VIDA EM TECNICOLOR*
Os olhos fitavam com assombro aquela situação nova, trocara ruas pacíficas, onde galinhas e cães displicentes passeavam, pelo rebuliço, surreal realidade terrífica, alimentada na mente fantasiosa. Figuras dantescas, imponentes, como a esmagá-lo, onde apresentava- se insignificante, reles formiga, avistando os ameaçadores arranha-céus, vistos do chão, pareciam gigantes a ameaçá-lo em sua postura frágil, de adolescente caipira, recém oriundo de um mundo diverso e distante.
Alienígena pisando em outro planeta, incomodado com a algaravia estrepitosa a assustá-lo, tudo era assombro e novidade. Ainda vivendo em dois mundos, o real e o fantástico em tecnicolor, aturdido com as cenas de filmes assistidos naquelas tardes domingueiras, único atrativo disponível para preencher o vazio daqueles dias. Embrenhava-se nas salas escuras, sedento de outras realidades, pagando um ingresso, esquecia de si e de seu mundinho tacanho, viajando na fantasia onde sentia-se realizado, facilitando a ilusão e o passar do tempo, medidas para evitar o tédio sempre a espreitá-lo. Como uma sombra a esperá-lo na saída, acompanhando-o, assim que acendiam as luzes, espantando as quimeras, trazendo-o ao mundo real.
Recém chegado de pequena cidade, sem amigos e ambientes, restava apenas freqüentar cinemas, aos domingos, entretendo-se, vivendo emoções a ajudá-lo a transpor o tempo na entediada solidão da grande cidade.
Enquanto tantos na escola aguardavam ansiosos pelo final de semana, ele, encolhido na sua timidez , sofria o peso daqueles dias, em que o movimento das ruas escasseavam, embora estivesse em uma megalópole, as pessoas transitavam em ritmos diferentes, alegres e acompanhadas de seus pares. A ele, apenas o andar cabisbaixo, mãos nos bolsos, perdido em suas íntimas cogitações, como um peixe fora da água.
O mais contraditório para si era abominar a pacatez bucólica dos vilarejos onde nasceu, passou a infância e entrada na adolescência, como se reclamasse a falta da agitação em que se via inserido agora. Ocorria uma transformação radical e repentina, fazendo-o um Ser em terra estranha. Não tinha saudades de sua solidão, apenas percebeu que de tão sua, jamais o largaria.
No vagar solitário, parecia que a maldição dos domingos o perseguia, sempre sentindo-se só naquele dia da semana, estranha sensação vinda de muito tempo. No seu local de origem, estes dias lembravam os circos mambembes, chegavam trazendo novidades à cidadela, alterando o panorama parado daquelas vidas infantis. Ficavam pouco tempo, momentos de agitações e divertimentos, até irem embora, e tudo voltava à mesmice das plácidas rotinas, levando a alegria ambulante em suas lonas remendadas como colchas de retalhos.
Tentava superar aquele padecimento, achava-se infinitamente só. Sem conseguir entender e codificar o que fosse aquele sentimento, sofria não encontrando respostas que o animasse, justificando tanto penar. Os olhares traíam o sofrer angustiado, inútil brado silencioso e despercebido por todos, talvez também presos em suas angústias nos labirintos pessoais.
Em sua infância o visitava, amiúde, aquela sensação de tédio inexplicável, principalmente no sétimo dia, onde todos se apinhavam no estádio de futebol, coisa que nunca lhe interessou, ficando desertas as ruas, tendo um sol inclemente por companhia e seus passos desalentados a percorrê-las.
Tinha algum destaque nas aulas de português, no antigo curso ginasial, às quartas-feiras, dia de redação, tema livre. Então suas inquietações, mal escritas, choravam em folhas, atraindo a atenção do professor, benévolo com a ortografia claudicante, atraído, contudo, pelas criações daquele aluno acabrunhado e triste, mas por ele tido como fértil e imaginoso em suas narrativas. Acesa estava a literatura, consolo para o enigmático aluno, momentos raros a atrair a atenção dos demais estudantes. Tempos depois, amadurecido, julgou compreender que tais estados da alma lhe propiciariam fugas, ensimesmado, fazendo enredos e falando consigo mesmo, em curiosos solilóquios, tendo os livros por companhia. Recordava que a maneira achada para se sentir percebido pelos demais na escola, era escrevendo textos para serem representados, onde cada qual disputava um papel e assim o incluíam em seus grupos, por puro interesse.
Durante os demais dias da semana, na azáfama programada, embora rotineiros, distraia-se nos movimentos, afastava aquele sentir desolado, uma nostalgia sem saber do quê. Sua mente juvenil não conseguia dar vazão àquele ostracismo a martirizá-lo para dentro de si, magoando-o.
E agora aqueles prédios, jamais imaginados, parecendo olhá-lo do alto, figura insignificante, a andar pelas ruas estranhas da cidade imensa e fria. Como a vida lhe soava insossa naqueles momentos, perdido em divagações sombrias. Não havia cores que o despertasse de seu mutismo, aliás, tampouco uma amizade para partilhar conversas, dividir anseios, ver-se menos solitário. Os colegas na escola tinham assuntos tão distantes de sua familiaridade, falavam em dialetos, a mantê-lo alheio, pertenciam àquele mundo moderno onde se figurava visitante mal recebido. Era desajeitado, caipira, intruso. Ainda por cima, curtia um dolorido e platônico amor por uma colega, aquilo o afligia sobremaneira, colocando bilhetinhos sob a dorso da estátua no corredor, esperançoso de receber alguma resposta, que nunca veio. A amava em sua ingenuidade interiorana, com seu silêncio e tormentoso segredo a sete chaves escondido.
Incrível e sofrido sentir-se só na multidão, cada um vivendo seu universo pessoal, fechados em si mesmos, inescrutáveis a terceiros. Manada de seres de passos rápidos, sempre buscando alguma coisa, não importando o que. Aquela balbúrdia sonora, de impacientes motoristas presos nos congestionamentos intermináveis, ruídos de ambulâncias, bombeiros e policias com suas sirenes tresloucadas reivindicando passagem entre os carros, infernizando ainda mais o trânsito já sufocante.
Atraía-o a nave irresistível, imensa tela branca, dividindo dimensões, a arrastá-lo proporcionando frenesis que o aborrecido viver cotidiano desconhecia. Assim, via-se em mil cenas, transportado da cadeira como passivo assistente, para os céus de empolgantes estórias, vivendo as personagens, beijando tantas lindas fêmeas, sendo disputado por elas. Sobrevoando alturas, homem alado, super herói, enfrentando mares bravios, vencendo gigantescas serpentes e dragões, escalando duras escarpas, encarnando personagens, utilizando-se de tantas vestes, vendo-se em outras paragens. Gritando em altos brados, fazendo-se ouvir e sendo respeitado, até descansar extenuado de tantas aventuras.
Acendiam-se as luzes, no ato acordado, sonolento, dando passagem para o parceiro ao lado, pessoas levantando-se de suas poltronas, passageiros das ilusões retornando, evadindo-se da sala, o filme de ação terminado. Ecos das emoções deglutidas, universos fantásticos rebobinados nas câmeras cinematográficas.
Voltava às ruas, vagando, aluado, na modorra da rotina fria, entediado, ele e a sua fiel escudeira, a solidão...
*PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA QUADRILOGIA IV ELEMENTOS - AR, Editora BECO DOS POETAS E ESCRITORES LTDA. Outubro de 2011.
* PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA CONTOS DE OUTONO-2016,
EDITORA CBJE - RIO DE JANEIRO-RJ.