Retalhos de uma sedução
Deveria ser um domingo qualquer e talvez o fosse realmente... Um sol escaldante invadia a janela do quarto e ajudava a iluminar a casa. Ela olhou-se no espelho e viu-se diferente. Sua fisionomia estava mudando. Seu rosto agora trazia algumas marcas que não tinham muito a ver com o tempo que envelhece, eram causadas por um tempo difícil em sua vida, por um caminho que lhe trouxera marcas estranhas que, acopladas ao seu rosto, a mostravam muito diferente do que tinha sido há tempos...
Não estava feia, apenas estava diferente e tentava aceitar-se dessa forma. Apesar do calor estonteante, ela sentia calafrios que percorriam todo o seu corpo e transformavam o clima de espera em algo fantástico como uma busca do inesperado que poderia nunca chegar e, se chegasse, talvez decepcionasse...
No som fez-se ouvir um CD com antigas canções francesas enquanto ela tentava recordar-se da França... Mas era algo tão distante, parecia perdido num universo que já não mais pertencia a ela. Conseguia, com um pouco de esforço, lembrar-se de pequenas cenas ocorridas na Itália, algumas tantas que vivera na saudosa Inglaterra e muitas, mas muitas mesmo que protagonizara na Espanha onde parecia ter deixado para sempre seu coração, seus sentimentos e tudo o mais que lhe pertencia....
Voltara algumas vezes à Espanha, na esperança de reencontrar seus pedaços espalhados pelos cantos daquele país, mas não havia ninguém a sua espera. Na verdade, alguns a esperavam sim, mas tinham atravessado o mundo, ancorando neste país acolhedor que nunca diz não a ninguém. Bem, foi no Brasil que ela finalmente encontrou alguns cacos de suas cenas, uma ou outra personagem que parecia integrar seu imenso quebra-cabeças... Mas os momentos corriam fora do seu tempo natural, em algum desses momentos, ela distanciou-se tanto que ninguém mais poderia alcança-la e, por mais que ela parasse aguardando alguma chegada, percebia decepcionada que também os outros paravam e, dessa forma, nunca haveria um encontro real...
Lágrimas corriam agora por seu rosto transformado e ela pensava que, em breve, seria novamente natal. E esse seria o mais especial pois seria o último, ao menos, o último desse seu ciclo de vida... Ela sabia que todos esperavam dela grandes revelações, a continuidade de uma vida voltada ao idealismo, ao pioneirismo, ao desvelo de grandes segredos, mas ela já não tinha mais forças, motivos, nada que a fizesse reerguer-se e continuar rumo ao futuro que, por sinal, estava muito próximo.
Ela preferira recuar, retornar à sua adolescência, de academia em academia, dançando, cantando, talvez até fizesse uma ponta numa dessas peças amadoras de um teatro que quase ninguém assiste. E, certamente, pouco antes do natal, iria apresentar-se com suas colegas de aulas nessas festinhas em que somente os parentes comparecem e, por pura obrigação. Todas já estavam animadas combinando sobre suas roupas da dança do ventre e, na turma de flamenco, não se falava de outra coisa que não fosse a Sevilhana que seria mostrada no final do ano... Ou melhor, nas turmas de flamenco pois, no seu desespero de retornar a esta dança, acabara por inscrever-se em três turmas diferentes.
Era essa a palavra exata; desespero. Ela tinha tão pouco tempo para fazer tantas coisas que deixara pelo caminho que, às vezes, perdia-se, desesperava-se, chorava e, ainda entre lágrimas, recomeçava e fazia novamente, tudo ao mesmo tempo... e, por mais que se perdesse, na maioria das vezes, conseguia mesmo fazer tudo o que programara... faltava apenas uma realização que não dependia somente dela:
Ela queria alguém especial que a entendesse plenamente, que não a achasse uma louca com suas conversas sobre a vida e o Universo, que falasse o mesmo idioma que ela, enfim, alguém especial com quem ela dividiria suas idéias, seus receios e seus seios, que há muito tempo ela não deixava serem tocados... Se ela não pudesse pertencer a um homem muito especial, então ela não queria pertencer a ninguém... E ela ainda o esperava e, no fundo, sabia que ele viria por um tempo, alguns dias ou até mesmo, por uma única noite, quem sabe na noite de natal trazido por um retardatário Papai Noel. Então, nessa noite, toda a sua espera teria sentido, teria mesmo valido a pena, ainda que fosse para viver um único momento especial...
Mas, enquanto essa noite especial não chegava, ela apenas vivia desesperadamente, fazendo tudo ao mesmo tempo e recusando-se a pensar, se pensasse muito nem mesmo sua dança teria sentido porque, sua realidade lhe mostrava, fria e irredutível, que tinha apenas e tão somente, retalhos de uma sedução...
© Lou de Olivier 05/09/04