O Mercenário e a Meretriz: Parte 5
CAPÍTULO 11: O PRISIONEIRO
Durdia. Maldita Durdia. O reino dos cavaleiros, do metal e do aço. Nyeberum tinha seus campos férteis, sua cultura, sua nobreza ancestral e um passado do qual ele queria esquecer. Kalvas, seus mistérios, sua Torre Branca e seus importantes Arcanni. Ravate, terras devastadas pelas guerras, repleta de cultistas e bárbaros.
Mas Durdia?
Durdia seria seu túmulo.
Estava acorrentado pelos pulsos e pelas pernas, como se realmente precisassem daquilo para prendê-lo, na situação lamentável na qual se encontrava. A cela na qual o tinham colocado dentro do recém reconquistado Forte Parvaza era pequena, suas paredes feitas de pedra quadrada e manchada, escura, úmida e exalava um fedor constante de urina. Nada disso ajudava nas suas feridas, que agora ardiam e doíam mais do que antes. Seu braço esquerdo sequer movia, e ele tinha certeza que iria perdê-lo em breve.
Que fosse. Não tardaria muito para o resto do corpo acompanhá-lo na podridão.
Jethro estava cansado. Fazia muito tempo desde que fugira de Ticulis, enfiara-se em um barco com um capitão sádico, fora obrigado a ficar a deriva e finalmente aportara numa floresta próxima ao vilarejo de Lodoro. Lá, enfrentara criaturas do subterrâneo, e tivera que fugir, mais uma vez. Não seria capaz de lidar com elas, e deixara o velho Ancião que liderava aquele vilarejo rústico e atrasado, repleto de crianças e mulheres, a mercê daqueles monstros.
Em algum momento, pensara que ganharia a vida em Trezamores, a famosa Cidade Livre com qual tanto sonhara, onde um mercenário renegado como ele teria como ganhar a vida. Mas aquilo fora apenas uma ilusão, e no meio do caminho.. A Sagrada Incursão recrutara-o.
Há anos, tudo o que fazia era fugir... e deveria ter fugido deles também. Eram o que, três batedores? Um deles era um Vigilante, claro, mas nem por isso deveria ter fraquejado. Talvez pudesse enfrentá-los. Ainda era bom com a espada, isso ficara claro durante a invasão às muralhas, e teria matado-os, pego seus pertences e montarias, e estaria numa situação bem melhor que a atual.
Quisera fugir de uma vida inteira de desgraças e burrices, mas tudo o que encontrara fora a morte certa, como mais um soldado de um exército que lutava por uma causa na qual sequer acreditava.
Ainda assim, era um mercenário, e deveria estar acostumado com esse tipo de coisa. Deveria, mas talvez não estivesse. Deu o melhor de si, e os homens simples daquela Incursão que de Sagrada nada tinha, o admiraram.. Por uma noite.
Comemorara e bebera como um rei, e sentira-se feliz como há muito não sentia, quando entre tantos outros cantara sobre as proezas da batalha, e talvez tivesse bebido um tanto mais do que deveria.. Mas qual era o problema nisso? Ele sentia que merecia.
Bebeu por todos os amigos que já perdera, e por todas as pessoas que já matara, e por todas as que queria mortas, e foram tantos os canecos que ele sequer se lembrava do que havia acontecido naquela noite.
“Talvez eu tenha dito algo que não devia. Sobre meu passado. Sobre minhas ações. Sobre quem realmente sou.” – Pensou, com tristeza. Não seria a primeira vez que a bebida o trairia. Mas não importava o motivo, eles agora sabiam que ele era um criminoso, um assassino, procurado em talvez três reinos, alguém pelo qual a cabeça muito ouro seria oferecido.
E portanto, tudo o que tinha para fazer ali, acorrentado na cela escura, era se lamentar. Por um lado, lhe dava certo alívio ter sido finalmente capturado; era estranho ser sempre chamado por outro nome, e viver em constante preocupação com Vigilantes e noticias vindas de Ticulis, mas foi justamente no momento em que achou que tinha deixado tudo aquilo para trás, é que haviam capturado-o.
Lembrava-se de estar conversando com Lorde Ervan, herdeiro de Inristann, quando seu pai e tantos outros apontaram suas lanças em sua direção e ordenaram que se rendesse. Ele não teve outra opção. Estava com o braço e a cabeça fodidos demais pra tentar qualquer coisa.
Rendeu-se; deu um sorriso debochado e recebeu uma forte pancada na cabeça. Quando acordou, estava ali, preso pelas correntes, e nada mais acontecera desde então.
Não fazia idéia de quanto tempo estava preso. Podiam ser horas ou dias, ele não tinha como dizer. Não havia janelas, e a pouca luz que tinha vinha de fora, passando por baixo de uma porta grossa de metal que permanecia fechada.
Podia sentir o chão estranhamente molhado com os pés descalços, e por vezes alguma coisa passando por si. Atribuiu aquilo a aranhas, já que podia ver pouco mais que o contorno de uma fina teia refletida pela fraca luz que entrava lá dentro.
Sacudia as pernas e mandava o que quer que fosse que estivesse passando por cima de si embora, mas sabia que voltaria. Que se foda. Esmagaria com as próprias pernas da próxima vez. As correntes não estavam tão apertadas assim, e ele se mantinha sentado no chão, com os braços pra cima, as pernas abertas, e podia mover-se ao menos alguns centímetros. Era o suficiente.
Tudo o que queria era sua espada, mas sabia que não a teria.
Haviam tomado-a de si quando desacordado, e talvez tivesse sido para o melhor; sinceramente, não sabia o que seria capaz de fazer caso tentassem tomá-la enquanto pudesse fazer algo contra isso. Era estranho, ele sabia, mas não conseguia deixar de sentir um apego quase que sobrenatural pela sua arma. Era a Meretriz, desejada por muitos, uma arma provocante feita para tirar dinheiro de tolos e arruinar famílias, e seu ultimo verdadeiro amor desde que partira de Nyeberum.
Mas eles não a devolveriam, e portanto teria que se contentar com um bebida. Quando alguém finalmente fosse entrar para levá-lo a uma execução – a qual provavelmente seria pública, ele imaginava – iria pedir por um gole. Vinho, rum, cerveja, o que quer que fosse. Imploraria, se fosse preciso. Só não queria morrer sóbrio. Se fosse para partir desse mundo em desgraça, gostaria de fazê-lo enquanto fora de si.
Ao menos isso eles lhe concederiam, se fossem realmente Bons Homens.
Talvez pudesse apelar para o perdão do Bom Deus, mas já estava farto daquilo tudo. Queria que acabasse. A dor o deixava louco. Era sua única companheira, fora a aranha que não via, mas sentia.
Ficou ali por um bom tempo, lembrando-se de coisas que queria esquecer, e de como tudo havia culminado naquela ocasião.
Durante muitas vezes, voltou a pensar em Meretriz, e de como daria qualquer coisa para segurá-la de novo, ao menos uma ultima vez.
A porta se abriu em algum momento após ele fechar seus olhos, e a forte luz de uma tocha precedeu a chegada do homem que a empunhava; seu rosto era familiar, mas não conseguia atribuir um nome a ele. Era um homem forte, vestindo uma armadura simples, mistura de pedaços de metal com couro, com o símbolo dos Bons Homens pintado em seu peitoral com tinta branca.
“Como é que você vai, seu filho da puta?” – Perguntou Jethro, sendo acordado de seu sono de volta a um mundo de dor e aprisionamento, com um meio sorriso forçado no rosto, quando o homem entrou.
Ele de imediato puxou sua espada.
“Fique quieto, assassino, ou ganha mais uma cicatriz pra enfeitar tua carne.” – Disse o homem, e Jethro acatou. Estava cansado demais e ferido o suficiente. Pensou que talvez o homem fosse lhe trazer água ou comida, mas nada do tipo ocorreu.
O homem guardou a espada e pegou um pano escuro e sujo enrolado na extremidade de um cabo de madeira e passou-o pelo chão, ao redor de Jethro, para secá-lo.
Algum tempo após ele ter terminado o serviço, outras pessoas entraram. Três outros, vestidos no mesmo uniforme, e Jethro reconhecia um deles também. Chamava-se Gernan, ou algo do tipo, que se foda. Era de Inristann. Compartilhara da fogueira com Brasillo e Terdal em alguma noite. Não gostava dele, por algum motivo que não conseguia lembrar. Os outros dois tinham feições simples e feias, típicas de camponeses. Um deles, em particular, tinha o nariz torcido para a esquerda, um olho exageradamente maior que o outro e dentes tortos que se projetavam para fora de sua boca.
“Esse lugar fede a mijo.” – Disse um deles.
Uma figura pequena entrou por ultimo, e Jethro a reconheceu. Era o acólito mais intimo do Alto Sacerdote, e chamava-se Hourdes. Já havia visto-o na enfermaria e em outras ocasiões. Um rapaz jovem e que, pelo modo como parecia apreensivo, deveria estar com medo. Pudera, estava frente a frente com o mercenário que havia se infiltrado entre os Bons Homens e matado tanta gente, e por isso sido celebrado, mas que por matar um outro homem, um homem gordo que nem Durdiano era, havia sido perseguido por metade do reino, e agora aguardava seu fim.
O garoto careca carregava um balde de ferro com água fumegante em uma mão, e na outra trazia um punhado de panos enrolados. Deu uma olhada para Jethro, e então virou-se para os outros homens.
“Vou.. Vou precisar que os senhores.. tirem ele.. das correntes.” – Disse, a voz fraquejando.
O primeiro dos guardas bufou irritado.
“Por que?”
“Pre... Preciso limpar seus ferimentos.”
“Eu sei, mas por que?”
“Por.. Por que foram as ordens, senhor.”
Um dos outros homens, o que talvez se chamasse Gernan, deu um passo à frente, e disse, irritado:
“Escute, Hourdes, você é novo aqui. Servimos ao Lorde Flerdan há muito tempo. Sabemos como as coisas devem ser feitas. Claro, disseram para você vir aqui e ver o estado desse traidor.. E nos mandaram para escoltá-lo, garantir que nenhum mal lhe ocorra..
Mas não é por isso que temos que fazer isso, entende? Nem ajudar esse homem, e nem proteger você caso tente fazê-lo.”
“Co..como assim?”
“Deixa ele apodrecer. Esse balde de merda merece.” – Disse o mais feio dos guardas. Sua voz combinava com o rosto.
“Isso. Não precisamos ficar gastando nossos poucos recursos ele. Vai morrer amanhã mesmo. Pra que isso? Não faz sentido. Guarde seus serviços para quem merece e precisa. Nós falamos em nome de Lorde Flerdan.” – Continuou Gernan.
“Eu.. sigo uma au..autorida..dade.. su..superior.” – Disse o garoto, tremendo cada vez mais. Parecia algum tipo de animal assustado.
“O Bom Deus?” – perguntou Jethro, subitamente, e todos os olhares se viraram para ele.
“I..isso.” – respondeu Hourdes.
“Faz sentido. Mas não precisa se arriscar por mim, garoto. Esses homens não parecem me querer ver sendo trat..”
Jethro recebeu um forte chute nas costelas, e sequer conseguiu ver de onde.
“Quieto! Ninguém mandou falar!” – Disse o guarda do nariz torto.
“Eu.. eu não faço isso por você, senhor. Faço em nome do Bom Deus. É nosso dever ajudar os outros. Curar.. curar seus males. E foi o próprio Alto Sacerdote quem me ordenou que o fizesse.”
O primeiro dos guardas, que havia secado o chão, suspirou.
“Deixem ele fazer isso de uma vez.”
“Ele matou Ardillo!” – Gritou o guarda feio.
“Vamos arranjar problemas se não seguirmos as ordens. – disse outro.
“Sigam vocês, então! Não vou ficar aqui vendo esse homem recebendo cuidados mais atenciosos do que a maioria dos nossos que morreram na enfermaria!” – Retrucou o mais feio, e então saiu da cela irritado.
O primeiro guarda foi atrás dele, e passou a tocha para o tal Gernan, que ficou ali, acompanhado de outro. Olhou para Jethro por um bom momento, como se pensando em algo, e de repente um breve sorriso apareceu em seu rosto.
“Esperem um momento.” – Ele disse, e saiu também, deixando apenas Jethro, o pequeno Hourdes e o ultimo dos guardas.
“Você também vai me bater se eu falar alguma coisa?” – Perguntou Jethro. O homem lhe deu um chute na perna, e ficou por assim mesmo.
“Pa..Pare com isso, por favor. Ele já está machucado o suficiente.” – Disse o garoto.
Pouco depois, Gernan retornou a cela, e disse para o homem que havia permanecido ali:
“Vá ficar de guarda lá fora. Os outros foram embora.” - E tomou a tocha de sua mão. O homem acatou a ordem.
“Muito bem, acólito. Vou desacorrentar esse desgraçado. É por sua conta e risco. Se ele tentar qualquer coisa, eu o mato na hora.”
“Ele não vai tentar.. veja como está ferido, senhor.” – Disse o acólito.
“Heh. É verdade.” – Retrucou o guarda.
O guarda segurava a tocha com a mão esquerda, e se aproximou de Jethro. Pegou uma chave que estava enrolada em uma pequena faixa em seu pulso, e destrancou primeiro a mão boa do mercenário.
“Não tente nada.” – Disse ele, enquanto fazia isso.
Quando o guarda foi colocar a chave para soltá-lo das algemas da segunda corrente, Jethro viu-se com os olhos na altura do cabo da espada do homem, guardada na bainha, em uma proximidade quase que exagerada. Ela estava quase que saindo fora por conta própria.
Tinha algo de errado.
“AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!” – Gritou Jethro subitamente, e o acólito pulou para trás com o susto. O próprio guarda não entendeu, e olhou para o mercenário.
De imediato, outros três guardas entraram na cela, com as armas já em punho. Estavam do lado de fora, grudados na porta, o tempo inteiro.
Eles olharam a situação, e pareceram não entender.
“Só queria ter certeza que vocês estavam por perto.” – Disse Jethro, com um sorriso. – “Vão precisar fazer melhor que isso se querem me enganar.”
Gernan pareceu irritado, e deu um soco na cabeça do mercenário. Que fosse, era só mais uma dor para sua coleção. Agora, seu corpo já doía tanto que manter-se acordado era um fardo, e imaginava que desmaiaria a qualquer momento.
“Podemos te matar agora mesmo, se quisermos. Não precisamos que você tente fugir. Podemos falar que tentou.” – Disse o soldado.
“É, mas o garoto pode falar alguma coisa para seus superiores..” – Disse Jethro, enquanto sentia a visão ficar mais embaçada.
“Grr...” – O homem chutou Jethro novamente.
“E.. afinal..” – Jethro cuspiu um punhado de sangue enquanto falava, sua respiração estava pesada e a cabeça ficando cada vez mais leve. – “Por que.. me odeiam.. tanto?”
“Você matou um de nós.” – Disse um dos guardas.
Do que estavam falando? Do Arcanni? Eram aqueles quatro homens agentes de Kalvas, disfarçados entre a Sagrada Incursão? Jethro sempre soubera de histórias a respeito de Kalvasenes enviados pela Torre Branca aos cantos do mundo, para que se infiltrassem em cortes, exércitos e lideranças, e assim conseguissem informações para seus líderes. Era uma guerra das sombras, aquela que Kalvas travava com Nyeberum, cada um dos reinos usando seus agentes, suas mentiras e suas infiltrações de modo a conseguir alguma vantagem em relação ao outro.. Jethro se lembrou de Azned e Lurkas, homens que eram tanto peças quanto jogadores nessa disputa, enquanto o mundo ao seu redor ficava cada vez menos real. A ultima coisa que ouviu antes de desmaiar foi um dos guardas falando, em uma voz que se tornava cada vez mais distante:
“Vá, cuide dele, Acólito. Devo ter batido forte demais em sua cabeça.”
O homem terminou de soltá-lo das correntes, e Hourdes tirou as ataduras sujas de Jethro, limpou sua pele com água quente e panos, passou um pouco de algum liquido escuro em seus ferimentos, e voltou a cobri-los com novas ataduras.
Em algum ponto em meio aquilo tudo, Jethro havia recobrado a consciência, mas não tardou a cair no sono novamente. Quando acordou, estava novamente sozinho, no escuro, tonto e atordoado. Ouviu um barulho estranho vindo do lado de fora, e logo percebeu que o liquido que escorria por baixo da porta e começava a entrar em sua cela era o mijo de algum dos guardas.
Sentia tonto e enjoado, e ficou ali, as pernas molhadas de urina, olhando a escuridão. Tinha fome e sede, e a sua lista de vontades só parecia aumentar com o tempo. Em um momento, sentiu alguma coisa na nuca, e deu uma pancada para trás, contra a parede, para tentar matar a suposta aranha. Mais tarde, sentiu-a passar por cima de toda sua perna, enquanto tentava sacudir para espantá-la. Se em algum momento ela havia picado-o, a dor nublara-se entre tantas outras, e ele não sentia nenhuma ardência.
Algum tempo depois, as portas se abriram de novo. O guarda feio e um outro entraram apressadamente e começaram a passar panos no chão para secá-lo.
“Vamos, porra, eles vão chegar logo. Caralho.”
“Devia ter mijado na boca dele. Falei pra mijar na boca dele.
“Aí ia matar a sede desse monte de bosta.”
Logo, eles saíram e pouco depois retornaram, ambos carregando tochas, e com eles vieram Lorde Flerdan, em sua armadura costumeira, o Alto Sacerdote Sironno em seu manto dourado dos bons homens, e o grande mestre-de-armas Brasillo, coberto por um manto cinza e apoiando-se em um cajado de madeira, andando com certa dificuldade. O grande homem fora obrigado a abaixar a cabeça para entrar na cela.
“Fernst..” – Disse Lorde Flerdan, após um suspiro. Ele parecia um tanto incomodado. – “Suas ações realmente me deixaram em uma situação deveras ruim.”
“Mais do que a minha, senhor?” – Respondeu Jethro, completamente ferido e acorrentado, com fome, sede e molhado de mijo.
Brasillo deixou escapar uma risada.
“Ele tem um ponto, Flerdan.”
“E você tem culpa nisso também, Brasillo. A idéia de realizar aquele banquete com bebidas foi sua. Não fosse ele, nada disso teria acontecido.”
“Os rapazes mereciam.. E se quer saber, meu sobrinho também teve o que merecia. Foi uma boa hora pra separarmos o joio do trigo.”
“Seu sobrinho?” – perguntou Jethro. Não estava entendendo o que acontecia.
“Isso. Aquele que você matou.”
E então Jethro lembrou-se.
Havia ido com um homem alto e ruivo para dentro do Forte, até onde eram guardadas as mulheres ravatenes, e lá dentro iriam colocar seus membros dentro delas. Na hora, parecia fazer sentido. O problema é que, de alguma forma, aquilo começou a soar errado.
Jethro não compartilhava da mesma convicção que seu novo amigo, o qual ele sequer sabia o nome, e tentou impedi-lo de fazer aquilo. Estavam os dois tomados pela bebida, acabaram por entrar em uma discussão.
Nomes foram ditos, ameaças foram feitas, e de repente, estavam ambos com aço em mãos, e Jethro lembrava-se de ter dado um único corte, virado as costas e ido embora, deixando apenas um corpo no chão, com uma poça de sangue que aumentava cada vez mais.
“Matei. Mas não sabia que era seu sobrinho.” – Admitiu Jethro.
“A maioria das pessoas não sabia.. Eu prefiro assim. Aquele homem e eu sempre tivemos problemas. Não merecia fazer parte deste exército.”
“Nós precisávamos de homens, Brasillo. Não podia negar um recruta apenas porque meu mestre-de-armas não se dava bem com o resto de sua família.” – Dizia Lorde Flerdan.
“É verdade, meu senhor, mas você soube o que ele estava fazendo. Estuprando as ravatenes..”
“Soube apenas recentemente, quando você me disse que havia recebido denuncias disso e que as mulheres ravatenes contaram quando mandou investigarem.. Acha mesmo que eu iria aceitar esse tipo de comportamento entre meus homens?”
“Pobres mulheres. Não são culpadas por terem nascido no lugar errado, e terem passado a vida inteira sendo vitimas de cultos profanos e heresia. Já não fosse o suficiente terem nascido do sexo errado.. Com certeza a elas será dada a oportunidade de trabalharem como serventes ou mesmo de se converterem em algum templo das Boas Damas. Ainda assim, é preciso protegê-las dos homens mais fracos, que não são capazes de suprimir seus desejos e necessidades.. É uma pena que tenhamos que conviver com este tipo de pessoa. Com certeza, os envolvidos devem ser punidos.”
“Eu não me interesso no que enfiam dentro de alguém que foge de Ravate e vem rumo a Durdia espalhar sua religião profana.. Que seja aço ou carne, não é problema meu. Mas a partir do momento que meus homens começam algo do tipo..” – Lorde Flerdan rangeu os dentes, irritado. – “Eu ordenei para que as ravatenes fossem deixadas sob segurança, e que nenhum soldado tivesse acesso a elas. Tamanha insubordinação é inaceitável.”
“Meu senhor, eu não tive nada a ver com isso..” – Disse Jethro. Sequer acreditava que aquilo estava acontecendo. Talvez tivesse uma chance de sair daquela situação.
“Eu sei, soldado. As mulheres contaram que você matou o homem que queria estuprá-las. Por que acha que ainda está vivo? O problema é que isso não resolve nada.”
“Deixe ele ir, Flerdan. Ele matou meu sobrinho, e eu teria matado também, em seu lugar. O maldito mereceu. Não é a primeira vez que ele faz uma coisa dessas.”
“Ele matou um dos nossos!” – Lorde Flerdan parecia ficar mais irritado a cada segundo. – “Isso é algo que apenas eu posso ordenar! Punições devem ser dadas por um Lorde, não por um soldado qualquer! Como se não bastasse os homens responsáveis por esse bordel ravatene dentro do Forte, agora tenho que lidar com eles se matando? Esses homens precisam de uma lição!”
“E que lição melhor, meu bom Lorde, do que perdoar aquele que, quando viu tamanha injustiça sendo feita, pôs-se no caminho para impedi-la? Se seus homens perceberem que aquele que matara um estuprador fora perdoado.. Bem, poderá colocar medo em seus corações, e saberão que, caso sejam pegos descumprindo suas ordens, o mesmo poderá ocorrer com eles.” – Disse o Alto Sacerdote Sironno, em um tom apaziguador.
“Faz sentido.” – Disse Brasillo.
“Que seja.” – Lorde Flerdan respirou fundo e então olhou para Jethro. – “O libertem.”
Os guardas, a contragosto, soltaram-no das correntes. Jethro ficou de joelhos no chão, perplexo, fazendo o seu melhor para esconder o sorriso que teimava em querer se formar em seus lábios.
“Meu senhor.. E quanto a minha espada?” – Ele deixou escapar.
“Sua espada?” – disse Lorde Flerdan, que já havia dado as costas para ir embora.
“Sim. É uma relíquia da minha família. Foi-me tomada quando fui preso.”
“Hmpf. Brasillo, resolva isso.” – Respondeu, e foi-se.
“Será devolvida em breve.” – Disse Brasillo. – “Apenas evite enfiá-la em mais algum dos nossos, Fernst. Pode não ter tanta sorte da próxima vez.” – E também se foi.
Por fim, o Alto Sacerdote Sironno agachou, deixando o rosto na mesma altura que Jethro, e colocou suas duas mãos nos ombros do mercenário.
“Argh.” – Gemeu Jethro, quando sentiu o peso em cima do braço esquerdo.
“Quando você melhorar, homem, apresente-se em minha tenda. Temos muito o que conversar, a respeito de seus pecados, e de como poderá servir ao Bom Deus para se absolver deles.” – Disse, e então beijou-o na testa e também se retirou.
E Jethro sentiu um alivio imenso, apesar da dor. Então não havia sido descoberto.. Apenas havia matado um homem, coisa que por vezes costumava fazer, e o melhor de tudo: era um homem que, aparentemente, merecia morrer.
Se algum dia considerou como verdadeira a existência do Bom Deus, nunca fora tanto quanto naquele.
Foi levado até a enfermaria, que parecia mais vazia do que antes, e tanto Hourdes quanto o acólito com cabelos cor-de-avelã que havia lhe atendido outras vezes passaram um bom tempo tratando de seus ferimentos.
Jethro sorriu o tempo todo. Fora por pouco. Suas esperanças haviam ido embora, e quando tudo parecia perdido.. tratara-se apenas de um mal entendido. Após tanto tempo de azar, era bom ver que ainda tinha um pouco de sorte ao seu lado.
Após algum tempo, Elijah apareceu por lá para conversar com ele.
O arqueiro parecia animado.
“Como você está?”
“Melhor do que na cela.”
“Foi realmente incrível.. O Forte inteiro virou-se contra você. Achavam que você tinha matado Brasillo. Digo, começaram a dizer por aí uma série de boatos, a respeito de um ruivo grandalhão que havia sido encontrado morto no calabouço onde estão guardando as ravatenas.. E que o guarda no lugar havia dito que era você o culpado.”
“Esse filho da puta é quem estava aceitando moedas pra deixar soldados se aproveitarem das prisioneiras.”
“É, eu sei. Acabaram descobrindo a verdade, e ele vai ser enforcado. Lorde Flerdan não ficou nada satisfeito com isso tudo. Está a procura de todos os que se envolveram nessa situação.
Talvez seja uma prática comum para exércitos, mas a Sagrada Incursão não aceita esse tipo de coisa.”
“Não me parece mesmo algo que o Bom Deus aprovaria.”
“De fato. Aliás, obrigado por ter matado Ardillo. Aquele homem era a pior coisa que trouxemos de Inristann, e olha que Terdal veio junto, peidando o tempo todo. Ardillo era um estuprador conhecido, mas sua família, os Durgand, tinham prestigio suficiente para acobertar tudo.”
“Se a família dele tinha tanto prestigio, como é que ele e Brasillo vieram parar na Sagrada Incursão?”
“Brasillo é mestre-de-armas de Lorde Flerdan há muito tempo. Os dois cresceram juntos, e Brasillo sempre gostou de batalhas, e simplesmente juntou sua obrigação com sua vontade.. Já esse Ardillo.. Bem, digamos que nem sua família agüentou por muito tempo as coisas que ele aprontava. Deram-no a oportunidade de seguir seu tio na guerra contra hereges ou responder por seus crimes. É claro que ele escolheu a primeira opção.”
“Pelo que eu vi, ele não veio sozinho.. Alguns guardas pareciam querer vingá-lo.”
“Ele trouxe alguns amigos consigo. Deve ter pagado uma boa quantia para fazer com que entrassem consigo na Sagrada Incursão. Tome cuidado, eles podem querer vingança.”
“Senhor.. Fernst precisa descansar.”- Disse um acólito que passava ali por perto, com um olhar reprovador.
“Só vou conseguir fazê-lo quando estiver novamente com a minha espada.” – Retrucou Jethro.
“Não seja por isso” – Disse Elijah – “Ali está Brasillo.”
O mestre-de-armas vinha apoiado em seu cajado, um tanto curvado, carregando algo embrulhado em panos. Ao aproximar-se, abriu-os ao lado de Jethro e mostrou o que tinha dentro.
Jethro viu sua espada; o cabo grosso e comprido coberto por gastas faixas de couro, o pomo circular de ferro, aberto em formato de um “C”, e a figura dourada de uma mulher nua abraçando a lâmina.
Pegou-a com a mão direita, e subitamente sentiu-se inteiro de novo.
“Essa espada..” – Disse Brasillo. – “Quando a tomaram de você, mantive-a comigo. Não tive coragem de deixá-la com mais ninguém.”
“É realmente uma bela arma.” – Disse Elijah, com os olhos brilhando.
“Não é só isso. Ela.. Bom, ela é atraente. Não sei como explicar. Sinto vontade de tê-la para mim.” – Disse Brasillo.
Jethro sentiu um frio na espinha. Aquilo geralmente acontecia com as pessoas. Sempre queriam sua Meretriz.
“Ela é minha.” – Disse Jethro, soando mais ameaçador do que gostaria. Sempre se deixava levar, quando o assunto era sua Meretriz.
“Eu sei. E continuará sendo sua, até porque me fez um favor, ao livrar minha família daquele maldito. Mas tome cuidado. Outros podem não ser tão honestos quanto eu.” – Disse Brasillo.
Quando os dois foram embora, Jethro ficou ali, deitado, abraçado em sua espada.
Não importava se tinha inimigos dentro da Sagrada Incursão, ou se sua espada seria novamente desejada por outros; ela era sua, apenas sua, e estava em paz. Seu segredo não havia sido revelado, e assim que melhorasse, daria um jeito de ir para Trezamores, viver uma vida nova, longe de Arcannis, marujos, demônios das profundezas e Bons Homens. Quem sabe até pudesse abrir sua própria Companhia de mercenários.
O que importava é que estava livre.
Jethro permaneceu na enfermaria por mais tempo do que gostaria. Embora estivesse mais vazia do que antes, os gritos e gemidos ainda eram constantes. Ele era bem cuidado; desde que fora vitima de um suposto grande mal entendido que já fora resolvido, os acólitos o tratavam ainda melhor que antes, e diziam que o próprio Alto Sacerdote havia lhes ordenado que o fizesse. Passava a maior parte do tempo dormindo ou tentando dormir, e por vezes recebia visitas.
Terdal fora o primeiro. O grande homem ainda estava em repouso, mas visitava Jethro e lhe contava sobre como sempre soubera que o mercenário não havia traído-os, e de como ele próprio teria feito o mesmo, se estivesse no seu lugar. Insistia que poderia lutar tão bem quanto antes, mesmo sem os três dedos que haviam sido levados pela lâmina de um ravatene, e mal via a hora de conhecer Jerro, o próximo destino da Sagrada Incursão.
Ivos também apareceu, a barba rela costumeira já tomando proporções maiores, comentando que sabia sobre o que acontecia no calabouço, e que havia delatado os envolvidos para Brasillo. Convidou-o para vê-los sendo enforcados, mas Jethro sentiu-se indisposto, e preferiu ficar ali. O jovem ex-camponês foi embora a tempo de não se atrasar para o evento.
Lorde Ervan também surgiu, numa tarde qualquer. Disse que sentia muito por toda aquela situação, e que sempre duvidara que um guerreiro tão capaz fosse responsável por um assassinato sem sentido.
“Você estava protegendo as mulheres, e bem o fez. São ravatenes, sim, mas nem por isso devem ser vítimas de homens brutos que se aproveitam da situação. Que coisa triste, isso.. Alguém pagar por amor já é deprimente, mas.. forçar alguém a fazê-lo? Isso é terrível. Homens baixos que realizam isso não merecem estar entre nós, nem na Sagrada Incursão nem entre os vivos. Aliás, mal posso ver a hora de retornar a Inristann.. Existe uma dama me aguardando, sabia? Uma dama de longos cabelos claros, olhos mais verde do que esmeraldas, que tem a voz de um pássaro em uma tarde de outono, e que..”
Lorde Ervan gostava de falar mais sobre si do que qualquer outra coisa, e muitas foram as horas em que ele contava sobre sua vida nas terras de seu pai, e Jethro fingia estar ouvindo. Não podia fazer mais nada.
Outros também apareceram, pessoas com quem ele mal havia conversado, e sequer se lembrava. Meia dúzia de rostos e nomes passageiros, aos quais deu pouca importância, que lhe diziam que iriam rezar para que melhorasse logo, e lhe parabenizavam pela investida na muralha e por ter saído de uma situação tão complicada. Uma das visitas até chegou a pedir desculpas por ter lhe apontado a lança no dia em que fora capturado no pátio interno do Forte, e justificara que estava só seguindo ordens, e que ninguém sabia direito o que havia acontecido.
“Você está se recuperando mais rápido do que eu esperaria.” – Disse um acólito, certa vez. – “Esse corte na barriga, esses arranhões nas costas.. já eram antigos, e estavam sarando bem, mas os recentes.. a perfuração no pulso, a ferida no ombro e no peito.. Parece que o Bom Deus lhe abençoou com uma excelente saúde.”
“Claro. E também com a cabeça a prêmio em Nyeberum, Durdia e Kalvas.” – Jethro se segurou para não responder. Pedia por vinho, rum ou cerveja para ajudar na sua recuperação, mas descobriu que os acólitos eram contra esse tipo de substancias em um tratamento, embora ele considerasse-as essenciais.
Acostumou-se a dar passeios pelo interior do Forte, quando não agüentava mais ficar em repouso. Passava um bom tempo nas muralhas, na torre e no pátio. Comia refeições simples e conversava com algumas pessoas.
Descobrira que a maior parte dos Vigilantes já havia ido embora, sem grandes alardes, antes mesmo de da batalha em Parvaza. Algum tipo de missão secreta, aparentemente. Isso era bom.
Quanto menos Vigilantes por perto, menos as chances de descobrirem quem era, e maiores as de conseguir escapar.
“Nada escapa ao nosso olhar.” – Dissera certa vez o Vigilante Jirgo, pouco após de tê-lo recrutado a força para a Sagrada Incursão, mas Jethro estava, continuamente, provando-o errado.
Disseram-lhe também que ainda iriam ficar ali por pelo menos uma dezena de dias, enquanto os líderes esperavam os feridos se recuperarem e decidiam quem seria designado para guardar o Forte, enquanto as forças seguiriam rumo ao destino planejado.
Grande parte dos homens da Sagrada Incursão ainda permanecia acampada do lado de fora, e geralmente eram eles que traziam a caça e mantinham vigília nas redondezas. Jethro observou, de cima das muralhas, no dia em que as mulheres ravatenes foram escoltadas por um pequeno grupo de soldados. O arqueiro Elijah lhe contou que seriam levadas para Ramvas, e lá aprenderiam os costumes do mundo civilizado e seriam de alguma serventia para Durdia.
Jethro se perguntou quantas vezes seriam estupradas no caminho até lá, enquanto via uma grande fila dupla de mulheres sendo guiadas a pé por meia dúzia de homens a cavalo.
Numa noite, acordou de madrugada para mijar do topo da muralha, como costumava fazer. Ironicamente, viu Gernan ali embaixo, acompanhado por outros dos guardas que haviam cuidado de sua cela , e fez questão de mirar neles. Foi embora antes que o vissem.
Dois dias depois, estava no pátio, vestindo apenas uma bermuda de pano, uma sandália e muitas ataduras, observando alguns ex-camponeses praticarem com espadas de madeira, sendo instruídos por Brasillo. Eram cerca de vinte deles, todos despreparados e desajeitados, e era um milagre que tivessem sobrevivido à invasão ao Forte. Jethro já se sentia um tanto melhor; podia se movimentar por conta própria, e embora o ombro e o punho ainda doessem, conseguia movê-los, ainda que com grande esforço. Segundo o que os acólitos diziam, não teriam que amputá-lo, o que era algo bom.
Permanecia observando os homens treinarem de longe, sentado na grama, quando uma pequena figura, careca e vestindo um manto cinza, surgiu. Era Hourdes.
“Senhor, o Alto Sacerdote convoca a sua presença hoje, quando o sol se por, em sua tenda particular do lado de fora das muralhas.” – Disse o garoto.
“Sobre o que se trata?”
“Acredito que queira tratar da purificação por seus pecados recentes, senhor.”
“Ah. Claro. Estarei lá.” – Disse Jethro. Havia se esquecido das palavras do Alto Sacerdote. O homem não era de todo o mal – já havia conhecido líderes religiosos piores, mesmo entre os Bons Homens, mas não conseguia gostar de Sironno. Tinha coração mole com certas coisas, e ao menos isso lhe havia servido de algo no incidente com o sobrinho de Brasillo que matara, mas não mudava o fato de que o Alto Sacerdote era só mais um homem gordo, rico e poderoso, que se achava melhor que outros por seu nome ou seu título.
Agora, Jethro teria que ajoelhar-se e se submeter a qualquer tipo de punição que esse homem lhe viesse designar. Seriam talvez dezenas de horas em penitencia, rezando, recebendo chibatadas, fazendo peregrinações ou qualquer merda do tipo. Não sabia como aquilo funcionava de fato na Sagrada Incursão, mas com certeza seria algo do que não gostaria.
Ficou mais algum tempo ali no pátio, aproveitando a leve brisa que vinha. Um dos camponeses, segurando um bastão como se fosse uma lança, tentava impedir os avanços de outro, com uma espada de madeira. Brasillo gritava ordens e parecia alternar entre irritação e humor, enquanto via aqueles homens desajeitados praticarem. Ivos estava entre eles, e era tão ruim quanto. Em um momento, chegou a tropeçar na própria lança e cair de cara no chão. Talvez houvesse realmente um motivo para o rapaz magrelo de cabelos cor de palha geralmente ser designado para os piores trabalhos.
Jethro eventualmente levantou-se, quando percebeu que o fim do dia não tardaria a chegar. Caminhou até a parte de dentro do Forte, e seguiu até o alojamento onde agora estava. Lá, colocou suas roupas. As botas de couro estavam reforçadas por remendos que haviam recebido, mas o colete de couro que usara por baixo do gibão de ferro na batalha havia sido arruinado, e ninguém na Sagrada Incursão possuía conhecimento suficiente para consertá-lo.
Deixou-o guardado. Havia conseguido um par de luvas novas, marrons e feitas de pano, um tanto curtas para o seu gosto, mas serviriam para cobrir as mãos. Por fim, colocou no peito uma túnica simples e marrom com mangas que deixavam todo o seu antebraço a mostra. Pensou em talvez vestir algo com o símbolo dos Bons Homens – era o tipo de vestimenta que mais havia ali – mas preferiu não fazê-lo. Se não havia sido expulso e nem executado por matar um membro da Sagrada Incursão dentro do Forte Parvaza, não seria sua vestimenta simples que iria lhe trazer problemas.
Cobriu-se com a capa e foi-se embora.
Caminhou para fora até alcançar o pátio, e de lá seguiu até a saída do Forte. Quatro homens abriram caminho para que passasse, sem muitas perguntas. Pareciam já esperá-lo.
Seguiu andando por pequenos acampamentos e tendas exteriores, se afastando um tanto das muralhas de Parvaza. Embora houvesse bastante gente espalhada por ali, ninguém parecia estar prestando atenção especialmente nele, e no grande espaço entre o Forte, as ruínas, a planície e a floresta na qual haviam adquirido material para a construção da maquina de cerco, havia também uma chance de fuga.
Parou por um momento, e observou seus arredores. Ainda haviam cavalos sendo guardados do lado de fora? Acreditava que sim. O estábulo na parte de dentro do Forte era pequeno e estava em péssimo estado, e lá mal havia espaço para os cavalos dos ravatenes, muito menos para os da Sagrada Incursão.
Não sabia onde haviam sido colocados. Não botava o pé para fora do Forte desde o dia em que avançara sobre suas muralhas e matara tudo o que estivera em seu caminho. Só de se lembrar da batalha, um sorriso já tomava seu rosto. Fora bom até demais.
Procurou bem por onde estariam os cavalos. Avistou uma grande seqüência de tendas espaçadas, típicas dos soldados, e outra que servia a Vigilantes, um tanto mais distante das outras. Estranhamente, lembrou-se de ter passado ali com alguns outros, no dia da comemoração. Então, já havia saído do Forte, mas havia se esquecido disso. Como havia sido capaz de fazê-lo, embriagado ao ponto de não se recordar, lhe era um mistério.
Ao redor de grandes fogueiras, homens curtiam couro, enquanto em cima de bancadas de madeira outros preparavam a carne de animais que haviam sido capturados. Alguns carregavam peles de um lado para outro, enquanto outros levavam madeira ou até mesmo pedras. Todos pareciam bastante ocupados com seus afazeres.
Havia mais algumas tendas adiante, distantes do forte, e deveriam servir como algum tipo de posto avançado. Jethro ficou ali por um tempo, e conseguiu observar um batedor retornando pela estrada, do que teria sido provavelmente uma ronda rotineira pelos arredores. Seguiu-o com o olhar e depois com as pernas, apenas o suficiente para que não saísse de vista, e descobriu onde estavam estacionados os cavalos; um estábulo estava sendo improvisado com cercados de madeira escura que pareciam vir dos restos das escadas usadas na invasão ao Forte. Havia ali vários cavalos amarrados, com três ou quatro homens cuidando deles.
Talvez pudesse esperar do lado de fora até o anoitecer, e roubar um cavalo quando a maioria dos homens estivesse dormindo.
Durante seus dias ali, havia se informado sobre sua localização e tentara descobrir o que havia em seus arredores. Jethro jamais deixava claro o desejo de fugir ou dava dicas de seu destino verdadeiro; muito pelo contrário, ele comentava sobre lugares que iria um dia, principalmente para Ivos e Terdal, para confundir aqueles que, se fugisse, talvez fossem atrás dele.
Descobrira exatamente há quanto tempo estava dos lugares próximos, e já tinha uma boa noção de como alcançá-los.
“Fernst.” – Disse uma voz atrás de si, surpreendendo-o. Era Elijah. –
“O que faz aqui fora?”
“Tenho que encontrar Sironno em sua tenda.”
“Eu lhe mostro onde é.”
O arqueiro o acompanhou até a gigantesca tenda dourada, que mais parecia parte de algum festival do que de um exército, e dois guardas que mantinham vigília em sua entrada abriram caminho para Jethro entrar, puxando duas cordas e uma série de espessas cortinas.
Um forte cheiro de ervas e uma fina camada de fumaça saíram da abertura que se formou.
Jethro entrou. Dentro da gigantesca tenda, as paredes eram cobertas por grossas cortinas, que separavam totalmente a tenda do mundo exterior, e grandes e largos pedaços de madeira mantinham tudo aquilo em pé, enquanto o chão era coberto totalmente por tapetes com gravuras religiosas. Um altar de pedra de um metro e meio estava colocado em um extremo, a figura de um homem ajoelhado, enquanto uma figura perfeita e lisa, sem feições, vestes, sexo ou relevo, oferecia a mão para que se erguesse.
Havia uma vasta mesa de madeira, coberta por um pano branco, com quatro candelabros dourados, algumas maçãs, pratos, taças, talheres e três jarras.
Em um dos cantos da tenda, uma das cortinas pendia para frente, cobrindo e fechando um espaço moderado na diagonal, presa em uma haste de madeira um tanto abaixo do limite do teto, e de dentro dele vinha uma fumaça de vapor. Provavelmente a água quente de um banho recém tomado.
O Alto Sacerdote estava sentado em uma poltrona ornada, no meio da tenda. Vestia um grande manto de seda dourada, maior do que seu corpo, amarrado por uma fita de couro na cintura. Com aquela roupa, parecia ainda maior do que já era, e a barriga proeminente parecia saltar para fora. Sironno Debrize aquecia uma das mãos em um braseiro de ferro escuro na forma de uma bacia, colocado ao seu lado.
Algumas poucas gotas de água escorriam com facilidade em seu rosto arredondado e sem pelos, e o homem de olhos escuros e calmos sorriu quando o mercenário entrou.
“Seja bem vindo, Jethro.” – Disse o Alto Sacerdote.