Por duas ou três vezes já escrevera sobre uma possível fuga da sua rotina. Recordava-se que seu amigo Roberto, da última vez que falara em fuga até se preocupara.
Dizia que a sua fuga seria boa e espetacular. E para ser boa teria que ter uma ótima companhia. Como nesse trechinho da música: "Ai, morena! Viver é bom, esquece as penas. Vem morar comigo em Babylon."
Para tranquilizar seus amigos, dizia que jamais adotaria, por exemplo, a solução dos que fogem da vida pelo suicídio, na ponte Golden Gate, na cidade de São Francisco. Achava essa atitude de extremo mau gosto. Um ato insípido, feio e doloroso. E o pior: o sujeito acabava ali com suas emoções. Não, a sua fuga era para a vida e não para a morte.
Como adorava emoções fortes, a fuga espetacular, com o coração acelerado, o pensamento a mil, era tudo de bom para ele. Havia adquirido esse gosto, quando da sua primeira expulsão de sala de aula, ainda no primário. Foi uma emoção única, um misto de medo e de alegria. Medo do castigo que viria dos pais. E alegria por se libertar daquela sala de aula enfadonha, com professores, em geral, sem a menor graça. Para não cometer injustiças, contava que teve professores maravilhosos, muito poucos, mas teve. Por exemplo, jamais fez bagunça nas aulas de um certo professor de história. Um cara espetacular. Então, quando ele pegava a pastilha Valda daquela latinha amarela, para melhorar a sua voz, cansada de tanto dar aulas, ele se deliciava e achava o máximo!
Lembrando-se do seu tempo da "juventude transviada", da época dos filmes de James Dean, e devidamente experimentado em todas as revoluções de costumes que experimentara com entusiasmo, desde os hippies até o zen budismo, ele chamaria aquela moça dos seus sonhos e diria: "vem namorar comigo, fulaninha, pois vou ensinar a você como se ama, pois nenhum babaca da sua idade, ou de menos idade, saberia lhe amar como eu."
O país ideal para a fuga, imaginava, seria Portugal. Mas acaba descartando essa hipótese, porque queria total privacidade. A língua seria muito familiar e não estava querendo intimidades. Assim, uma cidade que tem tudo, pelo lado prático, escolheria a cidade de Nova York, para viver com a moça.
Ele, um rebelde sem causa, de repente, teve um insight. Agora sabia por que desejava tanto fugir. Pensava: "Dizem que sempre voltamos à nossa infância, período mais marcante de nossas vidas."
Então era isso: a sua fuga representaria uma expulsão indireta dequela sala de aula, transformada hoje na sua rotina atual.
Estava tudo resolvido. Estava louco para ser expulso. Sentir aquele misto de medo e alegria. O diabo é que ainda não conseguira aquela intimidade com a moçoila dos seus sonhos.
Por enquanto, na cozinha, no seu amado Brasil, onde se sentia à vontade, ia arquitetando sua evasão. E sorria, ao imaginar o número imenso de pessoas que já sonharam assim, "chutando o pau da barraca", "chutando o balde", dando uma belíssima guinada para melhor em suas vidas... E se via usando o palavrão que ele mais adorava: " Mando à merda todo o meu passado."
E, por enquanto, sonhava...
Nota do autor : o conto é um exercício criativo e não guarda semelhança com a vida real.