O Entregador
Dar para receber... Eu não podia pensar em outra coisa...
Se tem uma coisa que eu aprendi nos meus 7 anos de vida é que adultos não sabem nada. Sério... Tudo bem, eles ensinam uma coisa ou outra de vez em quando mas noventa por cento do que falam é pura besteira.
Pelo menos para mim...
Quer dizer, eles podem até saber sobre carros e comida mas o que tem demais? Eu sei sobre vídeo games e desenhos, qual a grande diferença no fundo? Minha mãe pode dirigir o carro na estrada mas se for preciso pousar um avião, ou se defender contra zumbis sanguessugas quem estaria mais preparado? Eu estava justamente explicando sobre uma das difíceis missões que tive no meu Playstation quando ele chegou...
Foi incrível! Num primeiro momento eu não sabia o que dizer ao ver o tio Júlio ali! Fazia tanto tempo que ele tinha se mudado para o interior e eu estava com tanta saudade, que abri o maior sorriso da minha vida. Ele chegou de fininho, tão sutil que só o descobri quando já estava diante da minha cama. Eu fiquei momentaneamente bravo comigo mesmo, falar de vídeo games sempre desligava minha atenção para o resto do mundo...
Tio Júlio se sentou cuidadoso aos pés da cama e sorriu para mim “o grande sorriso do tio Júlio”. Eu tentei controlar minha alegria e fazer uma cara feia, só para ele saber o quanto eu não gostei dele ter se mudado e nunca mais dado as caras, mas não consegui... Na claridade um pouco excessiva do quarto vi tio Júlio tirar do casaco uma pequena caixinha, o suficiente apenas para a palma da minha mão.
- Meu presente para você, Brunão...
Peguei o objeto sentindo a frieza e a rigidez de sua textura. Perdi algum tempo nos relevos dourados que cobriam sua superfície, aproveitando que meus dedos eram finos o bastante para acompanharem o desenho no metal. Uma estranha sensação passou por mim, uma nostalgia distante, como se algum outro eu, em outra vida ou em outro mundo, já tivesse corrido os dedos por aquela caixa. De repente minha mãe e o tio Júlio não eram mais importantes, a claridade um pouco excessiva e os vídeo games também não, uma profunda sensação se apossou do meu âmago, excitando minha curiosidade até um nível que nenhuma missão em nenhum Playstation podiam excitar.
Eu estava diante do maior dos jogos.
A curiosidade ardeu e a adrenalina fez minha língua formigar. Meus dedos abandonaram os adornos abstratos e se moveram para um pequeno lacre metálico. Com um estalo fiz o lacre abrir e com muito mais cuidado do que deveria, empurrei a tampa revelando o interior.
Como descrever a sensação que tive ao ver o presente ali contido? Não economizo palavras ao dizer que foi a coisa mais incrível da minha vida. Eu deixei que o presente do tio Júlio tocasse meus dedos e me envolvesse, subindo lentamente por falanges e metacarpos, devorando rádio e ulna, atingindo úmero e esterno antes de se espalhar pelo meu peito. Por um instante prendi a respiração e podia jurar que meu coração havia parado. Por um instante até a iluminação excessiva da sala se tornou mais intensa, uma gigante vermelha, mas como toda boa gigante vermelha ela escureceu até se tornar uma anã branca, desaparecendo com a sala e me deixando só com o maior dos presentes.
Ali entendi o significado de levar alegria a outra pessoa, como pode ser prazeroso entregar, na hora certa, aquilo que a pessoa mais precisa. Depois daquele dia eu fui a casa de muitos amigos e familiares, sempre esperando o momento certo... O momento em que eu entregaria para outro o presente que tio Júlio me entregou. E qual não foi minha surpresa ao perceber que a oportunidade perfeita aparecera justamente para a pessoa que eu mais amava...
Minha mãe estava deitada. Seu cabelo uma confusão de mechas empapadas com o óleo de uma febre incontrolável. Seus lábios eram pálidos riscos quase no mesmo tom da pele. O coração sofria, bombeando sangue por pura pirraça, os pulmões inflavam por hábito, inúteis para qualquer outra função. Órgãos internos colapsavam, veias e artérias dilatadas até o limiar do rompimento. Nesse caos eu aproveitei o espaço entre os aparelhos e o tubo de alimentação que perfurava sua garganta como uma lança, me esgueirando até parar a seu lado.
Mamãe abriu os olhos para o quarto com claridade um pouco excessiva, como se soubesse que eu estava por ali. Seus lábios se mexeram mas nenhuma palavra foi pronunciada.
Eu sorri com meus sete anos, do mesmo jeito que sorri quando tio Júlio foi me visitar naquele mesmo hospital quinze anos atrás. Em meio a meu sorriso eu puxei das vestes a caixinha dourada com o presente mais aguardado.
Depois da visita do tio Júlio eu havia me tornado como ele. Eu era um Entregador. Na minha caixinha eu carregava a morte.
- Meu presente para você, mamãe...
Vendo a indiretamente culpada pelo meu câncer tocar a caixinha com suas mãos e recolher o presente de seu interior, foi impossível para mim não pensar sobre a ironia de tudo aquilo.
Dar para receber... Eu não podia pensar em outra coisa...