Marionetista

Olhava com desprezo para suas criações imperfeitas, cópias pequenas de desconhecidos que passavam à sua visão. Fúria e frustação tomavam conta de si, e momentos depois as estraçalhava – fim ao laço criado. Ele tinha o controle, mas não podia suportar suas próprias falhas. Havia de se aperfeiçoar, melhorar sua obra. Poupava o tecido, e começava tudo de novo. Era o dono do destino, maestro da vida alheia. Era marionetista.

Venezia, 1850. O vapor da locomotiva inundava a estação nas cinzas do carvão. Vultos desciam rápido dos vagões, quase a se chocar na confusão da fumaça. Turistas, banqueiros, arquitetos, médicos, professores, cozinheiros, advogados, artistas, pensadores, acadêmicos, políticos e historiadores. O Vêneto era uma região antiga, mas não por isso tinha sido deixado para trás na revolução. A cidade dos canais ainda era de interesse a muitas pessoas. Nunca se sabia quem chegava pela estação de trem.

A barca ia devagar pelos apertados canais da cidade, levando a pouca bagagem de Lombardi. Tinha vindo de Vicenza, após a separação do Império Austríaco. Vivendo em tal regime, tinha aprendido a falar alemão além do nativo italiano. Tinha nascido na região, em uma pequena cidade, satélite da cidade de Vicenza. A capital da região era enorme, mas Veneza era maior. Precisava de uma cidade grande para se tornar grande.

Desceu da canoa, atravessando a rua até a pousada. No térreo, um bar lotado por bêbados e prostitutas. No primeiro andar e acima, pequenos quartos reservados a viajantes e pessoas que não podiam pagar por algo melhor. Os corredores eram apertados; os quartos, cubículos. Ao menos o seu tinha uma janela virada ao canal, pela qual podia ver o próprio e o movimento da rua. Janela pela qual podia controlar.

Suas marionetes andavam pela rua, corpos humanos controlados por um único intelecto, sem consciência de seu estado de possessão. A mente corrompida do controlador por vezes fazia seus fantoches de palhaços, objetos de felicidade própria e constrangimento de quem presenciava. Ao final do dia soldados se postavam na viela para controlar a situação. Cinco pessoas foram presas, mas nem os soldados podiam fugir do operador. Momentos passados e estavam a realizar os mesmos atos pelos quais prenderam as pessoas. Ninguém escapava ao controle do marionetista.

O teatro veneziano era enorme, seus espetáculos lotados. Tecido escondido nas vestes, a segurança sob seu domínio lhe abriu alas. O espaço reservado às autoridades e à nobreza era seu. Não mais arrumado que um simples trabalhador, chamava a atenção daqueles que estavam ao seu redor. A apresentação do dia era feita com marionetes, mas não ocorreu como o planejado. Havia alguém controlando os titereiros.

Dias depois de sua entrada na cidade, já era o centro das atenções. Os jornais retratavam-no, as pessoas o reconheciam na rua e estavam todas a olhar. Foi de “plebeu rico” a “príncipe da plebe”. Manhã seguinte, tinha um novo apelido. Era o “nobre novato”, amigo dos ricos e influentes, sempre nas comemorações. Se sentia no topo. Estava no topo. Tinha conquistado a cidade. Comandava em Veneza.

O carnaval se aproximava. Não lhe agradava tal situação. As pessoas o esperavam na comemoração, mas não tinha como se sentir confortável. Com tantas máscaras e fantasias, não tinha como tecer suas marionetes. Não podia se igualar a uma pessoa qualquer. As pessoas esperavam por ele, ele era o principal espetáculo. Tinha de ir, reles mortal.

Um rei diferente vinha pelos canais da cidade, mais brilhante e rico. Mascarado, sua face reluzia em tons de prata e ouro, refletindo tudo a sua frente. A coroa pesava em sua cabeça, verdadeira. Era maior e mais estrondosa do que a do próprio rei da Itália. Suas vestes eram de dar inveja aos Doges, feitas do mais caro tecido. Uma fantasia de soberano para um soberano.

Os outros mascarados o aplaudiam, num corredor de fantasias. O carnaval veneziano era enigmático, a época mais feliz do ano. Escapando das atenções gerais, continuou seu caminho até dobrar em uma esquina. A viela era suja, e a iluminação era fraca. Não via por onde andava, mas não chegou a tropeçar. Entrou em um prédio e subiu as escadas.

Estava vazio, com poucos lampiões distribuídos pelas escadas. Atravessando mais uma porta, entrou em um quarto vazio, com uma cadeira no meio e outra porta. No meio da sala, sentou-se no assento. Haviam correntes metálicas ao lado dele, que não demoraram a prender o rei ao seu trono de madeira. A outra porta se abriu, e a sombra de uma figura se estendeu pelo piso.

Um homem mascarado, em simples fantasia. Uma bauta negra – típica mascara veneziana – escondia seu rosto. Ele não podia ve-lo, não podia controla-lo. Não sabia por que tinha dobrado naquela rua, por que tinha entrado por aquela porta, por que tinha subido aquelas escadas. Apenas lhe pareceu o melhor a fazer. Mas estava ali, preso. Refém.

A figura permaneceu de pé diante dele. Removeu a fantasia do rei, revelando o simples jovem por baixo. Pela mesma porta que o homem entrou, apareceu um vulto pequeno, caminhando em direção ao mascarado. Apertando os olhos, Lombardi reconheceu a si mesmo num boneco de tecido. Um boneco de tecido que andava. Um fantoche.

- Você não achou que era o único, achou? – A voz revelou um velho por debaixo da fantasia, mas apenas isso. Ele levantou a boneca diante dos olhos do “nobre novato”, mexendo em seus membros e mostrando a influência que tinha sobre ele. – Você é minha obra-prima. Demorei um tanto para encontra-lo, e ainda mais para confecciona-lo. De Vicenza a Veneza, vim atrás de você. Testando minha influência, desafiando minhas habilidades. Você nunca teria ganhado tal fama se não fosse por mim, ou acha que teve todas aquelas ideias geniais por conta própria? Se eu não estivesse por trás do palco, você teria continuado no pequeno quarto em que se hospedou nos primeiros dias, como um mendigo. Eu controlo seu espetáculo.

O outro marionetista deu uma risada diante da fútil inocência do jovem artista. Por muito tempo exibiu sua maestria em controlar todos os tipos de materiais, enquanto o rei acorrentado estava apenas de olhos arregalados, em retrospectiva de tudo que fez antes. As escolhas eram suas, não dele. Ele tinha o domínio de si mesmo, tinha que ter. Não podia estar sob fios invisíveis durante todo o tempo. Estava sob controle.

- Esse é o problema do livre arbítrio. Você não se sente diferente sem ele. – Ao perceber o espanto do seu títere, encerrou as apresentações. Gostava de se exibir, como todos que sabem ser superiores. Mas com o tempo e a idade aprendeu que o melhor era não chamar a atenção, não colocar sua superiodade numa vitrine que pudesse ser apedrejada. Isso fugia ao concernimento dos jovens, no entanto. Estavam sujeitos ao apedrejamento.

Levantou novamente ao ar o boneco, manipulando-o com as mãos. Abriu suavemente a cabeça do fantoche, e com uma pinça puxou um fio do interior. Lombardi se sentiu mais fraco. Tinha sono, muito sono. Sua visão fraquejava, e sua memória dos acontecimentos recentes se diluía. Ele estava esquecendo, esquecendo do homem. Fechou os olhos, e um último pensamento lhe ocorreu. Ele não era marionetista. Era marionete.

Kodlak
Enviado por Kodlak em 20/12/2011
Código do texto: T3397933
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