O Mercenário e a Meretriz: Parte 4
9: Batalha
O Alto Sacerdote Sironno obviamente não se envolveria diretamente no conflito. Após as preces, rituais e discursos para elevar a moral dos soldados, ele retirou-se para sua carruagem, a qual ficou sendo guardada por doze de seus mais valorosos Bons Homens, além de alguns batedores e cavaleiros. O próprio Convertido havia sido convidado a permanecer em sua tenda particular.
O resto do contingente marchou rumo ao Forte.
Brasillo ficou com a vanguarda: Enquanto Lorde Flertan e vários outros bem equipados à cavalo iriam avançar frente o Forte e rodear seus muros, passando a espada em qualquer um que saísse dele para enfrentá-los, ele tomaria o portão de assalto com seus homens, enquanto escadas eram levantadas e a grande torre de madeira seria empurrada, para servir como elevador para os homens a pé.
Metade do grupo de arqueiros do qual Elijah fazia parte posicionou-se num morro a direita, enquanto a outra ficava praticamente em frente ao Forte, protegida por restos do que um dia fora uma muralha.
Na frente deles, Jethro.
Estava melhor equipado agora; um elmo de ferro sem visor cobria boa parte da sua cabeça, e uma cota de malha escura coberta por um gibão com ombreiras o seu peito, ambos presentes deixados para trás pelos mortos, feridos ou desertores do grupo que haviam anexado. A lança havia deixado para trás, e portava Meretriz na mão direita e o escudo de madeira na esquerda.
Ao seu lado, duas centenas de homens parados, escudos levantados, esperando ordens. Não podia ver rostos conhecidos entre a massa coberta de couro e metal, mas esperava que metade das histórias que os homens haviam contado ao redor da fogueira fossem verdade. Já estaria suficiente ocupado lutando contra os Ravatenes para ter que se preocupar com aliados acertando-o sem querer pelas costas no meio do combate.
Um bom tempo se passou, no qual as tropas ficaram estacionadas em suas posições, e nenhuma resposta veio do Forte. Lorde Flertan e enviados seus tentaram uma aproximação, mas foram recebidos com tiros de flechas. Não haveria diálogo com aqueles Ravatanes.
Jethro podia ver, entre as lanças que cobriam sua visão, pessoas se movendo entre as ameias da muralha, e flechas sendo disparadas de alguns pontos. Elas foram aumentando cada vez mais, até finalmente seu numero e alcance começaram a se tornar um problema.
Quase que ao mesmo tempo em que Jethro ouviu uma flecha encontrar o escudo de um homem que não deveria estar muito na sua frente, a corneta de guerra soou dos lábios de Lorde Flerdan.
O barulho fez com que os homens andassem. Acima de si, cruzando o céu nublado, inúmeras flechas subiam e caiam nas muralhas do Forte. Soldados na sua frente carregavam as escadas, enquanto ele próprio ajudava a empurrar o grande mecanismo que os levaria até o topo das muralhas. Não iria se arriscar naquelas escadas nem que sua vida dependesse disso.
A proximidade trouxe mais riscos. Jethro sentiu uma flecha parar em seu escudo. Mais alguns passos adiante, passou por cima de algo no chão que só poderia ser o corpo dos seus. Outra flecha passou zunindo ao lado direito do seu elmo, enquanto mais uma afundou no canto do escudo. Teria preferido aproveitar-se da proteção da maquina de cerco de quatro andares, ficando dentro dela ou atrás, mas sabia que aqueles que ali estavam seriam os primeiros a invadir as muralhas, e também os primeiros a morrer.
Mais flechas iam e vinham, o barulho delas contra o metal, madeira, couro e carne se tornando cada vez mais constantes, assim como os gritos de ódio e dor.
Enquanto tudo isso ocorria, as lanças começaram a chover. Um homem ao lado de Jethro recebeu uma no ombro, e a madeira atravessou-o até as costas. Outra caiu pouco ao seu lado, e mais duas num homem pouco à sua frente.
Mais corpos pavimentavam aquele chão de terra batida, mas os homens continuavam avançando sobre eles. Homens quatro fileiras a sua frente estavam quase ao pé da muralha quando as escadas começaram a ser colocadas.
Jethro com o escudo levantado defendeu mais três flechas que vieram em seqüência com ele, mas uma atravessou a madeira e afundou em seu braço esquerdo. A dor veio, mas a ela não foi atribuída a devida importância. Existiam coisas mais importantes no momento.
Podia ver homens subindo nas escadas postas, enquanto Ravatenes acima atiravam lanças, pedras e flechas. Eram muitos. Faziam tremer as escadas e conseguiram derrubar duas, que caíram acima dos homens e se estilhaçaram em suas cabeças. Noutras, as quais guerreiros seguravam desesperadamente e mantinham a pressão firme, soldados da Sagrada Incursão subiam.
Escudos levantados, alguns caiam, mas a maioria conseguia subir.
Ouviu o barulho pesado do portão da torre de cerco se abaixando e batendo contra o topo da muralha, e percebeu que a invasão havia de fato começado.
Homens subiam e tombavam em sequencia, mas Jethro preferiu que não os seguiria. Foi andando para a esquerda, atrás da massa que avançava para dentro da torre, quando viu ao longe Brasillo a pé.
Ele deveria estar à cavalo. Outros, montados, vinham atrás dele, mas eram alvejados por lanças e machados vindos de mais de vinte cavaleiros. Eram homens sujos, vestindo trapos e pedaços de couro, mas vinham com selvageria e pareciam, de alguma forma, ter desmontado os outros.
Jethro observou a cena por mais alguns momentos, até perceber que, enquanto os cavaleiros de Brasillo tombavam e seus cavalos caiam, mesmo sem ataque algum, os cavaleiros Ravatenes pareciam andar em uma formação peculiar, desviando de alguma coisa.
Provavelmente eram estacas plantadas ali antes.
Seguiu na direção da situação e se afastou um tanto da muralha, e quando um cavaleiro Ravatene veio em sua direção com um grande machado, ele sentiu a lâmina dele tocar levemente a ponta do seu nariz, enquanto jogava o corpo para trás e rasgava Meretriz na carne de seu cavalo. Ele desmontou, indo para frente e caindo de cara no chão. Seu pescoço quebrou na hora.
Jethro viu mais alguns dos homens de Brasillo a pé, sendo colhidos pelas armas Ravatenes como flores no campo, os cavaleiros fazendo o sangue jorrar por onde passavam e os Durdianos sendo vítimas de suas armadilhas. Flechas começaram a vir do ponto alto onde arqueiros estavam estacionados, e um grande Ravatene prestes a ir de encontro ao mestre-de-armas com um machado foi alvejado, seu cavalo seguindo adiante e seu corpo pendendo para trás.
Outro teve o cavalo morto por flechadas e conseguiu se jogar e continuar correndo na direção de Jethro. Ambos se encontraram e o aço cantou algumas poucas notas, enquanto a espada do homem vinha e Jethro desviava e defendia-a com a própria. A abertura veio e ele aproveitou-se dela para abrir um rombo na cabeça do homem.
Mais cavaleiros caiam de ambos os lados, e Jethro recuou enquanto as flechas caíam. Olhou para a muralha e viu que a luta ainda acontecia em cima dela, mas não fazia idéia de quem estava ganhando. Agora, mais corpos do que lanças caíam dela, e uma gigantesca fila de homens aguardava para subir pelo elevador e se protegia com escudos.
Sentiu um zumbido vindo de trás passar por si e pode ver a flecha desmanchando-se contra a parede do Forte, na altura de seus olhos. Teve tempo suficiente para jogar-se para o lado antes de uma grande pedra ser jogada lá de cima bem no local onde estava.
Teria que agradecer Elijah mais tarde.
Poucos homens permaneciam ali, a maioria desesperadamente tentando subir em um aglomerado, e ele seria um alvo fácil se continuasse como estava. Empurrou seu caminho por entre os homens e deixou que a multidão o guiasse para dentro da estrutura e seguiu apertado entre eles pelas escadas de madeira.
Não devia avançar assim, mas sentia-se confiante. Seu coração batia mais forte e ele não conseguia esconder a excitação e a vontade de matar. Estava em casa.
Quando chegou no topo e deparou-se com tantos outros homens espremidos pela ponte que ligava as muralhas com a estrutura, degladiando-se com os Ravatenes do outro lado e tentando abrir caminho.
No breve momento em que teve enquanto a parede humana o protegia, Jethro observou o campo à esquerda. Os cavaleiros de Lorde Flertan pareciam também terem sido vitimas das estacas plantadas, mas mantinham-se em combate contra alguns poucos Ravatenes montados em animais fracos e com pouca armadura. Naquele flanco não haveria risco.
Na direita, homens-de-armas e o restante do pelotão de Brasillo a pé seguravam mais Ravatenes, que tombavam para flechas e espadas.
A sua frente, mais adiante, via uma pequena torre quadrada erguendo-se até dez metros acima da altura das muralhas, e de suas janelas e topo homens atiravam flechas.
Não podia ficar parado. Precisava avançar.
Jogou-se no meio dos seus e seguiu até estar na linha de frente. Foi recebido com uma machadada vinda de cima em meio ao caos, e defendeu-a com o escudo. O machado afundou na madeira dele, e Jethro aproveitou-se disso para forçá-lo para a esquerda. Na hora, a dor no braço fez-se sentir novamente, mas não importou. Os braços do homem não soltaram o cabo, mas acompanharam-no preso ao escudo, Jethro golpeou-o com a espada na esquerda. Cortou a barriga e viu as tripas de despedaçando com o golpe, e o homem tombou.
O machado ficou preso no escudo de madeira, recheado de flechas e já quase despedaçado, e Jethro jogou-o para frente, batendo na cabeça de um Ravatene que fugia da alabarda de um guerreiro em armadura pesada. Agora com as duas mãos na Meretriz, Jethro dançou com ela ao seu redor e espalhou sangue e dor enquanto caminhava pela muralha. Segurou uma lança de madeira embaixo do ombro direito, puxou seu portador para perto e cortou sua garganta. Desviou de uma espada que não chegou a ver a quem pertencia, mas atirou-se no primeiro Ravatene que viu na frente e enfiou a espada com as duas mãos em seu peito. Algo bateu em seu gibão de metal e se despedaçou em seu ombro, mas ele revidava cada golpe com dois, e os homens morriam como moscas ao se aproximarem dele.
Em certo momento, viu-se cercado de oponentes, e percebeu que havia atravessado boa parte da estreita muralha praticamente sozinho. Homens ainda lutavam, a sua direita, atravessando a ponte e enfrentando hordas Ravatenes, mas ele próprio havia aberto caminho até ali e seis lanças com ponta de metal estavam apontadas em sua direção.
Tudo pareceu parar por um momento. Eram homens quase nus, vestindo trapos que mal cobriam seus membros. Pareciam sujos e feridos. Mas não importava, jamais chegaria até eles, as lanças avançavam contra si e cobriam todo o estreito caminho da muralha.
Num piscar de olhos recuou três passos e se jogou para o lado, na ameia. O homem mais próximo a si tentou enfiar a lança lá dentro, mas Jethro puxou-a e jogou o homem para baixo. Estava com metade do corpo para fora, usando a lâmina e o cabo da espada para tentar firmar-se melhor ali, mas sabendo que não teria equilíbrio. Usou toda a força na mão para voltar ao estreito corredor da muralha, e apunhalou um dos lanceiros pelas costas. Os outros quatros viravam-se após terem passado reto por onde ele estaria, mas suas lanças eram grandes, pesadas e difíceis de manobrar, e enquanto posicionavam-nas para cima de modo com que não batessem uns nos outros, Jethro já havia matado mais um deles com um golpe preciso na garganta.
Os outros três tentaram seu melhor, mas não foi o suficiente. Um deles puxou um facão de um pano amarrado na cintura, mas perdeu a mão e a vida logo em seguida. Os outros dois mal tiveram tempo de tentar estocar Jethro com suas lanças antes de serem atacados. Um recebeu uma machada de um grande homem atrás, enquanto o outro sofreu dois rápidos golpes de Jethro no torso.
Viu Terdal, coberto em sangue da cabeça aos pés arrancar o machado da cabeça do Ravatene e abrir um grande sorriso ao ver Jethro ali, com tantos corpos ao redor de si.
“VAMOS, JOVEM!! VAMOS MOSTRAR A ESSES RAVAS O QUE O QUÃO BOM É NOSSO DEUS!!!” – Gritava ele, rindo e procurando sua próxima vitima. Havia uma flecha em seu ombro e outra nas suas costas, mas ele parecia não se importar.
E por que deveria? Jethro também sangrava. Havia sido cortado e sequer sabia onde. Algo quente escorria de si, mas Meretriz estava consigo, e era só o que importava.
Mais homens se misturavam no topo da muralha. As ameias eram alternadas entre as grandes, que podiam esconder quase que um homem em pé inteiro dentro delas, e as pequenas e destruídas, que estavam em numero muito maior.
Jethro correu por ali e viu flechas vindo em sua direção da torre ao interior do castelo, e uma escada com quatro guerreiros ser derrubada por dois Ravatenes feridos. Um terceiro havia visto Jethro se aproximando e arremessou uma pedra nele.
“Que tipo de gente arremessa uma pedra no meio de uma guerra?” – Pensou, enquanto matava-o. Os outros dois vieram, um deles tendo a sorte de enfiar uma faca na abertura da proteção do ombro da armadura de Jethro, enquanto o outro desviava de um golpe errado de Meretriz.
Não teve tanta sorte o próximo, que foi cortado de orelha a orelha, e Jethro matou seu companheiro praticamente ao mesmo tempo, empurrando-o com o ombro em que a faca estava enviada para baixo.
Jethro pegou fôlego por um momento. Seu coração batia mais rápido do que ele acreditava ser possível, e tinha uma percepção absurda do campo de batalha.
Não precisou ver para saber.
Atrás de si, os homens da Sagrada Incursão já tomavam as muralhas de assalto, avançando cada vez mais através da ponte que conectava com a maquina de cerco. Na sua direita, da parte interior do forte, arqueiros em uma torre miravam nele e nos seus companheiros. E a frente, onde ficava seu objetivo.. uma guarita que marcava o encontro de duas das quatro muralhas do Forte, e dentro dela dois arqueiros se escondiam, atrás de quinze Ravatenes. Outros poucos lutavam lá embaixo, na parte de fora, mas lá a batalha já estava decidida.
Jethro avançou. Sentiu a mira sobre si e uma flecha estourou em seu peito com tanta força que quase perdeu o fôlego, mas não foi para trás. Viu outros vindo consigo, homens da Sagrada Incursão, Terdal em sua fúria com o machado e vários outros atrás de si.
Da outra flecha conseguiu desviar, ziguezagueando conforme avançava. Um homem passou por si, avançando na frente com um grande escudo de metal, e se engajou num confronto contra vários, usando sua pesada armadura como vantagem e assegurando a posição para o avanço dos outros. Mais uma flecha passo zunindo ao seu lado, e ele conseguiu senti-la batendo no elmo que usava.
Passou correndo e deixou a lâmina beijar a lateral de dois homens, mas não lhes deu atenção. Preferiu deixá-los para os outros guerreiros, e invadiu a guarita.
Lá dentro, defendeu um golpe com sua espada, e mais outros dois. Era um homem barbudo e forte, e ambas as lâminas se enfrentaram no ar.. Jethro não sabia quem era mais forte, mas quando viu na sua esquerda um dos arqueiros mirando uma flecha, jogou-se para o lado, e ela acertou o Ravatene sem querer.
Foi rolando até os pés do outro arqueiro e levantou-se o cortando de baixo pra cima, separando até mesmo o arco no processo.
O Ravatene grandalhão que havia levado a flecha não pareceu se importar, e avançou na direção de Jethro gritando e urrando, uma fúria digna das lendas sobre aquele povo.
As lâminas voltaram a se encontrar e num momento de descuido, a mão esquerda coberta de sangue fez escorrer Meretriz, que cedeu em sua mão e, embora não tenha caído, deixou passar o golpe da pesada espada do oponente.
Jethro jogou-se contra a parede, mas não rápido o suficiente. O golpe rasgou seu gibão de ferro e ele sentiu um impacto ali que o fez trincar os dentes de dor.
O outro arqueiro ainda vivo havia colocado o arco de lado e pego um machado do chão, o qual agora empunhava com duas mãos e atacava Jethro pela direita. Com uma só mão, ele foi capaz de empurrar o golpe do homem, mas o grandalhão com a espada já retornava para mais um.
Dessa vez, a espada acertou no ombro, no mesmo local em que uma faca havia sido perfurada. A armadura ali também foi estraçalhada, e a espada fincou na carne.
Jethro sorriu. Pôde ver pelo olhar do Ravatene que ele havia afundado a própria espada ali, e antes que pudesse tirar, caiu perante a Meretriz empunhada com uma só mão contra seu coração desprotegido.
O outro homem, com machado, já vinha com tudo, mas Jethro era rápido demais para ele. Uma jogada de corpo para trás e outro golpe com uma só mão cortou seu oponente. Ele resistiu, e tentou golpear com o machado mais uma vez, mas foi cortado novamente, dessa vez a lâmina descendo do seu ombro até o tórax.
Jethro encostou-se contra a parede, cuspiu sangue e fez força para respirar.
Na abertura a sua esquerda, os homens lutavam na muralha. Na sua direita, a que levaria até a entrada da torre onde estavam os arqueiros.
Ele via sangue demais pingando de si, e não sabia o quanto dele era seu. A mão direita segurava firmemente a espada, que parecia pesar mais do que nunca, e o braço esquerdo inteiro parecia não querer mais ouvir suas ordens.
Ali, encostado, ele esperou.
Alguém sempre vinha.
E alguém veio. Da abertura na direita, um homem correndo passou reto por Jethro. Ele segurava um escudo de madeira e uma espada boa demais para ser sua.
Jethro passou o braço por volta dele e cortou sua garganta.
Encostou o ombro na parede enquanto deixava o corpo escorrer para baixo, e olhou para frente. Mais deles vinham, empunhando lanças, machados, espadas e clavas.
Forçou-se a ficar de pé ereto e, sorrindo alucinadamente, gritou para eles:
“VENHAM, FILHOS DE UMA SÓ MÃE E MUITOS PAIS!! VENHAM CONHECER A DAMA QUE VAI LHES TRAZER A MORTE.. VENHAM SENTIR O AMARGO GOSTO DO BEIJO DA MINHA ESPADA!”
Sangue e cuspe jorraram enquanto gritava, mas não importava.
Pelo Devorador, como adorava aquilo.
Não queria que acabasse nunca.
10: espólios
“Estavam todos nas muralhas. Você acredita numa merda dessas? Invadimos a porcaria, derrubamos os arqueiros da torre e quando entramos dentro do Forte, não tinha ninguém... além das mulheres, é claro. Que coisa feia, elas.” – Comentava o jovem Ivos, enquanto ajudava a derrubar os corpos do topo da muralha e jogá-los na pilha lá embaixo.
“São uns loucos, esses Ravas.. Não se importam com suas vidas, adoram seus deuses bastardos e se enfiam em qualquer buraco...só pra morrer nele.” – Respondia outro homem, que também arrastava os cadáveres e limpava o chão, mas parou para afastar um corvo que havia pousado em cima dos mortos e ameaçava bicar seus olhos.
Jethro passou por eles, e ambos o cumprimentaram com sorrisos e leves tapas nas costas. Estava com boa parte do corpo completamente enfaixada, só conseguia andar com a ajuda de uma muleta de madeira que havia sido improvisada com pedaços de lanças ravatene, e cada parte do seu corpo que ele ainda conseguia sentir doía, embora não tanto quanto o braço imobilizado.
“O Bom Deus ficou agraciado com tua habilidade! Que bela luta!” – Gritou outro mais ao fundo.
Agora era sempre assim. Ao menos entre os homens que haviam lutado na linha de frente, Jethro era um herói. Havia matado incontáveis oponentes quando avançara nas muralhas, e tombara exausto apenas quando a torre havia sido tomada e o ultimo oponente derrotado.
Seguiu caminhando vagarosamente entre o fedor e as moscas, tomando cuidado com os mortos e o sangue, enquanto outros despiam seus poucos pertences e recolhiam-nos. Ele próprio havia feito alguns daqueles cadáveres, mas não conseguia se lembrar dos rostos de seus inimigos. No máximo, o quão bem havia se sentido ao matá-los, mas agora mesmo isso não passava de uma noção distante e quase que ilusória. Agora, só tinha a dor, a fadiga.
Geralmente, as combateria com a bebida e a comemoração, mas as coisas pareciam ser diferentes na Sagrada Incursão, e eles celebravam com ritos, cânticos, rezas e palavras vazias.
Era um dia nublado quando o Alto Sacerdote Sironno discursou, e Jethro ainda estava de cama, mais morto do que vivo, quando a voz dele o acordou pela janela.
“A chuva virá em breve para purificar Parvaza. O Bom deus nos garantiu a vitória, e os pecados e a sujeira desse lugar serão escorridos com a água.”
“Não, seu padre estúpido.” – Pensava Jethro, deitado e com os dentes trincando de dor, desejando mais do que qualquer coisa não ter seu sono perturbado. – “A vida de muita gente é que garantiu, enquanto você se escondia em sua tenda.” Havia algo na voz do Alto Sacerdote que o irritava, mais do que os murmúrios e gritos dos outros feridos que compartilhavam aquela ala consigo. Eles haviam lutado, mas o Alto Sacerdote estivera seguro durante toda a batalha, e apenas quando ela fora vencida é que dera as caras. Não parecia correto.
Pela contagem que ouvira, haviam perdido cerca de um terço de seus homens naquela batalha, além de uma boa quantidade de cavalos. Muitos outros ainda estavam feridos ou incapacitados. Do contingente original da Sagrada Incursão, menos da metade estava completamente apta ao combate.
Mas agora tinham aquelas muralhas do Forte Parvaza para se proteger.. as mesmas que não haviam servido muito para os Ravatenes, nem para Lorde Winsen Vincast antes deles, ou para as muitas outras famílias que tiveram domínio sobre o lugar ao longo dos anos.
E Jethro agora as atravessava, enquanto pensava sobre isso tudo. Havia ficado de cama por dias, mas finalmente sentira-se apto a caminhar, para longe dos gritos dos feridos e moribundos, e mesmo ali, entre os mortos e os espólios que ainda eram recolhidos pelos homens da Sagrada Incursão, já se sentia aliviado.
Mas não podia ficar ali mais tempo. Manter-se de pé era difícil, e a tontura que sentia podia tornar-se fatal, caso ele desse um passo em falso com a muleta e caísse para o lado, em uma das várias aberturas na muralha. Terminou seu breve passeio e entrou pela porta anexada na única torre ainda de pé no Forte Parvaza, a outra destruída muitas décadas antes dessa leva de ravatenes ter dominado o lugar.
Observou símbolos ravatenes pintados em tinta e sangue nas paredes enquanto descia. Runas antigas, símbolos, figuras rupestres e obscenidades estavam por todos os lados. Pôde identificar o que parecia a figura de um homem com uma mulher em cada extremidade do seu corpo, uma grande cabeça sendo atravessada por uma lança e a marca de uma mão marrom recente, talvez feita com esterco. Tomou cuidado com os muitos degraus, a dor aumentando a cada um deles, e por vezes parava para recuperar o fôlego ou esperar a tontura passar, mas eventualmente chegou ao interior da torre, agora usada para atender e abrigar os feridos.
“Está fora da cama, Fernsto Mata Muralha?” – Dizia Terdal. Ele estava ainda pior do que Jethro.
Durante a batalha, havia perdido três dedos da mão esquerda segurando a espada de um ravatene, recebido duas flechadas nas costas e inúmeros outros ferimentos. Agora, ataduras cobriam-no da cabeça aos pés.
Sentava imóvel e encolhido em uma cama de palha, e não parecia o mesmo homem que, com seu machado, tomara tantas vidas pouco tempo atrás. Mesmo assim, o grande homem não deixava de fazer brincadeiras e mostrar sorrisos, ainda que sem a mesma força que antes. Terdal insistia em tentar inventar apelidos para Jethro, mas não conseguia decidir-se entre nenhum deles.
“Precisava respirar um pouco lá fora.” – Respondeu Jethro. Na verdade, não agüentava os gemidos, rezas e gritos de dor dos homens daquele salão, que ficavam espalhados em camas improvisadas com pano e eram atendidos por meia dúzia de acólitos, vestindo robes cinzentos, beges e brancos com as marcas dos Bons Homens.
“O ar não deve estar muito agradável lá fora.. ainda não tiraram todos os corpos, pelo que sei.” – Disse Terdal, enquanto se acomodava na cama, seu rosto ficando vermelho enquanto ele segurava um gemido de dor.
“Melhor que aqui, mas ainda faltam alguns. Tem pouca gente apta para o trabalho. Ainda vão ter que esfregar bastante pras manchas de sangue saírem, e tem muitos corpos pra queimar e enterrar.”
“O Alto Sacerdote vai realizar ritos hoje à noite, pelo que sei. Vai queimar os corpos dos Ravatenes pra que sejam purificados pelo fogo e não sirvam de alimento para seus Deuses-Besta, e enterrar os nossos Bons que caíram. Vou ir prestar homenagem a eles, e se minhas pernas não me ajudarem, me arrasto até lá.”
Jethro forçou um sorriso e desconversou, mas naquela noite, quando todos foram para ouvir o Alto Sacerdote Sironno Debrize falar, como fazia toda noite, ele simplesmente subiu novamente as escadas e ficou no topo da torre, olhando as luzes da grande fogueira lá embaixo.
Observou ao longe durante todo o ritual. As chamas da grande fogueira subiam alto, e por vezes Jethro conseguia ouvir cânticos ou frases, quando elas eram repetidas pelos homens.
Era uma das partes ruins de fazer parte de um exército religioso. Qualquer coisa que acontecesse, antes ou depois de uma batalha, era necessário que um ritual fosse feito em nome do Bom Deus. Se venciam, era graças a ele. Se perdiam, era porque não haviam tido fé suficiente.
Podia ver lá embaixo uma grande figura iluminada pelo fogo, que deveria ser o mestre-de-armas Brasillo, coberto em ataduras e também com o braço imobilizado. Durante a luta, o grande homem havia bravamente tomado os portões de assalto. Eram pequenos e resistentes demais para que servissem como modo de entrada para os invasores, e com certeza qualquer um que o atravessasse estaria em desvantagem, com centenas de pedras, lanças e flechas apontadas em um só ponto, mas disso todos muito bem sabiam já fazia algum tempo.
O trabalho do ruivo era assegurar a posição até que as escadas e a torre de cerco chegassem, chamando a atenção dos arqueiros e evitando que gente saísse de dentro do Forte, e assim ele o fez. Quando os homens já começavam a subir, ele cavalgou para o flanco direito, indo acompanhar outros que rodeavam o perímetro ao redor do Forte. Até então, só havia levado duas flechadas das quais sua armadura o protegeu, e possuía outras seis encravadas no grande escudo.
Mas Jethro tinha visto que, quando o mestre-de-armas avançou por ali, caiu na mesma armadilha que os outros. Estacas haviam sido plantadas no chão, e aqueles que cavalgaram naquele lugar perderam suas montarias ou suas vidas. A desculpa é que batedores haviam visto homens a cavalo Ravatenes andando por ali sem problemas, e já tinham atestado que o terreno de frente para a entrada do Forte estava limpo, portanto jamais imaginaram que haveriam armadilhas. Fosse num exército Nyeberune, esses homens seriam punidos com chibatadas ou morte. Haveria de se esperar que tipo de punição seria aplicada, frente ao rígido Lorde Flertan de Inristann e o aparente coração-mole do Alto Sacerdote Sironno.
Mas por conta dessas estacas que ninguém nunca vira, Brasillo foi um dos muitos a ser pego de surpresa e desmontado. Para piorar, caiu em cima de uma ele próprio. Sua armadura evitou um ferimento fatal, mas ele teve que correr dos Ravatenes que vinham atrás de si a cavalo. Quando finalmente reagrupou seus homens, já estava com um dos braços quebrado e flechas enfeitavam sua armadura. Agora, vestia uma capa cinzenta de cerimônia e rezava pelos mortos frente à fogueira, provavelmente agradecendo por não ser um deles.
Lorde Flertan estava ao seu lado. Ele mal havia recebido golpes, mas isso se devia mais a sua guarda pessoal do que a habilidade própria, não que ele não a tivesse. O Lorde também cavalgara e fora vitima de estacas, mas continuara lutando, sem recuar, e seus homens protegeram-no. Era dito pelos homens de Irnistann que seu Lorde sempre fora um bravo e valoroso guerreiro, mas até agora nada havia sido feito para provar isso.
Seu filho também estava rezando. Para não dizer que estava intacto, uma faixa cobria sua testa, e outras sua mão direita. O Alto Sacerdote e o ravatene chamado de Convertido também estavam ali, mas ambos não participaram da batalha.
Jethro procurou por algum tempo até encontrar seus conhecidos. O arqueiro Elijah vestia sua costumeira capa verde-escura desbotada e observava tudo do final da multidão, aproveitando-se de sua altura. O grande Terdal, apoiado em muletas e bastante ferido, estava um pouco mais a frente, ao lado de alguns dos seus, que ao ajudavam a ficar de pé. O jovem Ivos, que parecia gostar menos ainda de estar na Sagrada Incursão do que Jethro, encontrava-se estranhamente na primeira fileira. Ou era ele, ou alguém muito parecido.
Havia outros que procurou também, jovens e velhos, homens que trocara algumas palavras ou compartilhara a fogueira e o alimento, homens que contavam histórias sobre seus locais de origem e reclamavam das mesmas coisas que outros, que riam e gritavam, rezavam e temiam, mas Jethro não os encontrara nem na sala dos feridos e nem ali. Provavelmente tinham morrido. Ele sabia que isso aconteceria, não deveria surpreender-se, sequer se importar.
Perder amigos tornara-se algo comum para ele, e ele não deveria ter feito nenhum em primeiro lugar. Eram em sua maioria camponeses, crentes, pessoas simples e sem grandes expectativas. Deveriam ser descartáveis, e caso se apegasse demais a eles, seria apenas mais difícil quando morressem ou ele finalmente debandasse.
Cansado de olhar para o fogo e para as pessoas, fechou os olhos e deitou no chão duro e frio de pedra no topo da torre. Todo o seu corpo doía, e ele contou os ferimentos que havia recebido na batalha.
Uma flecha havia entrado em seu braço esquerdo, quando atravessara seu escudo. Havia acertado pouco abaixo do pulso, e embora não tenha afundado por inteiro, deixou um buraco a ser tapado. Outra o acertou na cabeça, embora o elmo tenha o protegido da perfuração. Doía mesmo assim.
A ponta do nariz havia sido cortada por alguma coisa. Seria uma pequena cicatriz, e ele quase não sentia nada ali em relação ao resto do corpo, mas tomou nota dela também.
O pior estava no peito e no ombro esquerdo. O peito havia sido alvo de um golpe tão forte que havia feito uma abertura no gibão de ferro que vestia, o mesmo que também garantira sua vida. Ainda doía toda vez que respirava, mas tinha certeza que, sem ele, estaria morto.
“Ou talvez eu tivesse desviado do golpe se não fosse o peso de tanto metal sobre mim.” – Pensou. Resolveu que teria que decidir mais tarde.
No ombro, havia recebido uma facada na abertura da armadura. Como se não fosse ruim o suficiente, um golpe da mesma espada que abrira seu gibão de ferro no peito também o acertara ali, depois da facada. Ele lembrava-se de como a grande lâmina havia fincado no ferro e na sua carne, e de como havia usado isso para sua vantagem, mas não se lembrava de ter arrancado ela dali. O tinha feito, sabia disso, logo em seguida, mas havia sido sem que percebesse, em meio ao calor da batalha, entre uma morte e outra.
Agora, tudo o que sentia nesse braço e no ombro era dor. Não conseguia movê-lo, e qualquer tentativa despertava uma dor aguda e incessante, que parecia não ter fim.
Esperava que ao menos sarasse. Não importava se fosse ficar um mês ou um ano daquele jeito, queria que o braço voltasse a funcionar. Tudo o que tinha era a espada; que seria dele se não pudesse usá-la direito?
A mão que empunhava Meretriz era a direita – sempre fora – mas a esquerda era quase tão importante quanto, se tratando de uma espada bastarda. Conhecera um bravo guerreiro certa vez, que perdera o braço durante uma batalha e fora obrigado a aposentar-se. Não queria ter o mesmo fim.
Para distraí-lo de tais pensamentos aterrorizantes, abriu os olhos e observou o céu estrelado com atenção. Podia ver as constelações, e inclusive lembrava-se do nome de alguma delas, como o Velho Yuhrl havia lhe ensinado, tanto tempo atrás.
Estranho, fazia um bom tempo que não pensava naquele sábio e gentil senhor que ensinara-o a ler e o educara em muitos assuntos. Era uma das suas poucas memórias boas da infância que teve entre a nobreza de Nyeberum.
“São as presas do Devorador” – Dizia ele, apontando os dedos finos para as muitas estrelas que pareciam formar afiados dentes, quando conectadas entre si.
“E aquela?”
Três estrelas brilhavam lado a lado, mais forte do que quaisquer outras.
“Os Três Guerreiros. Lutaram tão bravamente que a eles foi ofertado um lugar ao céu.”
“E aquela?”
Com os dedos, ele mostrava as ligações que deveriam ser feitas para que a forma fosse compreendida.
“Uma figura curvada, apoiada em um cajado, com uma barba grande e pontuda. O Velho.”
“E aquela?”
“Essa é a Dama Estrelada. Tem inúmeros nomes, e alguns a chamam de Meretriz, como a espada de seu pai.” – Apontou Yuhrl, para a constelação mais bela que Jethro já havia visto; as formas eram quase que exatas, ao contrário dos ângulos forçados das outras constelações, que precisavam de bastante imaginação e conhecimento para que a eles fossem atribuídas formas. Só de olhar para essa, parecia que Jethro podia identificá-la por inteiro, e que ela era realmente os contornos de uma bela mulher formados pela luz das estrelas.
“O que é uma Meretriz?” – Perguntou, em sua inocência. Lembrar-se disso o fazia rir, mas até rir doía agora.
“É aquilo com que um homem pode contar em seu momento de necessidade.” – Respondera o Senhor Yuhrl, não sem verdade.
Mas desde que deixara Castelo Archonte, nunca mais vira aquela constelação.
“Até o céu é diferente nas Terras Altas de Nyeberum.” – Dissera-lhe alguém certa vez.
Ainda podia ver o Devorador, a Adaga, os Três Guerreiros, O Velho, a Mão, o Gigante e a Sereia, mas desde sua ida a Durdia, a Dama Estrelada havia sumido. Por vezes, perguntara a outros sobre isso, e uns diziam-no que não existia, outros poucos comentaram também já terem visto, sob outros nomes, e jamais a terem encontrado de novo, enquanto alguns poucos e sábios diziam que até mesmo as estrelas podem se apagar.
“Ora, alguém deve ter pagado por algum tempo com ela. Você acha que o Bom Deus não teria dinheiro suficiente para comprar uma puta por quanto tempo ele quiser? Prefiro que ele foda com ela do que com a gente.” – Dissera-lhe certa vez Vallon, o homem mais engraçado que já conhecera.
Caiu no sono enquanto lembrava de amigos e inimigos, companheiros e amores, vitórias e derrotas, fins e começos, nas terras ao norte que nunca mais visitaria.
Acordou no dia seguinte com um sorriso no rosto, que desapareceu a medida que percebia onde estava e como seu corpo doía.
“Não faz bem ficar dormindo no sereno, ainda mais ferido desse jeito.” – Surpreendeu-lhe Elijah, em seguida prontificando para ajudá-lo a se levantar.
“Turno de vigia?” – Perguntou Jethro, colocando-se de pé, a dor servindo para ajudá-lo a despertar.
“Isso. É melhor para um arqueiro ficar no topo de uma torre do que limpando restos de tripas e sangue das muralhas. Também não é muito do meu feitio fazer escolta o Alto Sacerdote por seus passeios no bosque, o Bom Deus que me perdoe, e muito menos cortar legumes na cozinha.”
“Vigia, então. Sei como é. Horas e horas de tédio, mas que tem seu valor.”
“Quem sabe quando você se recuperar dos ferimentos não possamos dividir um turno juntos. O Bom Deus sabe como são entediantes a maioria dos vigias.” – Disse Elijah, com um sorriso amigável. Jethro percebeu na hora que o homem estava tentando ser gentil. Será que acreditava que ele jamais se recuperaria dos ferimentos no braço?
“Quem sabe. Não duvide disso.”
“Hoje a noite haverá uma celebração pela vitória..” – Comentou Elijah, após um breve período de silêncio. “Uma celebração de verdade, eu digo. Palavras e canções servem para a alma, mas os homens clamam por carne e bebida. O Alto Sacerdote e Lorde Flertan nos agraciarão com isso. Alguns homens foram caçar javalis nas matas próximas, e os barris de vinho e cerveja finalmente serão abertos.”
Os malditos barris. Jethro passara algumas boas noites procurando por eles, quando ele próprio prestava turnos de vigia em acampamentos da Sagrada Incursão, no trajeto entre o Castelo de Lis e o Forte Parvaza.
Nunca os achara. Escondiam-nos muito bem, provavelmente atrás de uma das barracas bem guardadas.
A idéia de que poderia beber depois de tanto tempo fez com que um grande sorriso aparecesse em seu rosto.
“Que bom.” – Foi tudo o que conseguiu dizer, entre a dor e a alegria.
O dia demorou a passar. Tentou dormir na enfermaria, mas os gritos e a aflição não lhe ajudavam em nada.
Pediu aos acólitos por alguma coisa para aliviar as dores ou para adiantar o sono, mas eles lhe disseram que precisavam guardar para aqueles que realmente precisassem.
“Ao menos não estou tão mal assim.” – pensou, enquanto via muita gente à beira da morte espalhada pelo chão. O jovem acólito careca que sempre acompanhava o Alto Sacerdote Sironno passava, de moribundo em moribundo, rezando e tentando oferecer algum conforto, enquanto outros corriam de lá para cá, exaustos, carregando bacias de água quente, ataduras, linhas, agulhas e o que mais fosse necessário para tentar prolongar vidas e aliviar passagens.
“Sai! Sai daqui, moleque! Não quero que minhas preces sejam dadas por um pirralho!!! Me chamem um Bom Homem de verdade, não um garoto que mal aprendeu a limpar a bunda!!” – Gritou um homem, empurrando o garoto para longe assim que ele iniciara suas preces, ajoelhado. O pequeno acólito caiu no chão e outro o levou para longe. “Venha, Hourdes. Não chore.” – Dizia ele ao rapaz, enquanto se afastavam.
Jethro observou o moribundo; era um homem encorpado, sem camisa, com ataduras manchadas de sangue escuro cobrindo sua barriga. A perna direita estava inchada, deveria ter torcido ou quebrado, e uma grande mancha rocha cobria boa parte de seu rosto. Mais bandagens enfeitavam sua cabeça e cobriam a maior parte de seu cabelo, que saia por entre elas em tufos escuros.
“Dei minha vida pelo Bom Deus! É justo que eu receba minhas preces de um padre de verdade! Chamem Sironno aqui! Digam que em breve me vou! Digam que mereço perdão por meus pecados e que cante para mim sobre os Céus que verei!!” – Gritava ele, mas os acólitos estavam ocupados demais para lhe dar atenção.
“Fique quieto.” – Disse Jethro, e então o homem levantou um tanto o rosto para olhá-lo. Tinha olhos negros que enfeitavam a cara feia e ferida. A barba era recente e mal cuidada.
“Eu vou morrer! Mereço minhas preces finais!” – Gritou ele de volta. Sua respiração era pesada e inconstante, sua voz quase falhava entre uma palavra e outra. Em seu rosto, uma clara agonia e desespero pelo medo da morte.
“Devia ter deixado o garoto lhe dar. Agora, é bem capaz que morra sem elas.” – disse Jethro. Também sentia dor, mas ao menos não corria risco de vida. Mesmo assim, não conseguia deixar de se irritar com a gritaria e o desespero do homem.
“Não! Não vou ser enviado para os Céus por um garotinho! Eu quero um Bom Homem! Eu MEREÇO um Bom Homem!!”
O termo servia tanto para fiéis quanto para acólitos e membros da igreja, Jethro sabia, mas naquela situação não havia duvida de que o moribundo clamava por alguma autoridade religiosa e de forma alguma aceitaria que suas ultimas preces fossem dadas pelo garoto que servia ao Alto Sacerdote como um escudeiro serviria a um cavaleiro. Ainda assim, não conseguia deixar de ver a ironia na situação.
“Você vai morrer. Que diferença faz?”
O homem pareceu incrédulo e revoltado.
“Que.. Que diferença faz? E se o Bom Deus não me ver, porque a mim não foram dadas as preces corretas? E se eu não ganhar espaço em nenhum dos Céus, e acabar afundando no Inferno, minha alma servindo como alimento para o Devorador? Faz toda a diferença, seu idiota!” – Disse ele, com tanta fúria que, ao tentar levantar-se da cama, fez aumentar a mancha de sangue em sua barriga e começou a gemer e gritar de dor, enquanto caia deitado novamente.
Não adiantava discutir com ele. Raramente adiantava, com fiéis e moribundos. Jethro cobriu um dos ouvidos com uma mão, mas não conseguia mover o braço esquerdo para cobrir o outro, nem virar-se contra o chão.
Teve que agüentar o barulho por um bom tempo.
Viu o homem próximo a si finalmente ser atendido por um acólito bastante magro, com um rosto cansado e cabelos cor de avelã presos para trás, que rezou ao seu lado e lhe fez promessas a respeito de cada um dos céus que visitaria quando seu corpo se fosse, e assegurou-o de como reencontraria todos aqueles que um dia já amara.
“Ele se foi?” – Perguntou Jethro, após algum tempo de silêncio.
O acólito fez que sim com a cabeça. Ainda segurava a mão do moribundo, e olhava em seus olhos. Por mais acostumado que devesse estar com esse tipo de coisa, parecia carregar um grande pesar consigo. Fechou os olhos do homem com seus dedos, lavou as mãos em uma bacia de água quente em cima de um barril de madeira e tratou de limpar os ferimentos e trocar as ataduras de Jethro.
Deu-lhe água para beber e colocou uma tigela com sopa morna ao seu lado.
“Está melhorando?” – Perguntou Jethro.
“Está, mas você não deve fazer esforços, ou os pontos podem abrir. Tem que manter a área limpa também. Não deve dormir no pavilhão dos soldados ainda, o local é sujo demais e você pode infectar seu ferimento. Descanse, reze e o Bom Deus ouvirá suas preces.”
“E por que ele não ouviu as do homem que acabou de morrer?” – Pensou Jethro, mas manteve-se quieto e agradeceu ao acólito. Talvez tivesse atendido. Talvez aquele homem simples pedisse, em suas rezas, apenas por ultimas palavras de conforto, e as teve. Alguns homens sonhavam mais alto que outros.
Eventualmente, acabou conseguindo cair no sono. Acordou com um pulo, olhou pela janela e viu que a noite já havia começado a cair, pegou a muleta e apressadamente saiu dali apoiado nela.
Subir as escadas da torre que ligava o salão até a muralha era incrivelmente mais difícil do que descer, mas a promessa de bebida lhe dava forças. Viu um jovem homem de cabelos cor de palha e barba rela agachado, com um balde de madeira repleto de água, esfregando um pano sujo e molhado nas gravuras ravatenes da parede.
“Ivos?” – Perguntou Jethro. Havia visto o homem primeiro nas linhas de frente, depois recolhendo corpos da muralha, e agora ali. Parecia que ele tinha sempre o pior trabalho possível.
“Fernst! Não te vi na cerimônia! Está melhor?”
“Vou indo. É hoje que teremos bebida e comida, certo? Você não vai?”
“Vou, claro que vou. Só tenho que terminar de limpar essa porcaria.. Acho que alguém aqui não gosta de mim..”
Jethro pegou as direções de onde seria a celebração, saiu da torre e seguiu andando pelas muralhas. Agora, estavam quase que completamente limpas, exceto por algumas manchas de sangue que demorariam a sair.
Alguns homens com lanças vigiavam ela, mas fora isso parecia bastante vazia, do contrário das outras vezes que havia caminhado por ali.
Desceu pela escada interna e já foi vendo as fogueiras de médio porte e ouvindo o barulho dos homens, no pátio interno do Forte. Aproximou-se pelo chão de terra batida e grama espaça até que alguém o avistou e levantou os braços.
“Vejam lá quem vem! É Fernst!” – Gritou alguém que sequer conseguia identificar.
Outros olhavam e levantaram seus copos, cascos e canecas. A medida que se aproximava, uma roda humana formou-se ao seu redor, e foi cercado com palavras de apreço e toques gentis.
“Aí está o homem que matou quarenta Ravatenes sozinho!”
“Ele salvou minha vida lá em cima! Vai ter a melhor parte do meu javali!”
“Lutou feito um demônio. Que bom que está do nosso lado!”
“Tem que me ensinar alguns golpes, Fern. Tem sim!”
“Deixem o homem em paz!” – disse Elijah, se aproximando e afastando as pessoas. Trazia consigo um sorriso jovial no rosto, e ainda carregava em suas costas o longo arco que era quase tão grande quanto si. –
“Como está se sentindo?”
“Com sede.” – Disse Jethro, e logo recebeu um copo cheio na mão. Bebeu tudo num gole só.
Não era a melhor cerveja que já havia tomado, mas podia muito bem ser. Desceu como se fosse água, com gosto de alivio e vitória. Levantou o copo acima de si e gritou:
“MAIS!”
A noite passou como um relâmpago. Conversou com muitos homens sobre a batalha, e sentiu-se a principio um tanto envergonhado com o modo como o elogiavam, mas após algumas canecas, já estava contando de pé, ao redor de uma fogueira, usando a muleta como espada, sua história de como havia sido a invasão na muralha. Contou também sobre algumas outras batalhas das quais participara, e também ouviu histórias de Elijah sobre Irnistann e suas batalhas contra bandidos, sobre Brasillo, Terdal e muitos outros. Em certo momento, já tomados pela bebida, ele e alguns outros que falavam em voz alta sobre o quanto desgostavam dos vigilantes, que recrutavam homens via chantagem e ameaça, e que se metiam nos assuntos de todos sem a mínima educação. Resolveram, por idéia de Jethro, cobrir seus rostos com panos e irem até a tenda dos mesmos. Gritavam ofensas, mostraram suas bundas e saíram correndo.
Incrivelmente, ninguém morreu na brincadeira.
Ao longo da celebração, Lorde Flertan e seu filho apareceram brevemente, comeram e beberam com seus homens. O mestre-de-armas Brasillo esteve com eles a maior parte do tempo, e depois tratou de beber com os homens.
“Você bebe... demais.” – Disse ele a Jethro, com um sorriso bobo no rosto, pouco antes de cair com a cara numa mesa de madeira improvisada.
O sol já estava quase nascendo, e a maioria dos participantes da comemoração já havia se recolhido.
Restavam no pátio interno do Forte apenas aqueles que haviam desmaiado de tanto beber. Alguns em cima de cadeiras, bancos, mesas ou troncos, mas a maioria na grama. De pé, apenas Jethro e um outro, que conhecera naquela noite, mas não conseguia lembrar o nome.
Ele era alto, embora não tanto quanto Elijah. Tinha alguns poucos dentes faltando na frente da boca, e um bigode e cavanhaque cresciam escuros em seu rosto, contrariando seu cabelo ruivo, enrolado e curto que dominava o topo de sua cabeça um tanto achatada. Tinha um nariz de batata torto que já fora quebrado mais de uma vez, pela forma torta como se projetava, e por vezes cuspia quando falava. Mas era um homem forte e resistente, que bebia tanto quanto Jethro e sabia manter uma conversa, embora agora um não conseguisse ficar em pé sem se apoiar no outro.
“Sabe que seria bom agora, Ferns? “ – Ele pronunciava o falso nome pelo qual Jethro era conhecido na Sagrada Incursão de dum jeito engraçado. – “Uma mulher! O que você me diz, hein?”
“Com certeza! Uma bela dama de coxas grossas, cintura fina e seios fartos..” – Enquanto falava, sem perceber, olhava para cima e fazia com ambas as mãos as curvas femininas no ar. Quase caiu, mas a muleta e o novo amigo de alguma forma conseguiram mantê-lo de pé. – “Existe algum vilarejo ou estalagem por perto? Vamos cavalgar até lá! Agora!”
Tinha um sorriso no rosto desde que a noite começara, e sentia-se mais energético do que nunca, apesar do corpo ferido e desgastado. Agora, sequer lembrava-se do que era a dor que antes o atormentava tanto.
“Não temos nenhuma como essa deusa que você descreve, e nem vilarejo ou taverna nos arredores, que eu saiba.. Mas temos algumas coisas aqui no próprio Forte! Ravatenes! Não devem ser as coisas mais belas que o Bom Deus já colocou nessa terra, mas tendo dois buracos e não sendo um focinho de porco, já me serve!” – Retrucou o homem com o nariz de batata quebrado, rindo alto.
O homem levou Jethro em direção a construção dentro do Forte. Eles cambalearam pelo pátio entre canecas , restos e pessoas, por vezes tropeçando e perdendo o equilíbrio. Riam e xingavam quando isso acontecia, mas chegaram relativamente intactos até lá. Atravessaram as portas de madeira, e andaram pelo piso de pedra por algum tempo, o mundo girando ao seu redor.
Sem nem perceber como, Jethro se viu de frente para uma porta, com um guarda ao lado.
“Que querem aqui a essa hora?” – Dizia ele, a voz sonolenta e o olhar desconfiado. Usava um meio-elmo, um gibão de ferro sobre couro e segurava uma lança, mas não parecia nada ameaçador.
“Uma visita com as Ravas. Nada demais, nos dê licença, sim?” – Disse seu novo amigo, mostrando os dentes que faltavam com um sorriso.
“Vocês estão fedendo a bebida. Saiam daqui.”
Jethro já estava quase puxando sua espada, quando uma mão gentil tocou seu peito e o empurrou levemente para trás.
“Não seja assim rabugento, guarda. Não somos os primeiros a vir aqui.” – Disse ele, e jogou uma moeda em sua direção. O homem suspirou e abriu passagem para ambos.
Eles desceram por uma pequena escadaria escura, e um cheiro ruim precedeu a chegada nas masmorras. Elas eram pequenas, mal iluminadas e suas celas não possuíam grades. Ali, várias mulheres sujas e vestindo trapos dormiam encolhidas em cantos. Algumas levantaram e se colocaram contra as paredes quando eles entraram, outras apenas abriram grandes olhos arregalados, mas a maioria permaneceu no chão.
“Vamos pegar as mais bonitas e levar para o banho, lavar e fornicar.” – Dizia o homem ruivo, enquanto passava entre elas. Pegou uma pelo braço e deu uma boa olhada, e ela pareceu não gostar disso.
“Sai!” – Gritou ela, e se libertou, caindo para trás.
“Ei, ei, ei.. Não seja uma má garota, sua puta.” – Disse o homem, e avançou na direção dela.
Jethro estivera balançando a cabeça pelas masmorras, olhando para as mulheres a procura de uma que lhe agradasse, e demorou um tanto para perceber o que estava acontecendo, entre tanta bebida que havia enxugado, e o mundo que balançava ao seu redor.
“Elas não nos querem.” – Disse, colocando uma mão no ombro do outro. Sentiu-se idiota por não ter percebido aquilo antes.
“É claro que querem... perderam seus homens, só uma foda vai consolá-las agora. Veja só como essa daí vai gritar de alegria. Fique vendo!”
Mas não era nada daquilo. As Ravatenes eram as esposas, filhas e mães daqueles que haviam lutado na tomada do forte Parvaza, e não damas da vida, como as que encontrariam em bordéis dourados na Cidade da Prata ou em casarões de madeira da Cidade Baixa de Ticulis.
Essas mulheres não tinham escolha.
Estavam com medo e ódio, e não sem razão. Quantos da chamada Sagrada Incursão, os mesmos que haviam matado seus homens, não haviam ido até lá para tomá-las à força, entre a conquista do Forte Parvaza até então?
Jethro sentiu-se sóbrio por um momento. Terrivelmente sóbrio. A dor veio, com um gosto amargo na garganta, e nesse breve momento ele agarrou o homem pelo ombro, em um meio-abraço apertado, e puxou-o para perto de si. Encostou a boca perto do ouvido dele, e lhe disse, num tom pastoso e ameaçador:
“Não vai acontecer nenhum estupro hoje.”
A próxima coisa que lhe veio foi a voz de Lorde Flertan acordando-o no pátio.
Parecia um sonho, portanto ele não respondeu, apenas continuou a dormir. Sentiu um golpe pesado na barriga, e a forte dor fez com que abrisse os olhos.
Era de fato Lorde Flertan quem estava gritando consigo. O líder militar da Sagrada Incursão vestia sua capa marrom escura jogada para o lado esquerdo do ombro, e com o sol atrás de si, Jethro mal podia ver o rosto fechado do seu general.
Outros estavam ao seu redor, membros de sua guarda pessoal, e também seu filho.
“Levante, soldado!” – A voz de Lorde Flertan soava tão irritada quanto irritante, e doía aos ouvidos.
Jethro fez o melhor que pôde para se levantar. A cabeça doía demais, a visão era turva e bagunçava, ele sentia-se como se tivesse sido esmagado por uma carroça, e o braço esquerdo pulsava numa dor maior do que nunca, o que o deixava com vontade de gritar. Ainda assim, levantou-se. Não queria provocar aquele homem. Notou que estava no pátio.
“Essa celebração foi um desastre. Veja quantos homens sequer encontraram o caminho de seus alojamentos.”– Comentou ele com um homem ao seu lado, e então virou-se novamente para Jethro. – “Você está caindo aos pedaços. É uma vergonha para a Sagrada Incursão. Deveria estar na enfermaria, no mínimo. ”
“Pai. Esse é Fernst. O da muralha.” – Disse Ervan, seu filho, num tom apaziguador. Ele parecia uma miniatura do pai, apenas com cabelos mais compridos e com o rosto liso.
“O famoso Fernst? Não me parece nada digno das histórias que contam ao seu respeito.”
“Rogo seu perdão, Senhor, mas os soldados tendem a exagerar em suas histórias, ainda mais quando bebem e festejam.” – Respondeu Jethro. Deu tudo de si para falar a frase por inteiro, soar educado e agüentar a dor.
A mão direita apoiava-se numa grande mesa de madeira retangular, a qual no dia anterior havia servido para o banquete no gramado do pátio interno, mas aparentemente também feita de cama para ele e outros tantos.
Como havia chego ali, afinal?
Não importava. Estava frente a frente com o rígido comandante da Sagrada Incursão, e ocupado demais tentando não vomitar sobre ele. Se já tivera ressaca maior em vida, não lembrava.
“Existe verdade em suas palavras, soldado.” – Disse Lorde Flertan, e olhou-o por um breve momento, de cima a baixo, como Lordes costumavam fazer quando se deparavam com plebeus que de alguma forma os impressionavam. Então, seguiu adiante, dando ordens para que os homens já acordados fizessem o mesmo com os outros ainda caídos.
“Soem o maldito Chifre, se precisar!” – Foi a ultima coisa que Jethro ouviu falar antes do Lorde atravessar as grandes portas e entrar na parte coberta do Forte.
Algo havia ocorrido ali na noite anterior, embora ele não se lembrasse exatamente do quê. Um homem do qual não recordava direito, e mulheres. Poderia ter um sido um sonho?
“Você realmente está mal.” – Comentou a voz jovem de Lorde Ervan. Jethro não havia percebido que o filho não havia ido embora com o pai e os outros.
“Sim, Senhor.” – Disse ele, e caiu sentado na cadeira. Como odiava ter que tratar aqueles Lordes com cortesia, chamá-los de Senhor, se submeter a eles e fingir que eram melhores do que si apenas por terem um punhado de terras e títulos. Em Nyeberum a nobreza era ainda mais pomposa e exagerada do que em Durdia, mas lá Jethro havia aprendido a dar valor a um homem pelo que ele fazia e quem era, não por seus descendentes. E fosse como fosse, ele próprio era melhor nascido do que qualquer um daqueles nobres da Sagrada Incursão.
“Meu escudeiro me contou a respeito da sua invasão nas muralhas, mas muitas partes eu ouvi de outras pessoas. Você ajudou o mestre-de-armas quando os cavaleiros Ravatenes dançavam entre as estacas no chão e desmontavam os nossos, subiu correndo pela torre de cerco e foi um dos primeiros a se jogar contra os inimigos da muralha, avançou entre eles e enfrentou suas lanças em espaços apertados, derrubou arqueiros e tomou a torre, tudo isso numa só investida.”
Jethro não sabia o quanto disso era verdade, mas imaginava que não muito. Havia lutado ferozmente, acreditava, mas não tanto assim. O rapaz parecia animado, entretanto.
“Exageros, Senhor. Apenas fiz minha parte.” – Disse ele, secamente. Queria que o jovem Lorde fosse embora logo. Precisava vomitar, precisava de algo para a dor, precisava de descanso. Havia bebido demais, e seus ferimentos precisavam sarar.
“Mas lutou com armadura de segunda-mão, e prevaleceu onde muitos caíram. Os homens se sentiram inspirados por você. Foi apenas quando tomou as muralhas é que os nossos avançaram com coragem.”
“Os Ravatenes possuíam menos armaduras que nós.” – Retrucou, e deixou escapar um abafado gemido quando as pontadas no braço e no ombro esquerdo aumentaram.
“Isso é verdade, mas não tira seu mérito. Parece-me um homem inteligente, além de bravo, Fernst. Gostaria de conversar novamente com você, quando se sentir mais disposto. Vejo que ainda não se recuperou completamente dos ferimentos da batalha.”
“E talvez nunca me recupere.” – Pensou Jethro, amargamente. “Será um prazer, Lorde Ervan.” – Disse.
“Ordenarei aos acólitos para que dêem atenção especial para você.” – Dizia ele, com um sorriso. O rapaz era tão jovem quanto animado, e com certeza se sentia inspirado com todas aquelas histórias de glória e batalha. Jethro forçou um sorriso, e se surpreendeu quando Ervan sorriu de volta e lhe ofereceu a mão direita. – “Vamos, irei arranjar alguém para ajudá-lo a retornar para enfermaria.“
Um grito veio de dentro do salão do Forte.
As portas abriram num estrondo, e os homens da guarda pessoal de Lorde Flertan avançavam em passos rápidos, com as lanças empunhadas para frente. Atrás deles, meia dúzia de outros soldados seguia.
Os homens recém acordados do pátio viraram todos naquela direção e olharam assustados, assim como Jethro e Lorde Ervan.
O Senhor de Irnistann veio entre seus homens e tomou a dianteira, quase que correndo. Atrás de si, um dos seus carregava um corpo coberto por um lenço cinzento.
“CAPTUREM ESSE HOMEM! MANTENHAM-NO LONGE DO MEU FILHO!” – Gritava Lorde Flertan, a espada longa em punho, os olhos arregalados em ódio e raiva, apontando para o homem que conhecia como Fernst.
Todos os olhares do pátio foram para Jethro, que finalmente acordou de verdade. Apesar dos pensamentos confusos e da cabeça pesada, não demorou para perceber o que estava acontecendo.
Seu coração bateu mais forte, e o jovem Ervan parecia tão surpreso quanto si.
“O que é isso?” – Disse o rapaz, recuando alguns passos, sem entender, enquanto homens colocavam-se entre ele e Jethro. Poderia, se não estivesse tão machucado,ter usado o rapaz como refém. Mas agora não adiantava.
O mercenário – era isso que era, por mais que as vezes tentasse esquecer, fosse com a bebida ou com as mentiras que contava – levantou o braço direito em sinal de rendição. O esquerdo não se movia, mas esperava que com isso eles entendessem que não tinha intenção de lutar.
Não havia chance. Todo o contingente do Forte Parvaza agora estava contra si, cercando-o com pontas de lanças, espadas e acusações.
Suspirou. Sabia que acabaria assim quando descobrissem quem era.