O Mendigo
Um menino pobre sentou-se maltrapilho e com fome no banco da praça naquela diminuta cidadezinha do interior. As outras crianças alimentadas e bem vestidas não o queriam por perto em suas brincadeiras. Ficou ali olhando de longe e às vezes sorria como estivesse participando. De repente surgiu de algum canto um homem maltrapilho e os outros meninos quando o viram foram se afastando: - Olha o doido, vamos embora senão ele joga pedra na gente! - Foram-se todos menos o menino pobre que continuou ali sentado em enorme tristeza. O maltrapilho aproximou mais, olhou o menino e perguntou: - Não tem medo de doido?- Não!- Por que não? - Porque não! Sua roupa esquisita era cheia de bolsos, quatro externos e mais dois internos num paletó. Falou: - Quer saber o que tenho nos bolsos? - Não!- Por que não?- Porque não!- Hum! Mas eu mostro. Olha esse aqui – indicando o bolso direito. - O menino olhou e viu um imenso deserto, nenhuma gota d’àgua, nenhuma árvore, um calor de matar. O menino ficou boquiaberto e sem entender.- Quer saber o que tem no bolso de cima? Hum! Eu mostro. O menino olhou e viu correr lá dentro um rio caudaloso que entrecortava enormes pedras brancas e o som das águas seguindo seu movimento espetacular. O menino ficou novamente boquiaberto sem entender o que via. Depois, tornou o mendigo: - Quer ver o que tenho no bolso esquerdo? Hum! Eu mostro. O menino olhou e assustado viu enorme exército lutando em espadas e lanças contra outro enorme exército. Mais uma vez ficou boquiaberto sem entender. Depois, tornou o mendigo: - Quer ver o que tenho no bolso esquerdo de cima? Hum! Eu mostro. O menino extasiado viu enorme castelo com paredes revestidas de ouro e mesas postas com toda a variedade dos mais finos pratos de comidas exóticas e que cheiravam deliciosamente e continuou sem entender. Depois, tornou o mendigo: - Quer ver o que tenho no bolso interno do lado direito? Hum! Eu mostro! - O menino olhou e não viu nada, mas sentiu. Um sentir de não dizer e de não palavrear só sentido, só assim. Então pediu ao doido:- Posso entrar no bolso?- E o doido cortesmente respondeu:- Como não? Faça-me a gentileza! -O menino ainda perguntou:- Em qual bolso começo?- Hum! Vejamos: Que tal começar pelo rio? No bolso do deserto não precisa, você já está nele. Já pode ir ao bolso do rio, que é o seu próximo passo. De lá siga para o da guerra e depois o do castelo. Por fim o último, o do nada! - Está bem, mas como faço para caber dentro do bolso? - O doido então abriu o bolso do rio que ficou exatamente do tamanho do menino que nele entrou. Lá dentro descobriu que as águas que formavam o caudaloso rio eram de suas próprias lágrimas. Depois sentiu vontade de seguir caminho e olhou para a margem direita. Lá estava a guerra. Pensou: Êta, isso aqui tá prá mim que preciso acertar uns golpes. Quando acabou de dizer a palavra golpes apareceu instantaneamente em sua mão direita uma vistosa espada feita do mais duro aço do universo. Caiu na luta! E era espada contra espada, ninguém estava acertando ninguém, era só plaft, plaft, plaft! Quando finalmente se sentiu cansado gritou: - Chega de luta, aqui todos os dois lados têm razão, e se é assim então aqui a justiça já chegou.- Então todos os lutadores cessaram a luta e gritaram: - Viva! Êta guerrinha boa, a justiça já chegou. - O menino embora cansado resolveu seguir caminho e chegou no bolso do castelo. Quando entrou sentiu na pele o que era o luxo e pensou: “O ouro só serve mesmo prá ser ouro.” - Gostou muito dessa frase e achou que tinha agora virado poeta. Em seguida viu a mesa cheia de comida e aí não pensou que era poeta, simplesmente comeu bastante. Depois que a barriga já estava cheia e muito cheia pensou que poderia então agora fazer uma poesia sobre a comida. Não saiu nada! Deduziu que pesada ficara sua cachola por ter comido demais. Viu por outro lado que poderia tirar uma lição: “Deve-se comer prá viver, não viver prá comer.” Lembrou que já ouvira isso antes em algum lugar e não estava sendo original, mas que esse ensinamento precisa ser lembrado todas as vezes que alguém levar algum alimento à boca. Sentiu vontade de soltar a voz e soltou:- Quem é o dono desse castelo?- Ouviu uma voz que saía das paredes:- De duas sócias!- E quem são elas? – Perguntou!- A ilusão e a ganância – respondeu a voz. - Obrigado sócias pela comida boa, mas tenho que seguir caminho. - Ah! Bobagem menino fique mais um pouquinho. Sinta-se em casa! - Tenho que realmente ir, obrigado mais uma vez. - Só que nesse momento é que o menino percebeu que estava muito cansado e falou: Bem sócias, como estou muito cansado vou ficar só mais um pouquinho, depois sigo viagem.- Isso, isso – responderam as sócias. Então o menino resolveu deitar em uma rica poltrona que se encontrava no luxuoso salão. Era de ouro e achou-a um pouco desconfortável por ser de ouro maciço. Pensou: - Hora é desconfortável, mas é de ouro e por ser de puro ouro até que não é tão desconfortável assim. E deitou satisfeito e alisando os contornos dela. De lá viu a mesa de comida agora renovada com novas iguarias. Não estava com fome, mas a comida parecia tão apetitosa que se levantou rapidamente e fez outro prato. Depois que comeu é que se lembrou do dito “Deve-se comer prá viver e não viver prá comer.” Resolveu ir embora agora que estava descansado, mas estava com preguiça e ficou mais um pouquinho. Dormiu e quando acordou disse: - Nossa, acho que demorei um pouquinho demais, quanto tempo dormi aqui, sócias? - Ah! Tiquinho de nada, só duas encarnações! Então o menino ficou triste e resolveu apertar o passo. Só que cada passo que dava para frente andava dois para trás. Assustado, resolveu correr, correu em dobro para trás. Correu tanto que foi parar no bolso do deserto. Lá sentiu um calor dos infernos, uma sede dos infernos e uma fome dos infernos. Revoltou contra tudo, esmurrou as areias, esmurrou os raios de sol escaldantes, esmurrou seu estômago vazio chamando-o de culpado. Assim ficou durante muitos sois, durante muitas areias. Um dia sentiu em seu rosto alguma coisa úmida. Levou a mão para sentir o que era (lá não havia espelho) e descobriu que era uma lágrima. Por tê-la sentido outra desceu pelo rosto, e outra e outra. Desceram tantas que formaram um pequeno riacho e ele saiu boiando nele até chegar novamente no bolso do rio. Ali se lavou finalmente de tudo. Não havia outro sabão que o da sua consciência. Quando estava bem limpinho e calmo pensou no bolso do nada. E o nada se fez. Não poderia dizer que o nada era bom ou ruim, porque era o nada. Mas reparou que nada era melhor do que estar em nada. Tinha pai e mãe? Nada! Família? Nada! E foi ficando tão leve, tão leve que voou. Atravessou por dentro do tronco das árvores, entrou no bico dos passarinhos e saiu junto com seus gorjeios. Montou no vento e soprou com ele uma vela na igreja. Soprou uma hélice que produzia energia eólica, se fez ar para que as abelhas pudessem voar e virou barro para o João de Barro fazer sua casinha. Soprou o mar levemente e esse agradeceu: Chaaaaaaaaaaa! Quando tudo isso fez sentou em lugar algum e pensou: O nada é tudo! Agora se sentiu poeta de vez...