Os Filhos da Puta: Parte 1
--------- Essa história se passa no mesmo mundo que "O Mercenário e a Meretriz", e embora ocorra de forma paralela aos acontecimentos da mesma, em alguns momentos as tramas podem convergir. ----------
Os Filhos da Puta moravam no famoso casarão de madeira da Rua Elmer, que marcava o inicio da Cidade Baixa, como era chamada a região mais pobre da Cidadela de Ticulis, indo dos limites do famoso e elegante Distrito Comercial até acabar no Açude do Cagalhão, como era popularmente chamado o grande buraco de água suja e enlameada próximo as muralhas, para onde iam os detritos do sistema de esgoto da cidade.
Os seis garotos eram conhecidos por esse nome graças ao fato de serem órfãos acolhidos pela famosa – mas já não tão atraente – senhora Meredith Baldour, que fora, segundo costumava gostar de se gabar, responsável por desvirginar metade dos figurões da Cidadela, entre nobres e comerciantes. Ela já se afastara há anos do trabalho pesado, mas abrira o Casarão para manter o dinheiro circulando, apresentar novas garotas ao oficio, garantir a segurança delas e uma clientela digna, mesmo que a profissão não o fosse.
Assim, ao menos uma dúzia de mulheres constantemente habitava ou freqüentavam o Casarão de Meredith, embora não fossem elas, pelo próprio gênero do termo, conhecidas como Filhos da Puta. Não, elas eram meretrizes, animadoras de festas, damas da noite, as mulheres pelos quais os homens procuravam quando tinham vontades simples e dinheiro para gastar.
Só eram chamados de Filhos da Puta os meninos que, assim como Ernand, Meredith usava para ajudar em pequenos serviços do Casarão, mas para os quais também garantia alimento, moradia, e vez ou outra até mesmo algo parecido com o amor de uma mãe, que ao menos soava mais sincero do que as juras de amor, os gemidos e os elogios das mulheres dentro dos quartos para seus parceiros.
Meredith, de cabelos sempre presos em grandes coques de madeira e com um corpo cheio, parecia gostar de fato de seus rapazes, mas sabia que eram o que eram, e que mereciam como ninguém o apelido dado pela população. O pequeno grupo era formado por delinqüentes incorrigíveis, criadores de caso e bagunceiros de marca maior, e quando não havia mais tarefas alguma para fazerem no Casarão, geralmente no final da tarde, ou simplesmente não se sentiam com vontade de realizá-las, circulavam pela Cidade Baixa ou pelas partes mais simples do Distrito Comercial, brincando no chão de terra, arranjando problemas, realizando pequenos crimes ou simplesmente planejando qual seria a próxima maldade na qual se envolveriam.
Rhyde era o mais velho, já com seus quase quinze anos, e conseqüentemente o líder deles. Não era o mais esperto, mas gostava de achar que sim. Tinha um cabelo desgrenhado castanho e alguns pelos espalhados pelo rosto, de maneira desconexa, quase formando um humilde cavanhaque, além de outros, estes negros, em locais mais particulares, os quais ele tratava como motivo de orgulho. Tinha músculos para o trabalho pesado, e não costumava fugir das brigas.
Bezê, de olhos claros, cabelo crespo e pele um tanto queimada pelo sol, era considerado o segundo em comando da pequena trupe dos Filhos da Puta. Tinha só alguns meses a menos que Rhyde, mas conseguia ser o menor dos garotos em estatura, tirando Jude, que mal tinha acabado de fazer seis anos. Ainda assim, nunca teve dificuldade para impor-se sobre todos, e possuía certo jeito com as pessoas que deixava Ernand intrigado. Era quem mais visitava outras partes distantes da Cidade Baixa sozinho, e fazia amizade com os garotos, contrabandistas, trabalhadores e comerciantes de lá, geralmente se beneficiando dos contatos e informações, às vezes trazendo até bebidas ou Erva do Mago para fumar com os irmãos, enquanto contava histórias que havia ouvido e ensinava coisas que aprendia por lá.
Olie Pulão era o mais alto. Magrelo e careca, raspava o cabelo com a mesma ferramenta que as moças do Casarão usavam para se depilar, embora não se importasse com isso. Morar ali tornara a ele e aos outros garotos acostumados com a intimidade feminina, alguns até demais, inclusive. Ele corria mais rápido do que qualquer um dos Filhos da Puta, e pulava como um gato com o rabo pegando fogo em dia de churrasco, costumava dizer Bezê.
Era geralmente o que mais se arriscava nas brincadeiras e furtos, mas gostava disso. Seu jeito era brincalhão e extrovertido, mas um tanto inocente, sem compreender completamente os perigos que passava. Um sorriso em seu rosto era tão comum quanto moedas escondidas entre os peitos de Meredith.
Nardo Bolota era o mais gordo, de longe. Sua barriga projetava-se pra frente, as mamas maiores do que as de algumas das moças do Casarão, o rosto arredondado com bochechas inchadas, o pescoço quase não aparecendo entre camadas de gordura, os braços da grossura de um pequeno barril. Gostava de comer mais do que qualquer coisa em vida, às vezes trocando coisas ou favores para os irmãos pela comida deles, quando os mesmos já estavam espertos demais para deixar com que ele continuasse a roubar de seus pratos.
Bezê fizera uma pequena fortuna em bugigangas a partir disso, e geralmente arranjava algo pra comer depois, na casa de algum dos amigos da Cidade Baixa, que apesar de não terem muito, costumavam a estar dispostos a ajudar alguém que estivesse em necessidade.
Comparados ao povo que vivia mais perto do Açude do Cagalhão, os Filhos da Puta até que não estavam mal de vida, mas Bezê mentia e contava uma história mais triste que a outra, e tocava o coração dos mais simples. Não tinha a esperteza de livros, como Ernand, mas sabia da vida, o que talvez fosse tão bom quanto. Nardo Bolota já devia mais de vinte favores a Bezê, de tanta comida que trocara, mas ao menos estava bem alimentado. Por mais que os outros tirassem sarro de sua cara, ainda era um deles, e tratado como irmão, embora ser um irmão fosse a principal garantia de que as brincadeiras nunca iriam acabar.
Jude era o mais novo. Até ele tirava sarro de Nardo Bolota, quando Rhyde mandava. Tinha cabelos quase loiros e compridos que lhe cobriam a testa e caiam por trás das orelhas. As moças do Casarão o adoravam, e passavam horas e horas brincando com seu couro cabeludo, coisa que ele parecia não gostar muito. Dos meninos, era ele quem mais trabalhava no Casarão, porque simplesmente fazia o que os outros mandavam. Os outros eram maiores e mais ameaçadores, e nunca os delatava quando Meredith lhe perguntava se todos haviam feito sua parte. Em troca disso, ganhava os brinquedos que os outros não usavam mais, e vez ou outra até um elogio, o qual aceitava de muito bom grado. Carregava sempre consigo Pedro, seu lagarto verde-desbotado de estimação, que ganhara de Olie, cheio de retalhos e com um dos olhos de botão faltando.
E eram esses os Filhos da Puta, dos quais Ernand agora fazia parte. Ele tinha quase catorze anos, mas de certa forma era o mais novo de todos. Morava ali fazia apenas dois, e demorara a se adaptar.
Era diferente dos outros. Nenhum deles – com exceção de Bezê, que dizia ter certa vez trabalhado durante uma colheita em uma das fazendas ao sul, quase que no vilarejo de Orstada, mas isso bem que poderia ser mais uma de suas mentiras – jamais havia saído de Ticulis e seus arredores, mas Ernand viajara por muitos lugares, quando ainda tinha sua família.
Seu pai, Balvar, fora um homem culto, que nascera em uma família de comerciantes importante das terras ao sul de Durdia, entre a famosa Cidade da Prata e as vilas que formavam as terras de Irnistann. Desfrutou de uma boa educação, tendo sido criado na corte de um nobre Ramvasiano, e de lá saiu para ganhar a vida com seu próprio negócio. Conhecera Nalia, filha de caravaneiros, em Sete Rodas, e lá fizeram Ernand e iniciaram uma Companhia de mercadores viajantes. “As duas coisas que fizemos juntos das quais mais nos orgulhamos”, eles costumavam dizer.
Comercializavam de tudo um pouco, mas seu pai via nos livros uma grande oportunidade para o lucro. Iam de castelo em castelo, comprando e vendendo histórias escritas, por vezes se aproveitando da falta de conhecimento alheio para conseguir preços baixos por obras raras, as quais seus donos muitas vezes sequer imaginavam o verdadeiro valor. Negociavam obras de autores famosos como Ian Astartares, Tharand Durstoik, Gaerth Kazor e Aronno Debrize. Possuíram exemplares das Baladas do Mar Estóico, dos Contos do Rei da Rocha, das Crônicas das Terras Altas, partituras da Canção da Criação e até mesmo alguns raríssimos exemplares vindos de Kalvas, onde livros eram tão valiosos quanto seu peso em ouro.
Ernand cresceu nesse meio, sempre na estrada, sempre com um livro ou uma história, nunca passando tempo demais em um só lugar. Raramente tinha a companhia de alguém da sua própria idade, e sempre que tinha era por pouco tempo. Ainda assim, não costumava sentir falta de ter com quem conversar. Havia os funcionários de seu pai, homens de armas que garantiam a proteção da caravana, mulheres que cuidavam da comida e das roupas, ajudantes e serviçais, a maioria gente simples, mas que sabiam sobre seus assuntos e pareciam gostar de entretê-lo com histórias e boatos. Quanto se cansava deles, passava a maior parte de um dia deitado em uma das carroças da caravana, lendo livros que seriam vendidos. A mãe havia lhe ensinado como fazê-lo, e o próprio pai ficara surpreso com a velocidade em que aprendera.
Fugia das monótonas horas na estrada lendo a respeito dos Três Guerreiros que haviam garantido seu lugar entre as estrelas no céu, do Vigilante que havia sido forçado a caçar sua antiga amante quando descobrira que ela havia se tornado uma bruxa, das batalhas entre os Lamintt e os Archonte nas terras disputadas entre Durdia e Ravate, e, quando ninguém estava olhando, também lia sobre as Meninas do Rio, que se banhavam em conjunto e trocavam segredos e caricias longe dos homens brutos que tanto detestavam.
Certas vezes perdia a oportunidade de terminar de ler alguma história antes que fosse vendida, e ficava enormemente frustrado em jamais saber certos finais. Na maioria dos casos, seu pai ou sua mãe saberiam lhe dar uma resolução para as que não havia tido tempo de finalizar, mas eventualmente Ernand percebeu que poderiam muito bem estar inventando. Ele passou a tentar ler sempre o mais rápido possível, para que terminasse antes que fossem vendidas. A coisa que mais odiava era uma história inacabada.
Tinha pouco mais que doze anos quando essa parte da sua vida terminou bruscamente.
Vieram de Trezamores rumo a Cidadela de Ticulis, seguindo as margens do Rio Ibele, sem arriscar uma travessia por ele, ainda que fosse uma prática costumeira de quem viajasse por ali, e diminuísse em muito o tempo de viagem. “Livros não combinam com barcos.” Dizia o pai, que levava agora três carroças inteiras, recheadas de livros.
Seguiram por muitos dias, evitando a floresta e pegando o caminho mais longo, atravessando o Pequeno Estreito rumo aos domínios do Forte Lorske. A construção era gigantesca – quase que irreal – com suas inúmeras torres muralhas sobrepostas e paredes que pareciam se erguer mais alto do que montanhas, mas o que realmente surpreendera Ernand fora a grande biblioteca.
Era um enorme salão que se estendia por todas as direções, com estantes repletas de livros, pergaminhos, documentos e papéis, guardados constantemente por quatro homens de mantos cinzentos silenciosos e estáticos, que nada mais faziam além de observar.
No Forte, venderam mais livros do que jamais haviam vendido, e foram bem recebidos e tratados pelo seu Lorde, que possuía uma vasta coleção deles, embora não estivesse disposto a negociar nenhum dos seus. O pai havia tentado durante toda a estadia ali fazer o alto, magro e velho Senhor Lorske mudar de idéia, mas o homem de grandes olheiras e feição séria insistira em não fazê-lo. Ernand por muitas vezes pegou-se pensando em como seria bom morar em um lugar daqueles, com tantos livros em suas inúmeras e gigantescas prateleiras, mas sabia que jamais conseguiria ler todos eles em uma só vida. É claro que isso não o impediria de tentar.
Partiram de lá incrivelmente mais ricos, e não encontraram problemas na estrada. Durante o trajeto, apenas uma senhora já de certa idade, que cuidava de alguns afazeres para a trupe, havia falecido. De bandidos, saqueadores e foras-da-lei em geral, só ouviram boatos.
Mas assim que chegaram em Ticulis algo estranho havia ocorrido entre os pais. Não deixavam com que soubesse o motivo das discussões, mas fazia certa idéia porquê, embora ainda fosse jovem demais para entender por completo. Balvar se envolvia com outras mulheres, até mesmo da própria caravana. A mãe fazia vista grossa, mas talvez tivesse se cansado do desrespeito do marido. Cada um era dono de metade da Companhia Caravaneira, como havia sido documentado em Sete Rodas, e os negócios não poderiam continuar caso eles seguissem rumos diferentes. Mas Ernand nunca imaginara que chegaria a tanto, e nem que fosse acontecer de forma tão brusca.
A família havia se hospedado em uma boa estalagem no Distrito Comercial, os pais separados em quartos diferentes, e numa certa noite Balvar acordara o filho no meio do sono, arrastara-o até o grande Casarão de madeira na Rua Elmer e visitara a Senhora Meredith como se fossem velhos amigos.
“Eu preciso que me faça esse favor. É apenas por algumas noites.” – Dissera Balvar, voz fraquejando e rosto preocupado, entre um gole e outro, sentado então no mesmo balcão onde agora seu filho ajudava a limpar e servir bebidas.
“Você sabe que não é. Eu já tenho garotos demais.”- A mulher respondera, insatisfeita. Ela era gorda, usava coques de madeira que prendiam o cabelo escuro, possuía seios enormes e se vestia de maneira vulgar, para a idade que aparentava. Na época, Ernand jamais concebera a idéia de que ela talvez um dia tivesse sido bonita, mas futuramente lhe diriam que fora o caso, para sua surpresa.
“Nalia não está satisfeita. Eu também não estou. Mas estou perto demais de conseguir fazer algo grande. Só preciso dessa oportunidade. Preciso fazer sozinho. Preciso que você cuide dele. Como se fosse um dos seus.”
“Vá para a sua mulher. Se não quer uma das minhas, vá para a sua. ”
“Não é sobre isso, Meredith. Eu não conheço mais ninguém aqui. Alguém precisa cuidar do garoto. Ele é esperto. Sabe ler.”
“Eu já disse, Balvar, nã-“ – A Senhora Meredith teria muito mais para falar, mas foi interrompida pelas moedas que o pai jogara em cima da mesa. Ernand lembrava-se que eram douradas, que brilhavam na luz das velas com cheiro do Casarão, e que o tilintar delas fez valer mais do que qualquer palavra que poderia ter sido dita.
“Está bem.” – Disse ela, por fim, recolhendo as moedas e colocando um pequeno bolso interno no grande decote do vestido se seda. Na hora, Ernand pôde ver parte de seu mamilo esquerdo, e sentiu-se compelido a fechar os olhos.
“Eu não quero ficar aqui.” – Disse Ernand. Havia demorado para entender o que estava acontecendo, em parte pela inocência, em parte pelo sono.
“Seja um bom garoto. Eu e sua mãe temos alguns assuntos para resolver, mas voltaremos para lhe buscar. Não se preocupe.” – Disse o pai, com um sorriso que parecia verdadeiro em seu rosto cansado e magro, com a barba rala crescendo e o olhar de quem há muito não dormia bem. Um abraço e um livro foram seus últimos presentes. – “Esse é só seu. Pode demorar o tempo que for para terminá-lo. Mas cuide bem dele.”
O livro era extenso, um dos maiores que Ernand já vira. Sua capa era feita com couro gasto e talhado, suas muitas páginas presas por fios de barbante grossos, um tanto gastas, mas ainda em bom estado.
“Sobre o que ele é?” – Perguntara Ernand, entre uma soluçada e outra. Estava chorando como a criança que era.
“É a maior das histórias.” – Respondera Balvar, e fora embora.
“Onde está minha mãe?” - Perguntou Ernand, mas a Senhora Meredith apenas balançou a cabeça e levou-o para suas novas acomodações.
No caminho, ele insistiu:
“Não queria ficar aqui..”
“E eu não queria ser uma puta.”
Ernand nunca mais viu seu pai, sua mãe ou qualquer vestígio da companhia de caravanas que possuíam. Questionou diversas vezes sua nova guardiã a respeito disso, mas nunca conseguira uma palavra de certeza. Ela dizia que também não sabia.
“Seus pais morreram, guri.” – Falava Arnst, um velho mercenário dos baronatos que freqüentava o Casarão, quando durante seus inúmeros fins de tarde bebendo vinho barato era perturbado por Ernand, que mais uma vez perguntava a todos os clientes a respeito de sua família, que desaparecera tão subitamente, e o abandonara daquela forma inesperada.
“Mesmo.. mesmo se fosse o caso, eu teria direito a uma herança. Éramos uma companhia de caravaneiros famosa, vendíamos li-“ – Dizia, mas foi interrompido com um forte tapa do homem.
“Não quero saber da tua história. Se eu tivesse vontade de ouvir criança chorando, fazia uma família, não vinha prum puteiro.”
E muitas outras vezes foi tão mal recebido quanto. Após algum tempo, foi proibido pela Senhora Meredith de questionar os clientes e oportunar a todos com suas dúvidas.
“Você é um rapaz inteligente.” – Dizia ela, suspirando, em uma das poucas vezes nas quais o elogiou de alguma forma. – “Lhe acolhi e lhe trato como um dos meus. Se algum dia seu pai voltar, te devolverei de bom grado. Mas até lá, não crie problemas. Isso já temos demais.”
Não desistiu tão fácil. Ia ao Distrito Comercial, visitava tavernas e lugares pelos quais havia passado com os pais em Ticulis, mas os poucos que se lembravam de sua família não faziam idéia alguma de onde poderiam ter ido parar. Achara até mesmo a estalagem onde haviam sido hospedados, mas seu velho dono mal lembrava dele, e dissera que todos haviam ido embora de uma hora pra outra.
Foram inúmeras as noites que passou em claro, chorando pelos pais. Parou apenas quando Rhyde lhe deu uma bofetada e disse que estavam todos na mesma situação, e que era para ele parar de ser tão mocinha.
As moças do Casarão conversavam entre si ao seu respeito, e por vezes ele as ouvia enquanto fazia um serviço ou outro pelo lugar.
“Coitadinho do garoto.”
“Os homens não gostam dele por perto. Só atrapalha. Esses dias perdi um cliente, que ouviu a história do garoto e começou a chorar e lembrar que tinha deixado a própria família, e decidiu ir embora para pedir perdão a eles.”
“Era só o que faltava. Eles vem aqui para esquecer dos seus problemas, não pra serem lembrados deles.. Mas mesmo assim, tenho pena dele. Foi abandonado.”
“Deve ser porque não sabe ficar quieto.”
Mas sabia. Não era de falar muito, ao menos com os garotos que viviam consigo no Casarão da Rua Elmer. No começo, não os suportava. O sujo Bezê com suas inúmeras histórias e o jeito irritante de contá-las, o mais velho Rhyde que acreditava poder mandar em todos e insistia em socá-los no braço ou no peito sempre que se sentia com vontade, Nardo Bolota que costumava roubar algum pedaço de sua comida quando virava para o lado e até mesmo Olie Pulão, que nunca ficava quieto e parecia gostar de atormentá-lo sempre que queria ficar sozinho. Apenas Jude se salvava. O garoto era pequeno demais para conseguir ser irritante.
E portanto, seus primeiros meses no Casarão foram de conflitos e buscas. Os garotos não o aceitaram bem, principalmente pela forma como ele gostava de deixar claro que era mais inteligente que todos.
Nenhum deles havia sequer lido um livro na vida, tinham brincadeiras bobas e arriscadas, e Ernand não via a hora de ser resgatado pelo seu pai e nunca mais ter que vê-los. Ele viria. Havia prometido.
“Você se acha melhor que a gente, não é?” – Disse Rhyde certa vez. O alto e forte garoto de cabelos desgrenhados estalava os dedos do punho e olhava-o de maneira séria enquanto dizia isso.
“Não me acho. Eu sou.” – Respondeu Ernand – “Em algumas coisas.” – Corrigiu, após o primeiro soco de muitos. Foi amaciado dessa maneira, até aprender a só falar o que os outros gostariam de ouvir.
Quando isso aconteceu, não tardou a ser aceito entre os Filhos da Puta. Eles eram simples, com desejos não maiores do que espionar as mulheres que trabalhavam no Casarão, roubar algumas guloseimas, jogar pedras em gatos, brigar com outros garotos da Cidade Baixa e zombar dos mais velhos. Como não haviam mais livros para se distrair e precisava de um modo para fazer com que o tempo passasse, acompanhou-os, geralmente a contra gosto, em muitas dessas situações.
Aprendeu a gostar da forma como Rhyde parecia, mesmo que de forma a assegurar seu domínio sobre os outros, querer protegê-los nas brigas contra os outros garotos, como Olie Pulão subia nas arvores e muretas das casas para colher frutas e roubar peças de roupa de varais, como Jude se divetia fazendo seus serviços de limpeza e conversava com seu lagarto de trapos, como Bezê arranja coisas estranhas e diferentes dos lugares pelo qual passeava, e até mesmo de como Nardo Bolota conseguia peidar em uma sinfonia inigualável, quando inspirado.
Agora, quase dois anos depois, e já fazia parte oficialmente da pequena irmandade.
Ele e os seus novos irmãos eram responsáveis por vários dos crimes menores na divisa entre a Cidade Baixa e o Distrito Comercial. Se um comerciante de frutas notava algumas maçãs faltando, já sabia quem culpar. Quando viam um grupo de garotos, qualquer vendedor já ficava desconfiado. Ainda que fossem conhecidos por ali, poucos dos trabalhadores ousavam mais que alguns xingamentos ou bordoadas, porque a Senhora Meredith do Casarão da Rua Elmer tinha bastante prestigio, fosse entre eles ou entre a política local, e era uma mulher respeitada demais, que vez ou outra arrastava algum deles pela orelha para que pedisse desculpas por algum ato cometido. Os habitantes da cidade baixa e os comerciantes tinham um jeito particular de resolver seus problemas.
Era por isso que Rhyde estava agora trabalhando na pequena barraca de frutas do velho Theo. Na semana anterior, fizera Nardo e Bezê fingirem uma briga ali perto, para chamar a atenção, enquanto ele e Olie enchiam um saco de pano com todas as frutas que pudessem.
Como costume, Ernand ficara apenas observando ao longe, num misto de receio e excitação. É verdade que os planos dos Filhos da Puta haviam ficado mais elaborados após a entrada oficial dele no grupo, mas ainda insistia em não envolver-se mais do que o necessário.
Mas o velho Theo os avistara, e embora todos conseguissem fugir correndo (Bolota com alguma dificuldade), o dono da barraca era cliente assíduo do Casarão de Meredith, e na próxima vez que fora ao recinto, relatara o evento para a Senhora, que concordara em colocar o jovem para trabalhar ali por algum tempo como forma de cobrir os prejuízos, e oferecera os serviços de Julia Desdentada de graça por aquela noite.
“Eu não vou admitir esse tipo de comportamento de vocês, crianças! Estão sujando o nome do Casarão!” – Dizia ela, entre tapas e torcidas de orelha, mas eles sempre continuavam, de um jeito ou de outro, independente da punição.
Era quase meio-dia, e Rhyde já estava ali desde as cinco da manhã, ajudando a arrumar a barraca e a vender frutas, mesmo que com extrema má vontade. Ernand, Nardo e Olie Pulão haviam ido visitá-lo escondidos, mais para fazer graça da situação do que por qualquer outro motivo.
Rhyde descascava uma laranja com uma faca a pedido do patrão, de costas para o homem. Deu uma breve olhada e, quando achou que ele não perceberia, enfiou-a já descascada dentro do calção, dando uma boa passada em suas partes intimas e depois tirando os pentelhos que haviam grudado nela. Ernard e Olie riram daquilo, mas Nardo pareceu sentir-se chateado com o que havia sido feito a comida.
“Aqui, pronto,” – Disse ele, oferecendo ao chefe, com um sorriso no rosto.
“Ótimo.” – Respondeu Theo. – “Agora a coma. Já é meio dia, você precisa se alimentar.”
Os garotos riram tão alto que conseguiram até mesmo chamar a atenção do velho, que os mandou embora sob ameaças e ofensas, mas Ernand e Nardo Bolota simplesmente deram a volta na quadra e voltaram a observar, entre barracas e muretas, enquanto Bezê e Olie iam embora por outro lado. Eles tinham o costume de se separar para confundir perseguidores.
Rhyde, revoltado com a situação, jogou a fruta em algum canto escondido. Esforçou-se para vender frutas, sem tentar mais nenhuma gracinha. Desistiu até da idéia de furtar alguma para se alimentar, e passaria fome se isso significasse que, no fim, longe de qualquer suspeita, poderia levar a faca que havia usado para casa. Não era nada demais, nem estava com um fio perfeito, e muito meno perto de ter algum verdadeiro valor, mas o fato de roubar algo lhe atraia bastante, ainda mais se fosse uma forma de se vingar do homem que o fizera tomar bronca da senhora Meredith e trabalhar ali de graça.
“Certo, garoto, junte os caixotes pra mim e coloque na carroceria. Pode levar algumas maçãs se quiser, sobraram bastante hoje.” – Dissera-lhe Theo, ao fim do dia.
“Sim senhor.” – Respondeu o mais velho dos Filhos da Puta, sorrindo de satisfação. Colocou tudo rapidamente na carroceria da charrete do homem e tirou a camisa, transformando-a numa sacola, com a faca embaixo e três maçãs em cima.
“Obrigado pelas frutas, até amanhã.” – Disse ele, e virou-se, e foi rumo ao Casarão contar tudo aos irmãos.
Rhyde encontrou Ernand e Nardo logo em seguida e comeram as maçãs enquanto andavam, Bolota chegando ao ponto de morder até sobrarem apenas as sementes. Passaram por uma seqüência de becos que conheciam por serem seus caminhos de fuga costumeiros, em tempos melhores. Quando estavam a cerca de duas quadras de casa, reencontraram Bezê e Olie, que brincavam com pedras.
“Você tem certeza que eu não ganhei?” – Perguntava Olie, um tanto confuso, com um sorriso bobo no rosto, tentando entender as regras do jogo que jogavam.
“Claro, tu acertô três pedra ‘quanto eu acertei duas, mas olha bem tu, acertei duas pedra duas vez, e tu não acertou três pedra três vez.” – Dizia Bezê, que tinha forte sotaque da Cidade Baixa, mesmo com Meredith e as outras damas tentando consecutivas vezes, sem sucesso, ensiná-lo a pronuncia correta das palavras, já que elas próprias foram obrigadas a aprender, para lidar melhor com os figurões que lá apareciam de vez em quando. Ele morava no Casarão fazia seis anos, e ainda não perdera o jeito característico de falar.
“Hein?” – Olie não parecia entender direito, nem o jogo nem o que lhe era dito. Sempre fora o mais lento nesse tipo de coisa, e o mais rápido nas outras.
“Ei, ei. Parem com isso, e vejam só o que eu consegui no primeiro dia de trabalho!” – Disse Rhyde, aparecendo de surpresa atrás deles, com a faca na mão.
“Oía!” – Disse Bezê, assustando-se, enquanto o próprio Olie Pulão já saltara para trás.
“É, agora a gente pode até caçar uns ratos, assar e vender pro Bolota.” – Dizia Rhyde. Os garotos riam, e logo foram juntos para o Casarão, jantar e planejar alguma nova maldade, agora que o líder retornara.
Ernand ainda se sentia diferente deles, mas de certa forma sabia que fazia parte do grupo. Era um Filho da Puta, embora nem sempre tivesse sido, e já se acostumara com aquela vida, mesmo que muitas vezes ainda se pegasse desejando pelo retorno dos pais.
“O que vocês fizeram agora?” – Perguntou o jovem Jude, quando todos os outros estavam quase chegando ao Casarão. Ele estava com seus trapos costumeiros, grandes demais para seu pequeno corpo, e manchas de sujeira estavam em seu rosto. Um pano sujo pendia pelo seu ombro, e o cabelo loiro ficava bagunçado em tufos. Ele tinha um dos dedos dentro do nariz enquanto falava. O garoto havia passado o dia inteiro cuidando da limpeza do lugar enquanto os irmãos se divertiam.
“Fizemo nada.” – Disse Bezê, dando um tapinha leve em sua cabeça.
Mas havia algo de estranho, Ernand percebeu. Quatro cavalos estavam parados na entrada do Casarão, e um homem de armadura e capa azulada guardava a entrada.
Jude contou, quase chorando, que havia saído fazia algum tempo para ver uma briga de gatos na rua, mas quando voltou avistou membros da guarda entrando, e não havia tido coragem de entrar de novo até agora. “E o Pedro ficou lá dentro! Eles vão querer pegar ele!”- Disse, por fim, a respeito do seu lagarto de brinquedo. Não resistiu e desabou em lágrimas assim que terminou.
“A guarda?” – Falou Rhyde, quando viu. Não conseguia esconder o medo em seu rosto. Instintivamente, olhou para a faca que havia roubado.
Ernand tremeu. Os Filhos da Puta eram arruaceiros, mas até então jamais haviam chamado atenção da guarda da Cidadela de Ticulis. Talvez uma ou outra reclamação, que na maioria das vezes era mais um pretexto para descontos com Meredith e suas moças do que um verdadeiro problema. Só que agora era diferente. Teriam os guardas se cansado das reclamações dos comerciantes? Será que algum crime maior havia sido atribuído aos garotos? Ou simplesmente havia chego a hora de pagarem pelos seus atos?
“O que fizemos agora?” – Ele se viu perguntar. Jude aproximou-se de si e estranhamente abraçou sua perna, esfregando o rosto nela para enxugar as lágrimas.
“Oh não, oh não. Não fui quem pegou o pão! Não fui!” – Disse Nardo Bolota, recuando alguns passos. Bezê e Rhyde haviam parado e tentavam entender a situação, mas Olie Pulão havia seguido calmamente na direção do guarda.
“Num vai, burro!” – Disse Bezê, mas o alto e magro rapaz olhou pra trás, dando um sorriso bobo e falando:
“Olha como o pequeno Jude está. Ele precisa do seu lagarto.”
Aquilo de alguma forma inspirou Rhyde, que talvez não quisesse parecer medroso na frente dos irmãos, e ele também foi. Ernand e os outros eventualmente seguiram, a contra-gosto.
“São os filhos da Meredith?” – Perguntou o guarda, quando se aproximaram. Os garotos estavam obviamente amedrontados, mas tentavam esconder isso o melhor que podiam.
“Somos. Que aconteceu?” – Perguntou Rhyde, colocando-se na frente de todos e tentando parecer mais velho do que era.
“Investigação da guarda. Mas podem entrar, a Senhora passou o dia todo reclamando de vocês, aposto que vão ter muito o que fazer lá dentro.” – Disse o guarda, com uma meia risada, e deixou com que entrassem.
O Casarão estava diferente do que estavam acostumados. Não havia cliente algum na sala de apresentações, que era decorada com fitas de seda coloridas que saiam do teto, tinha um cheiro forte de mulher e apresentava inúmeros travesseiros de pena pelo chão, além do grande balcão de madeira no qual as bebidas eram servidas e mesas e cadeiras espalhadas por ele.
Havia outro guarda conversando com duas meninas cobertas apenas por panos finos que desciam pelos seus ombros e pouco faziam para esconder suas curvas. Pela forma como sorriam e sussurravam, pareciam estar negociando algo com o homem.
“Que essas crianças estão fazendo aqui?” – Comentou um outro guarda, mais jovem, quando avistou os Filhos da Puta.
“São os bastardinhos da Meredith. Deixe eles.” – Respondeu outro, mais velho e largo, com uma barba grossa.
“Bastardinho é teu caralho.” – Retrucou Rhyde, e recebeu um forte tapa no rosto de imediato. Teria partido para cima do guarda e morrido ali mesmo, se todos os outros não tivessem segurado-o com grande esforço.
“Esse aí tem colhões.” – Disse rindo o guarda que conversava com as mulheres, ao ver a cena. Ele tinha um cavanhaque e parecia estar aproveitando a situação pelos três.
“Talvez eu mande ele para a guarda. O Bom Deus sabe como andam aceitando qualquer tipo de idiota lá.” – Disse a voz amarga da Senhora Meredith Baldour, vindo de dentro de um dos quartos do térreo. – “Já terminaram de atrapalhar meus negócios?”
“Minha Senhora, você sabe que temos que fazer nosso trabalho... assim como a Senhora tem o seu a fazer.”
“E como é que vou atender os clientes com a guarda na frente do meu Casarão? Não é segredo nenhum que a maioria dos que vêem aqui preferem ficar longe de vocês.”
“É, mas pense pelo lado bom. Ao menos não somos Vigilantes.” – Comentou o mais velho.
Por um breve momento, ele e a Senhora Meredith riram juntos, como se fossem cúmplices de alguma piada a qual Ernand e os outros garotos desconheciam.
“Saiam daqui vocês, garotos. Vão para seus quartos. Os guardas tem muito o que fazer.” – Disse ela, por fim.
“Espere. Será que eles não viram nada?” – Perguntou o mais jovem dos guardas. Seu rosto era sério e fino, embora as orelhas e o nariz fossem grandes demais.
Meredith revirou os olhos.
“Não envolva as crianças nisso.”
“O rapaz está certo. Eles podem ter visto alguma coisa.” – Disse o barbudo.
“Vimo o que?” – Perguntou Bezê.
“O um assassino. É um mercenário, pelo jeito. Não sabemos seu nome, mas sabemos como ele é. Alto, sujo, bêbado e fedorento. Tem um rosto jovem, com cabelos negros e olhos verdes. Esteve aqui no Casarão ontem, na noite do crime. Uma das garotas desconfiou dele, que tinha a capa negra manchada com sangue, e trouxe até um dos meus homens ao qual ela.. erm.. presta serviços. Quando chegamos aqui, ele já havia ido embora. Vocês viram algo?”
Rhyde pareceu pensativo por um momento, mas fez que não com a cabeça.
“Estive dormindo cedo, porque estou trabalhando na feira agora.”
Ernand, Bezê e Olie Pulão também negaram, mas Jude parecia estar com medo até de responder, e manteve-se agarrado à sua perna.
Foi Nardo Bolota quem falou.
“Eu vi. Eu vi esse homem. Estava descendo pela escadaria, quase me derrubou. Eu.. Eu comia um bolo de cenoura. Era cedo de manhã, lembro porque o bolo estava quente ainda. Ele passou correndo, eu gritei com ele, mas ele passou reto por mim. Estava coberto com um pano.”
O guarda assentiu com a cabeça e virou-se para a Senhora Meredith.
“A mesma coisa que você viu. Só podia ser ele. Cobriu-se com um lençol e foi pra rua.”
“É, nenhuma novidade. Eu já disse, você não vai achar nada aqui.”
“Só estou fazendo meu trabalho, Meredith.”
Os garotos foram mandados embora, mas continuaram curiosos a respeito do assunto. Naquela noite, depois dos guardas terem ido, eles discutiam sobre o ocorrido num canto do quarto que compartilhavam no Casarão, à luz de uma pequena e gasta vela.
“A bandidage conhecida num costuma vir pra cá. Eles sabe que tem uns guarda que freqüenta, e que a Merdith num gosta de pobrema.”- Dizia Bezê.
“Eu vi ele bem. Tinha cara de maluco. Achei que ia me matar.” – Exagerava Nardo.
“Só se ele estivesse com fome e tivesse te confundido com um porco.” – Zombou Rhyde, e todos acharam graça.
“Mas quem ele matou?” Ernand estava intrigado.
“Deve ter sido alguém importante.” – Comentou Olie Pulão, num momento raro de seriedade.
Jude estava deitado em seu colchão de palha, abraçado no seu lagarto, e os garotos falavam baixo para não acordá-lo.
Caíram no sono enquanto inventavam histórias sobre o assassino.
Rhyde bravejava que, se não fosse o trabalho na feira, teria estado acordado durante a noite e capturado ele sozinho. Bezê insistia na idéia de que poderiam ter ganho algum bom dinheiro como recompensa, e Olie sorria enquanto Nardo pegava migalhas de seus bolsos e comia-as desesperadamente.
Ernand achava que a história seria esquecida, mas os dias seguintes provaram que estava errado.
Mais pessoas estranhas visitaram o Casarão a procura de informações sobre o ocorrido.
“Ele só veio aqui durante a noite, bêbado, e escolheu Kristina para a cama. Mal conseguiu trepar com ela, e caiu no sono. Ela desconfiou do homem, viu a capa manchada de sangue e chamou a guarda. Ele desapareceu de manhã, antes que chegassem. Foi só isso.” – Contavam as mulheres do Casarão, quando indagadas pela nova clientela, que parecia mais interessada no fugitivo do que nelas. Ainda assim, elas os obrigavam a pagarem ao menos uma bebida antes de começarem o questionário. A maioria acatava.
Por vezes, alguns homens também perguntavam para os Filhos da Puta a respeito do ocorrido. Bezê inventava histórias a respeito do possível paradeiro do fugitivo, e até mesmo conseguiu algumas moedas contando como havia seguido-o até certo ponto da cidade, tendo perdido-o de vista no meio da multidão. Rhyde ajudava a dar credibilidade para o rapaz, e ambos comentaram com a Senhora Meredith como aquele incidente estava sendo bom para os negócios.
“Não sejam bobos. Não queremos chamar a atenção. Parem de falar sobre isso. Traz azar.” – Dizia ela, irritada. Andava cada vez mais preocupada e nervosa.
No terceiro dia após o incidente, o homem mais estranho que Ernand já vira apareceu por lá.
Ele vinha coberto da cabeça aos pés em panos sujos e gastos, com cores desbotadas em tonalidades marrons que se misturavam com sujeira e lama. Exalava um cheiro terrível de esterco, e trazia consigo três grandes cachorros selvagens, presos em pedaços de cordas amarrados em seu braço. Tinha luvas grossas de couro batido embaixo de fitas grossas de couro curtido com marcas de mordida, que cobriam todo o seu braço.
Ernand, Olie e Nardo estavam servindo alguns clientes quando ele entrou no Casarão. Os três surpreenderam-se com o homem; seus dentes eram tortos e amarelados, seu rosto quase que esquelético marcado por pedaços disformes de uma barba negra recente que crescia sem cuidados, o cabelo escuro longo e sujo caindo em pedaços grudentos pelo seu rosto e que quase chegavam até o grande e horrendo nariz que de certa forma parecia um focinho. Sua pele seca era queimada pelo sol e marcada pela vida.
“Nã..Não pode entrar com animais aqui.” – Disse Olie, quando o homem atravessou a porta com seus cachorros. Ele respondeu com um “Pfff” e sentou-se de frente para o balcão. Bateu uma moeda de cobre gasta em cima da mesa e pediu por rum.
Foi servido, deu um gole e olhou para os garotos com seus grandes e amedrontadores olhos azuis.
“Podemos ajudá-lo?” – Disse Ernand. Não costumava fazer esse tipo de coisa, mas estava sentindo certo medo do homem e de seus cachorros, que farejavam pelo chão incessantemente.
“Chamem a mulher que atendeu o bandido.” – Disse ele, na voz cortante.
Nardo assentiu com a cabeça e subiu as escadas apressadamente. Olie deu de ombros e foi servir os outros clientes, mas Ernand permaneceu parado. Um dos cachorros, o manchado de pelo curto aproximou-se de si e começou a cheirar suas pernas.
O homem pareceu divertir-se com aquilo.
“Olha só, guri. O cachorro ta achando que tu é uma das moças, e que ele é teu cliente.” – Disse, e riu sozinho.
Kristine desceu as escadas. Ela não era das moças mais bonitas do lugar, mas não chegava a ser feia. Tinha seios pequenos em comparação com as outras, mas seu rosto era jovem e ela sabia como agradar um homem, diziam. Ernand sempre a desejara, como fazia com várias outras, embora soubesse que nunca teria uma chance sem uma boa quantia de moedas.
“Me chamou, seu cachorro?” – Disse ela, e parecia estar insatisfeita.
“Chamei. Falei com teu macho da guarda. Ele disse que a capa ficou contigo. Disse que era pra tu guardar pra mim. Eu vou resolver essa merda.”
“E o que eu ganho com isso?”
“Tu ganha uns dentes a menos nessa tua carinha feia se ficar se metendo demais nos meus assuntos.” – Disse ele, e um de seus cachorros latiu. Ernand se afastou para trás do balcão e fingiu limpar alguns copos.
As mulheres do Casarão da Rua Elmer não costumavam aceitar desaforos, mas por algum motivo Kristine manteve-se quieta.
“Espere. Vou lá pegar.”
Subiu pelas escadas e retornou em pouco tempo com uma capa negra dobrada. Entregou-a para o homem, e ele abriu-a frente a si. Havia uma grande mancha de sangue escura, como se um gigante tivesse desvirginado alguém e limpado o pau ali depois.
Colocou-a perto do grande nariz e deu uma boa cafungada na parte com o sangue. Depois, fez o mesmo em suas extremidades.
“Vai ser difícil.” – Comentou ele, e depois repetiu o procedimento com os seus cachorros. Colocou o pano na frente de cada um deles e forçou seus focinhos contra ele, por vezes dando alguns tapas para que se focassem no cheiro.
“Posso ir?” – Perguntou Kristine, impaciente.
“Como é que tá o garoto?”
“Será um homem melhor que o pai.” – Disse ela, e deu as costas.
“Quem diria.” – Ele retrucou, mas ela já havia ido.
O homem terminou o rum e estava se levantando quando Rhyde surgiu.
“Aqui não é canil.” – Disse ele, irritado, quando viu os cachorros.
“Não? Que estranho, eu vi um monte de cadela, e até uns filhote.”
“Talvez estivesse procurando pela sua mãe?” – Disse Rhyde, que andava irritado desde o tapa que levara do guarda. Ele já havia expulsado alguns bêbados e arruaceiros do Casarão quando necessário, mas geralmente eram homens embriagados demais para revidar direito, e desarmados. Não parecia ser o caso com aquele ali.
O dono dos cachorros deu uma grande risada.
“E o que um Filho da Puta como você tem pra dizer da mãe dos outros?” – Perguntou. Parecia entretido com aquilo.
“Uma faca.” – Pensou Ernand,que sabia que a mão de Rhyde ia em direção a onde ele guardava a ferramenta que havia roubado do velho Theo. Mas o homem ameaçador coberto em trapos era mais rápido, e de baixo de sua montanha de panos surgiu um grande facão, que mais parecia uma espada. Rhyde mal teve tempo de tocar sua pequena faca roubada.
“Vai morrer assim por nada, guri?” – Perguntou o homem, com um sorriso no rosto, mostrando os dentes feios e apontando a lâmina na direção de Rhyde.
O garoto pareceu não saber o que fazer, e permaneceu estático, com os olhos arregalados e a mão parada onde estava. Ernand sabia que Rhyde gostava de brigar e era corajoso, mas as únicas armas que já empunhara em seus duelos fora pedaços de madeira. Uma espada era algo difícil de se conseguir, para um garoto pobre como ele. O próprio Ernand não sabia o que fazer. O balcão separava-o do homem com a lâmina, e ele olhava para Rhyde, então talvez pudesse jogar um copo ou uma garrafa em sua cabeça... mas ele parecia perigoso, e tinha seus cachorros para ajudá-lo, enquanto Ernand apenas havia lido sobre batalhas, nunca participado em nenhuma de fato, nem nas que seus irmãos arranjavam. Nunca havia sido necessário.
Os outros clientes presentes no salão do Casarão – cerca de meia dúzia – observavam a cena. Alguns estavam ocupados demais sendo cortejados pelas mulheres, mas outros mostravam clara apreensão. Uma das moças se levantou.
“Guarde isso e vá embora, homem-cachorro, antes que Meredith desça.” – Disse ela, num tom de voz assustado. Seu nome era Arlanna, e ela era um tanto rechonchuda, mas tinha grandes seios, os quais apertava com um espartilho escarlate. Usava apenas ele e uma leve fita que mal cobria sua intimidade.
“Eu já tava indo embora, vadia. Mas esse guri precisa de uma lição. Talvez uns pedaços dele dentro dos meus cachorros sirvam pra ele aprender a não mexer com os outros.”
“Cê num vai fazê nada alem de ir embora, se sabe o que é bom pra ti.” – Disse Bezê. Ele surgiu das escadas que levavam para os quartos carregando um grande cabo de vassoura como se fosse uma lança.
O homem com o facão pareceu estranhamente surpreso, e riu sozinho por um momento, antes de guardar a arma e dar de ombros.
“Vocês estão com sorte hoje.” – Disse ele, e foi embora por onde havia vindo. Um de seus cachorros farejou na direção de Bezê por algum tempo, e depois seguiu os outros para fora.
“Quem era ele?” – Perguntou Ernand para Arlanna, após algum tempo.
“Um bandido qualquer. Não se misturem com esse tipo de gente.” – Disse ela, e voltou a atender seu cliente, um homem barrigudo de poucos cabelos, que dizia trabalhar nas muralhas, e observara a cena de forma preocupada, mas nada fizera além de permanecer sentado em cima das almofadas.
“Cê tem que arranja menos briga.” – Dizia Bezê para Rhyde. – “O home ia dar uma surra na gente. Das braba.”
“Se Meredith tivesse me dado uma espada como eu pedi, eu podia ter acabado com aquele sujeito fedido.” – Retrucava Rhyde, irritado. Bateu na mesa com força.
“Ela num vai botá ferro na nossa mão jamais. Cê tem que vê que ela já paga Lotaro pra mantê a segurança, num precisa de nois causando pobrema com lâmina por aí.”
Ernand sabia que Lotaro era um guarda que patrulhava por aquela região, e que ele era muito bem pago por Meredith para garantir a segurança do lugar, mas havia algo que não entendia.
“E onde estava Lotaro quando o assassino passou a noite aqui?” – Perguntou.
“Devia estar contando suas moedas.” – Disse Rhyde, num tom amargo. Pegou a faca em sua cintura e foi rumo a cozinha, provavelmente afiá-la. Não adiantava discutir com ele agora.
“Esse aí num vai se aquietá fácil.. devia de dar uma Erva do Mago pra ele.” –Disse Bezê.
“Você tem aí?” – Ernand havia experimentado com os irmãos, e adorava o jeito como ela deixava tudo mais engraçado, calmo e divertido.
“Tenho não. Os preço subiro.” – Reclamou Bezê, e voltou para cima.
Outro homens estranhos visitaram o Casarão nos dias que se seguiram, mas nenhum como aquele. A maioria ia e vinha, fazendo suas perguntas e indo embora.
Era uma manhã qualquer, quando Ernand acordou e foi fazer suas obrigações diárias. Passou por um corredor, quando viu Bezê agaixado com o ouvido contra a parede, fazendo sinal de silêncio. Se aproximou, e pôde ouvir também.
“..e veio aqui já tarde, numa hora de poucos clientes.. Era tímido e jovem, acho que fui sua primeira Eu ofereci vinho para deixa as coisas mais fáceis, e ele aceitou. Resolveu pagar uma garrafa inteira..” – Dizia uma meretriz para a outra, no quarto que compartilhavam, e suas vozes podiam ser ouvidas pelo buraco na parede de madeira.
“É mais do que podemos falar da maioria. E aí? Como ele foi?”
“Essa é a parte estranha.. Ele parecia ser bonito, por isso foi uma pena quando pediu parar apagar a vela, queria vê-lo nu. Mas tudo bem, pensei que ao menos teria um certo vigor.. vai que seria bom? O Bom Deus sabe que na maioria das vezes não é.”
“E então? Foi bom?
“Eu.. não lembro. Sabe, como eu disse, estava tarde. E ele era tímido até demais, mesmo depois de uma garrafa inteira de vinho. Foi.. chato. Tão chato que acabei pegando no sono na metade.”
“Dormir sem nem completar o serviço, Firda? O que você tem, quarenta anos?”
“Eu sei, eu sei.. não é coisa que se faça. Mas acho que ele gostou. Deixou algumas moedas a mais em cima da cabeceira, mas já tinha ido embora quando eu acordei. Coitado. Deve ter ficado com vergonha.”
“Esse não volta mais.”
“E então, você sabe o que tem pro almoço hoje?”
“Agora num tem mais graça.” – Disse Bezê, se afastando. – “Antes elas tavo falando putaria, das boa. Contando os caso, os esquema delas. Mas é bom memo quando elas se troca. Deliça.”
Aquele foi um dia normal. Rhyde saiu cedo para trabalhar na barraca de frutas do velho Theo, Olie passou pano em lugares altos, tirou sujeira das janelas e do telhado, empilhou garrafas de bebida no topo de estantes, Nardo ajudou na cozinha, beliscando alguns pedaços quando podia, e no fim Bezê saiu pelas ruas a procura de algum divertimento, e Ernand o os outros o acompanharam, deixando Jude para finalizar os afazeres.
Passaram por ruas repletas de pessoas de todos os tipos, como costumavam estar. Visitaram Rhyde e fizeram caretas para ele longe dos olhares do seu chefe, andaram pelo chão de terra batida da cidade baixa e pelo chão pavimentado do distrito comercial. Fugiram de uma gangue de garotos mais velhos com os quais já haviam brigado certa vez, andaram por telhados, becos e vielas, conversaram com um mendigo cego e outro sem pernas, ouviram canções serem cantadas do lado de fora de tavernas, gritaram ofensas para um vendedor de verduras que fedia, desviaram de pedras, jogaram bolas de lama na estátua de um antigo herói Durdiano, espantaram pombos e correram atrás de gatos e cachorros. Eventualmente, Rhyde saiu do seu trabalho e os acompanhou, trazendo consigo também algumas poucas frutas que havia ganho.
E então foram atrás da gangue dos garotos mais velhos e os botaram para correr, fizeram varetas com galhos de uma árvore e fingiram ser espadas, brincaram de campeonatos de insultos e gritaram juras de amor para as moças que lavavam roupas em uma fonte.
Já era noite quando finalmente retornaram ao Casarão, cansados, cheios de arranhões e famintos.
O que encontraram foi uma montanha de fogo.