Praga Humana
Se há algo que prezo em minha vida é a paciência...
Não porque ela permite analisar todas as variáveis de um problema, o que isso por si só já seria fantástico, eu prezo a paciência mais do que tudo porque ela faz parte da minha personalidade. Separar-me de minha paciência é como separar-me de um braço ou uma perna.
Eu sou paciente, afinal, eu sou um vampiro.
Ser um vampiro já me deu muito orgulho, principalmente quando revelava dentes com duas vezes o tamanho normal e olhos na cor do sangue para algum desgraçado que encontrava em mim o caminho para o além. Como eu não podia me sentir orgulhoso ao subjulgar criaturas tão insignificantes? E como não podia me sentir um deus ao ver o tempo passar para todos enquanto eu permanecia livre e forte para continuar com meus prazeres carnais?
Ah, mas isso foi no começo, quando meus olhos ainda viam beleza nessa terra coberta por pestes. Quando eu ainda achava que haveria um rebanho eterno para me servir nos meus momentos de loucura, para me divertir quando meu corpo ansiava algo carnal... Quantas noites não passei ao lado de companheiros de minha espécie desfrutando uma vida de prazeres sem limites?
- Tempo suficiente – digo para as paredes quase tão imortais quanto eu.
Os anos de solidão criaram em mim o péssimo hábito de falar sozinho. Talvez no fundo eu só queira testar minhas cordas vocais, ter a certeza de que elas continuam tão poderosas quanto na época em que eu gritava de ódio em algum banho de sangue esquecido.
Isso acabou me levando a outra questão. Uma que eu não fazia a um bom tempo.
- Há quanto tempo eu não provo o sangue humano?
Levanto de minha cadeira já desgasta pelos longos anos e deixo meus olhos verdes brilharem para o escarlate assombrado. Quando isso acontece o cenário a minha volta se ilumina apesar da escuridão noturna, os objetos emanam luz própria, mais fraca ou mais forte dependendo do tempo que permaneceram próximos a algo vivo, um efeito estranho já que o céu noturno revelando-se pela janela continua negro como asfalto recém acentado. Todavia é cada vez mais difícil observar os contornos da noite já que a quantidade de vida nesse planeta é cada vez mais escassa.
“Mas há as árvores?”, você pode me perguntar e eu responderei que sim, de fato há mais árvores cobrindo a terra do que em qualquer outra época, porém caro amigo árvores não me servem de alimento, por isso concluí a muito tempo que animais são a única coisa viva nesse planeta, uma lógica simples...
- Se eu preciso sorver vidas para existir, tudo aquilo que não me serve de alimento não pode estar vivo.
Muitas pessoas discordariam, me dariam mil e um motivos lógicos para colocar as plantas no reino dos vivos. Mas eu rebato: “De que vale a lógica humana nos dias de hoje? De que vale a lógica de uma raça já extinta?”
Caminho com passos fantasmas e em um gesto de mãos abro as portas da biblioteca pública que há algum tempo uso como refúgio das horas de sol. Foi numa noite comum que percebi que ali seria um bom lugar para mim, além do abrigo necessário para o dia tenho uma fonte infinita de informações úteis nos montes de livros que sobreviveram a raça que os criou. Não que precise deles para muita coisa hoje em dia, mas tenho certeza que as informações me serão úteis no futuro, afinal não seria demais aprender um pouco sobre engenharia ou tapeçaria ou mesmo em como um mero imortal pode criar eletricidade a partir de coisas normais. Outro dia eu cumpri um desses objetivos, demorou algum tempo porém eu me tornei capaz de criar eletricidade. Foi a primeira vez em muito tempo que vi o poder de dezenas de velas em uma lâmpada e me senti como Thomas Edison, realizando o que podia-se dizer um milagre, apesar de ter certeza de que meu predecessor teve muito mais reconhecimento do que eu com nossa criação.
Voltando aos extintos humanos afirmo que eles não foram uma raça de covardes, muito diferente do que eu pensava quando deixei de ser um, eles lutaram bravamente contra os micro assassinos que ceifaram suas vidas. Gastaram recursos e energia infinitas e estiveram muito próximos de vencer o combate. Todavia, como em toda épica batalha, deve haver somente um sobrevivente e os humanos não o foram. Meus companheiros, aqueles de minha raça, vieram a perecer logo depois, eu mesmo estive a um passo de partir para a vida que espera depois dessa morte, mas por um mero acaso descobri ser capaz de existir com o sangue de outras espécies. Quando fiz a descoberta a transmiti para os remanescentes vampiros mas eles me chamaram de imundo e se recusaram a tomar o sangue de animais.
Em vários momentos penso que eles tomaram a decisão certa e partiram no momento apropriado. ..
- Fantasmas só servem quando existe algo para assombrar... Ou talvez eu seja o verdadeiro fantasma, o fantasma de toda uma raça de vivos e mortos. O fantasma da história. Que viu a ascensão e a queda da forma de vida mais poderosa que já pisou nesse planeta.
Inebriado pelo tom poderoso de minha fala eu passo a dançar com um par invisível no asfalto destruído da cidade desolada. A humanidade se foi mas deixou muitos traços para trás, edifícios, carros, tecnologia, coisas que não serão absorvidas por Gaia com tanta facilidade. Eu danço em meio a todas essas coisas, em meio a postes caídos, veículos destruídos, ossos de moribundos que sequer tiveram um lugar digno para caírem mortos. Eu danço até a euforia desaparecer e eu voltar a meu lugar de mero observador nesse mundo morto...
- Deus, Deus, Deus – canto para o espaço – O que fazia enquanto sua criação perecia?
Ocupado com outros mundos? Outras raças? Ou finalmente ficara farto de sua imagem e semelhança? Eu tive muito tempo para pensar sobre isso e cheguei a conclusão de que tal resposta é irrevelante. Não importa como tudo aconteceu e nem o porquê. Na verdade nada mais importa, nem mesmo eu e minhas vãs tentativas de recriar a tecnologia perdida são de qualquer valor. Eu sou só um pobre coitado, impedido de morrer e de viver, aprisionado em uma jaula chamada Terra que há muito perdeu sua graça.
Paro próximo a um veículo batido e sento em seu interior, esta tem sido minha rotina desde que descobri a biblioteca perdida. Encosto-me no banco do passageiro bem ao lado de uma pilha de ossos que ainda veste um pijama amarelo. Já perdi muito tempo ponderando sobre a história daquela figura e novamente cheguei a conclusão de que é algo irrelevante. Para ele, para mim e para o tempo...
Expiro lentamente enquanto ao longe um punhado de corvos reclama algo com a natureza. Por que repito essa rotina? Por que continuo nesse mundo? Talvez para ver o que venha a seguir, para ser testemunha daqueles que virão após a humanidade. Será uma árdua tarefa substituir algo que por muito pouco não atingiu a perfeição mas tenho certeza de que a natureza dará um jeito. E quando isso acontecer eu estarei lá. O passado encarnado. A sombra do tempo. Finalmente exercendo minha função de fantasma e levando terror as novas criaturas que deverão vencer esse medo. Eu serei mais um instrumento de Gaia, mais uma praga entre as muitas que já existem nesse planeta. A diferença é que eu serei a maior delas. A praga humana.
Sorrio, tanto para a noite quanto para meu companheiro puro-osso, e com meu sorriso volto a exercitar meu atributo básico.
- Paciência – digo a mim mesmo enquanto faço meus olhos escurecerem – Novas noites virão.
FIM