O Curupira
O tempo das secas chegou e as águas começaram a refluir. A floresta que havia mergulhado nas águas do Madeira, e pelo rio havia sido abraçada, começava a espreguiçar-se para receber "Quaraci" em toda a sua plenitude. O manto cinza escuro, quase negro das nuvens grossas e carregadas de torrentes de águas, relâmpagos e trovões estava sendo substituído pelos raios multicoloridos do astro rei que se refletiam nos prismas das últimas gotas de um sereno tardio do tempo das águas.
Lá no centro da floresta, bem lá no fundo das matas, um menino de cabelos de fogo que dormia no oco de uma Sapopemba acordou despertado por um raio de sol brincalhão que, lá do alto se imiscuía por entre as folhas em seu caminho para aquecer o broto de uma samambaia que ornamentava as grosas raízes da sumaúma que abrigava o menino encantado.
O "curumim" de cabelos de fogo espreguiçou-se e levantou a mão para barrar outro raio dourado que alegremente lhe beliscava o olho acordando-o.
O garoto de cabelos vermelhos abriu a boca num bocejo preguiçoso, depois caminhou para uma folha de "tamba-tajá" porejada de gotículas de orvalho e com as mãos em concha apanhou o líquido translúcido e lavou o rosto. Em seguida recolheu orquídeas, flores de bromélias, fetos de samambaias e comeu o dejejum, depois cortou um pedaço do tamanho de uma braçada de "muiraqueteca" e saciou a sede.
Ainda meio adormecido, meio acordado, lembrou-se de como havia chegado à Sapopemba na garupa do 'Rompe Moita', seu "caititu" favorito, extremamente cansado no início do tempo das águas e da briga titânica que tivera com os monstros de metal que agora habitavam as margens das "Aroya", primeiro nome das Cachoeiras de Santo Antônio e Jirau, no Rio "Cayari", primitiva denominação do Rio Madeira.
Os cabelos espetados para cima que lembravam a crista de um pica-pau enrijeceram-se quando o "curumim" de pele branquíssima lembrou-se dos trovões que esturravam das entranhas da terra e das matas que margeavam o rio de águas amarelas, cor de ouro velho. Os homens estavam conspurcando a virgindade das matas e das pedreiras das cachoeiras milenares de Santo Antônio e Jirau. O velho rio Madeira, companheiro de eras incontáveis mandara "amanajés" com recados desesperados e em pouco tempo se espalharam pelas florestas em busca de notícias ciganas, garças, biguás e jaçanãs, tucanos, papagaios, araras e periquitos. Não satisfeito, o poderoso Rio, ferido em seu orgulho, pedira obséquios à sua prima, "Yara", que convocando os súditos e também mandara recados urgentes pelos bagrinhos, mandis e tamuatás.
Até a poderosa "Pirayba", o maior peixe de todos os rios da Amazônia, com o risco da própria sobrevivência saiu em demanda por lagos, furos e paranás procurando o encantado.
Nos alagados em que o leviatã dos rios não podia penetrar, dado o seu tamanho descomunal, ela enviara seus servos, e então, as pirapitingas, jatuaranas, tambaquis, matrinchãs, tucunarés, pacus e piaus esmiuçavam igarapés e pequenas fozes da malha aquática do Madeira. As traíras e os muçuns procuravam nos igapós e charcos.
Como última tentativa e sentindo o gosto da suprema humilhação o velho Rio Madeira pediu ajuda até da majestosa "Harpia", o poderoso Gavião Real, que se dignou a descer das alturas para voar por entre as copas das árvores mais baixas e ravinas como se fosse um reles Bem-Te-Vi.
Todos voltavam desiludidos e decepcionados para o amargurado rio. Muitos se quedaram em tanta tristeza que a "panema" quase os fez perecer.
Infelizmente o garoto de cabelos cor de fogo andava lutando contra os incêndios famintos por florestas que, incentivados por brancos, provocavam súplicas de socorro pelo interior do Vale do Guaporé.
Digladiava debalde também contra os agrotóxicos no lado sul do império de "Quaraci" sob sua guarda, lá pelas bandas dos planaltos de Vilhena.
E o que dizer das derrubadas das matas pelas regiões de Chupinguaia, Cabixi, Pimenta Bueno e Rolim de Moura?
Essas derrubadas eram gigantescas feridas abertas no seio da mata a fim de abrigar os rebanhos de gado nelore; esse bicho alienígena na fauna da Amazônia apresentava um crescimento exponencial que cobria como um manto branco as feridas abertas na floresta como se fosse uma horda de saúvas vorazes.
A demanda de ameaças ao reino de "Quaraci" era superior ao tempo disponível para combatê-las. Ainda que ele de vez em quanto pudesse contar com a inestimável ajuda das tribos indígenas, caboclos e “beradeiros” que com suas crendices e rituais nativistas criavam auras de energia que revigoravam a sua essência de encantado das florestas; ele sentia que a sua força, outrora poderosa, agora, aos poucos se esvaia no desprezo das novas gerações pelas antigas tradições ritualísticas.
A tecnologia moderna, o laptop, a internet, os celulares, os vídeos do youtube, o twitter e o facebook estavam paulatinamente substituindo os rituais de pajelança e os cânticos de invocação das entidades da floresta pelos “hits” da internet e pelas fofocas dos "Cari" famosos, tais como: cantores sertanejos, jogadores de futebol e artistas da TV. Os indígenas, os caboclos e os ribeirinhos acreditavam mais nas parafernálias eletrônicas do que nos rituais sagrados e superstições.
No entanto, existia a contrapartida, essa compensação que "Jaci", a Mãe das Florestas, tão sabiamente administra para manter a harmonia de seu império.
Entre os homens, os brancos, existiam aqueles que nutriam verdadeira idolatria pelas florestas e rios. Existiam os grupos de "cari" que lutavam pela preservação do reino animal e vegetal, seus domínios. E essa luta contava em seu arsenal com celulares, laptops e telefones via satélite, além é claro, de todos os benefícios da grande rede digital. Essa tecnologia que, se por um lado o enfraquecia, por outro lhe dava um alento de sobrevida. A energia positiva que emanava desses grupos lançava fluidos benéficos por sobre as copas das árvores fazendo com que o orvalho da madrugada os transportasse para umedecer o húmus e as folhas secas rentes às raízes das árvores que por sua vez com a chegada dos raios do sol exsudavam um véu de neblina carregado de nutrientes que encobria a floresta num eterno moto contínuo de renovação da vida e soerguimento de sua energia vital.
O garoto de cabelos flamejantes ainda lembrava que quase sucumbira com o esgarçamento da fé que os caboclos e ribeirinhos nutriam pelas entidades das matas. Ele lembrava-se bem do comentário que ele ouvira de uma professora de um Posto Indígena em uma aldeia de uma tribo "Makurap". Como era mesmo o comentário? Sim! A professora dos "curumins" dissera o seguinte:
“Os deuses e as entidades para existirem, dependem da fé, da crença dos homens; qualquer deus, não importa o quão poderoso ele seja, se grande ou pequeno; sem a fé que os homens depositam neles, eles sucumbem, eles morrem, eles desaparecem sem deixar rastros.”
Ainda bem que ele recebera uma sobrevida pela crença que os "cari" de boa fé depositavam na renovação da floresta. E essa sobrevida o impulsionara em socorro ao Rio amigo. Mas chegara tarde. A tragédia já estava consumada, mesmo assim, tentara por inúmeras vezes as mais diversas artimanhas para impedir a construção das hidrelétricas, porém, todas as ações engendradas por mais que retardassem o início das obras, ao fim e ao cabo, mostraram-se tentativas vãs.
O menino ainda se lembrava de algumas artimanhas impetradas por ele, e a essa lembrança esboçou um sorriso amargo.
Quando um dos biólogos do IBAMA encarregado de elaborar o relatório de impacto ambiental para a construção das usinas foi passar um final de semana no Lago Cuniã, o encantado inspirou-lhe um “insight” para constar no relatório que a construção colocaria em risco a existência e a procriação do bagre “dourada” ou “dourado” como era mais comumente conhecido.
O 'insight' provocou tanta controvérsia que o "Morubixaba" dos "Caciques" do Brasil à época, um ex-torneiro mecânico falastrão ficou tão apoplético com o retardo das obras que em um discurso no interior no Nordeste soltava nuvens de perdigotos por sobre a barba hirsuta. Pena que o empate durou pouco.
Doutra feita ele inspirou líderes comunitários das vilas e comunidades de ribeirinhos ao longo das cachoeiras para exigirem contrapartida pecuniária das construtoras tais como construção de nova vila para os nativos, seringueiros e quilombolas com todos os benefícios da civilização, casas de alvenaria, ruas asfaltadas, escolas, farmácias, postos de saúde, creches, supermercados, energia elétrica, água encanada, rede de esgoto e internet “wireless”, além de indenizações por danos materiais.
Todas as exigências não iam ficar baratas.
Porém, o que as construtoras despenderam de recursos financeiros para cumprir as reivindicações amparadas pelo Poder Judiciário eram risíveis quando comparadas com o lucro desmesurado das construtoras.
O encantado lembrava ainda de uma grande aliada, uma "auá", filha de seringueiros lá do interior do Estado do Acre, que inspirada por ele, tornou-se Senadora da República e posteriormente "Cacique" do Ministério do Meio Ambiente.
Pobre "auá". Em pouco tempo tomaram-lhe o "cocá" de "Cacique" e transformaram-na numa incômoda "caba" que ficou dando ferroadas pelos corredores da grande "taba" do Planalto Central.
Infelizmente ela era somente uma "taperá" carregando água no bico para apagar o incêndio das ambições planaltinas e dos cartéis das megas corporações.
O "curumim" ainda se lembrava da última tentativa perpetrada nos últimos meses.
Durante noites e noites ele pairou por sobre os alojamentos dos operários das construtoras influenciando-os em sonhos para paralisar os trabalhos da construção das usinas tendo como motivo, melhores condições de trabalho. O encantado sorriu com amargura, vã tentativa, os trabalhos pararam por poucos dias, nada mais.
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Sentado no grosso galho de uma frondosa castanheira à margem esquerda do poderoso rio amarelo, "Iamandu", mais conhecido entre os brancos como "Tupã", amparava o "Curupira" em seu colo, o menino de cabelos flamejantes estava desolado. Ele não conseguia se conformar com a situação do amigo, o orgulhoso Rio Madeira, o mais impetuoso, o mais indomável rio da margem direita do imponente Rio Amazonas e seu principal afluente, agora jazia manso, domado a fórceps pelas barragens das hidrelétricas.
As águas douradas, cor de ouro velho, antes ligeiras, agora corriam plácidas rente às raízes da maior, mas bela e mais poderosa árvore da floresta amazônica.
A castanheira centenária que ainda tenro feto recém-saído de um ouriço deixado à margem do rio por uma cutia saciada de castanha, devia sua sobrevivência ao encantado que a protegera de um raio lançado por "Iamandu" em um dia de fúria, pediu para as marolas que encrespavam o rio dourado mandarem um pouco de brisa para refrescar o garoto de cabelos cor de fogo que olhava para o nada com olhar sorumbático.
Quase adormecido pelo acalanto das marolas e o suave bafejo da brisa do rio, o "Curupira" se aconchegou nos braços de "Iamandu" e deixou rolar uma lágrima sentida, temendo não ser mais digno de portar o cocá de guardião das florestas e dos animais.
Porém, "Jaci", irmã de "Iamandu" que a tudo observava com plácida bondade, enviou um "caititu", montaria predileta do encantado, para leva-lo para o mais denso centro da floresta e chegando lá, que ele procurasse a maior Sapopemba que pudesse existir, e após encontra-la pedir aos "quatis" que ali vivessem para convocarem todos os "colibris" para que, com suas penas mais delicadas fizessem uma cama bem aconchegante para o merecido repouso de seu guardião preferido, afinal, o embate com os "Cari" e a sanha deles pelo progresso a qualquer custo a muito que não tinha data para terminar.
Glossário:
AMANAJÉS – O mesmo que mensageiro; AROYA – O mesmo que cachoeira, águas ligeiras, furiosas; AUÁ – O mesmo que mulher; Beradeiros – O mesmo que ribeirinhos. Pessoas que habitam as margens dos rios amazônicos; CACIQUES – Nas nações indígenas da Amazônia é o Chefe Guerreiro de cada aldeia; CAITITU – Porco do mato, cateto; CARI – (Kari) Homem branco; CAYARI – Designação para “madeira em cima d’água”. Os índios chamavam o Rio Madeira de Cayari, porque nas cheias, as correntezas levam as toras de madeira boiando de rio abaixo; COCÁ – O mesmo que coroa de penas; COLIBRI – É um gênero de beija-flores que ocorre na América Central e do Sul; CURUMIM – O mesmo que criança, menino; CURUPIRA - É uma entidade das matas, um anão de cabelos compridos e vermelhos, cuja característica principal são os pés virados para trás. Ele protege a floresta e os animais, espantando as pessoas que não respeitam as leis da natureza; HARPIA - (Harpia harpyja) é a mais pesada e uma das maiores aves de rapina do mundo, com envergadura de 2,5 metros e peso de até 10 quilogramas; IAMANDU – Na teogonia tupi é o pai de todos os deuses do panteão indígena, Tupã; JACI – Na teogonia tupi é denominação da Deusa Lua; YARA – Deidade indígena. Significa “aquela que mora nas águas”; MAKURAP – Grupo indígena que vive em Terras Indígenas localizadas no estado de Rondônia. A língua Makurap faz parte da família linguística Tupari, que, por sua vez, integra o tronco Tupi; MORUBIXABA – Entre os indígenas da Amazônia, indivíduo que exerce funções de chefia entre os caciques de uma nação; chefe temporal; MUIRAQUETECA – O mesmo que cipó-caboclo ou cipó d’água. Trepadeira que tem a propriedade de armazenar água em seu interior; PANEMA – Diz-se do caboclo que está cansado, desanimado, com tristeza profunda; PIRAYBA – Maior peixe de couro (bagre) da América do Sul e um dos maiores do mundo; QUARACI – Na teogonia tupi-guarani é a deidade do Sol; QUATI - Também grafado coati (do tupi "nariz pontudo"). A coloração, em geral, é cinzento-amarelada, porém muito variável, havendo indivíduos quase pretos e outros bastante avermelhados, focinho e pés pretos, cauda com 55 cm, com sete a oito anéis pretos. Mede de corpo 70 cm. Vive em bandos de oito a dez; TAMBA-TAJÁ - planta de folhas triangulares, de cor verde, trazendo em seu verso outra folha de tamanho reduzido, onde se visualiza um bordado de um desenho que parece o desenho de um órgão sexual feminino; TAPERÁ – O mesmo que andorinha; TUPÃ – O mesmo que Iamandu;