro um aparelhozinho do tamanho de um grão de feijão com um haste retorcida. Disse para eu colocar a haste em volta da orelha e o “grão de feijão” na entrada do conduto auditivo. Assim fiz e logo o vi perder de vista ao dobrar uma esquina.

Intrigado com a acontecido continuei a caminhar com Banzé por aquelas ruas já nossas conhecidas. Não imaginava a surpresa que iria ter logo em seguida. Na primeira casa que passamos onde tinha dois cachorros pequenos e agitados, ouvia perfeitamente eles gritarem:

- Olha o negão passando! Cara de sapo! Se nós não estivéssemos presos aqui iríamos dar um dentada nesse rabo cotó! Bicha! Bicha! Bicha!

Olhei surpreso para aqueles dois safadinhos e a paciência de Banzé, apenas olhando para eles com ar de filósofo.

- Mais adiante noutra casa onde morava um pastor alemão, vi o bicho dar uns pinotes no portão e gritar com um vozeirão:

- Macacão preto, saia da minha rua! Não mixe no meu poste! Venha aqui perto para eu lhe dar uma dentada, seu filho da p...!

- Mais adiante um cachorro menor que Banzé passeava solto e ao ver nossa aproximação correu para longe e ao se ver seguro à distância, bradou:

-Cahorrão veado! Venha me pegar aqui se puder, cabra safado!

Todas essas agressões que surgiam de todos os lados onde havia um canídeo, mostravam o quanto paciente Banzé realmente era, o que eu nunca conseguia imaginar.

Finalmente, numa das últimas casa antes de chegar na nossa, encontramos um cachorro grande, peludo, todo pabola que ficou a ironizar:

- Mas olha só que dupla feia! Um careca barrigudo e um bicho preto que parece um macaco socó... Oh, povo feio!

Dessa vez quem não teve paciência foi eu e se eu tivesse um tradutor de voz eu teria dito umas poucas e boas aquele peludo, cara de almofada de camelô. E ainda tinha dito a Banzé para ele reagir.

Cheguei em casa ainda irritado, tirei do ouvido o tradutor de latidos firmemente decidido a não mais usá-lo.

Prefiro caminhar com Banzé sem entender o que aqueles latidos querem dizer. Acredito que foi por isso que meus antepassados não tiveram mais interesse na compreensão dos latidos. Esses bichos podem ser nossos amigos, mas os outros que tem outros donos, são uns bichinhos muito desbocados!

(feito em 18-02-07)

Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 28/12/2011
Código do texto: T3410113
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