O Mercenário e a Meretriz: Parte 3

Capítulo 7 parte 2:

Os próximos dias foram tensos no Castelo. Lorde Boras dera de bom grado liberdade para que aquele enorme mestre-de-armas de Lorde Flerdan recrutasse homens aptos no vilarejo de Lis, mas não ficou nada satisfeito quando soube que os Vigilantes estavam fazendo perguntas por aí.

“Eles batem nas portas de casas e anunciam estarem ali em nome do Bom Deus e do Arquiduque de Durdia, Senhor.” – Dizia Lusdor, preocupado. – “Quando suspeitam de algo, chegam até a forçar entrada.

Percorrem nossos poucos bordéis e estalagens e espancam as pessoas até que digam o que querem saber. Até agora, ninguém reclamou oficialmente deles, mas isso se deve ao fato de estarem assustados demais.”

“Eles me assustam também.” – Comentou Lorde Boras. Estava submerso em uma banheira morna, com apenas a cabeça e a barriga para fora, enquanto Lusdor esfregava o sabão em seu couro cabeludo. – “Você sabe como são os boatos. Eu matei meus pais. Eu matei meu irmão mais velho, e prendi o mais novo no topo da torre. Eu trago corpos para o castelo, fornico com eles e tento usá-lo para trazer.. como era mesmo o nome dela?”

“Fala da senhorita Irinne Harvas, senhor?”

“Isso. Irinne. Dizem que eu tento usar corpos para trazer Irinne de volta a vida. De onde tiram essa merda toda? Parece algo tirado de um livro de contos, como o Castelo Negro na Colina, Segredos do Conde ou a Balada do Mar Estóico.. mas camponeses não sabem ler.”

“Alguém pode ter contado oralmente essas histórias para eles, Lorde Boras.”

“Mesmo assim.. Sei que não sou o Senhor mais justo de Nyeberdia, que os impostos são altos e que coisas ruins já aconteceram nesse Castelo.. mas isso é muito exagero. Imagine se os Vigilantes levam a sério o que ouvem por aí.”

“É o trabalho deles, Senhor.. Mas com certeza não encontrarão nada além de boatos.”

“Sim” – Disse Lorde Boras, sem conseguir deixar de sorrir com o canto da boca. – “Nada além de boatos.”

Mais tarde, já seco e vestido, resolveu visitar o irmão. Fazia mais de um ano que havia visto-o pela ultima vez, embora ambos dormissem na mesma e única torre do Castelo de Lis. Rono ficava sempre na cobertura, uma construção pequena próxima ao aviário no topo da torre, transformada em quarto para ele. Possuía uma porta de madeira, alguns móveis e uma cama. Ele fazia suas necessidades em baldes que eram recolhidos por empregados e sua comida era sempre trazida por eles, embora ele comesse pouco e dividisse bastante com as aves.

O irmão mais novo de Lorde Boras estava sentado de costas em uma das ameias entre os vários merlões de um metro e meio que decoravam o topo da torre de Lis e, muito tempo atrás, serviam para que arqueiros Astartares pudessem atirar nos atacantes Krastin.

Agora, era o assento preferido do magro e esguio Lorde Rono Krastin, que estava ali, coberto com uma grande e pesada lona que o protege do vento, alimentando um pássaro cinzento apoiado em seu ombro com migalhas.

Seu cabelo era da mesma cor que a de seu irmão, mas não era cortado há muito. Descia em ondas até quase a sua cintura, e era sujo com diversas manchas brancas e escuras, as quais Lorde Boras só conseguiu atribuir ao cocô de pombos, corvos, águias, ou seja lá o que fosse que seu irmão estivesse criando e alimentando lá naqueles tempos.

“Rono. “ – Disse Boras, após entrar, fechar a porta atrás de si e aproximar-se do irmão. Podia sentir o vento forte e gelado lá em cima, e agradeceu por ter se vestido bem o suficiente para enfrentá-lo. Mas nada poderia prepará-lo para o cheiro do lugar, que parecia ainda pior do que da ultima vez, algo que ele considerara impossível. Cobriu o nariz com a perfumada e longa manga de seu grande casaco.

O irmão sequer olhou para trás, mas as aves perceberam perceber o homem, e ficaram agitadas. Dentro do grande aviário, que cobria dois terços do topo da torre, inúmeros pássaros grasnavam e batiam suas asas em resposta.

“Elas não gostam de você.” – Disse o irmão. Sua voz era grossa, mas o tom dela era infantil, como sempre fora. Rono Krastin parecia ter morrido no mesmo dia que sua mãe, e o que restava agora era apenas uma carcaça que envelhecia, enquanto sua mente não a acompanhava o resto do corpo.

“Eu também não gosto delas.” – Respondeu Boras. – “Mas elas ainda estão aqui, te entretendo, pois sou um bom irmão. Não vou incomodá-lo por muito tempo, só quero saber a respeito da visita do Alto Sacerdote..”

Aquelas palavras pareceram ter certo efeito em seu irmão, que parecia ter tomado um susto e espantou a ave em seu ombro sem querer. Ele olhou demorou mais alguns segundos até finalmente virar-se para trás.

Seus olhos azuis arregalados assustaram até mesmo Lorde Boras, que nunca havia visto o irmão daquele jeito. Ele sempre fora infantil e louco, mas de um modo quieto, calmo e de poucas palavras. Aquela expressão, fosse de susto, raiva ou ambos, ele nunca havia visto no rosto do irmão. Havia uma grande barba, também repleta de sujeira, pendendo de seu rosto.

“O que foi? Sobre o que vocês conversaram?”

Lorde Boras sabia que apenas o Alto Sacerdote havia visitado seu irmão, pois havia colocado um homem de guarda no ultimo andar da torre para ser informado sobre isso. Ele disse que nenhum vigilante havia ido até lá, mas o Alto Sacerdote subira, acompanhado apenas pelo seu jovem acólito, e ficara mais de uma hora lá em cima com Rono.

“Ele não é Alto. Não é Alto e não é Sacerdote. As aves não gostam dele, e eu não gosto dele.”

“Suas aves não gostam de ninguém.”

“Elas gostam de mim.”

“E só elas.” – Pensou Boras, mas segurou sua língua. “Sobre o que Sironno, dos Bons Homens, conversou com você?”

“Nada. Bons Homens? Por que não podemos ter Boas Aves também? Eu posso ser o Bom Deus delas, e vestir elas com pequenas capinhas, e fazer desse telhado o meu mundo, e escrever meu Livro Sagrado também, e ficar no meu quarto a maior parte do tempo.. e aí eu apareço pras aves, e posso matar um monte delas, mas só pra elas aprenderem algum tipo de lição.. não sei, preciso pensar nisso, mas o..”

“O que você está tentando esconder, Rono?” – Cortou Boras.

Ele conhecia seu irmão. Era o mesmo fazia vinte anos. Quando pequeno, sempre que pego numa mentira ou assunto desagradável, Rono tentava bruscamente desviar do assunto, e seguia falando até você sequer se lembrar do que estavam falando em primeiro lugar.

O irmão mais novo virou o rosto bruscamente e voltou a ficar de costas, encarando o céu. Boras se aproximou mais dele, e as aves pareceram ficar ainda mais agitavas. Ele deu uma breve olhada para ter certeza de que a porta do aviário estava trancada, e em seguida pegou um par de luvas preso na cinta. Não iria tocar no irmão sem elas, não com toda aquela sujeira. Boras não sabia que tipo de doenças poderiam se proliferar nas fezes dos pássaros.

“Vamos. Me diga.” - Ele insistia, colocando a mão no ombro do irmão, a principio com certo carinho, em seguida apertando com força. – “O que foi?”

“Você está me machucando.”

“E vou machucar ainda mais, se você não me falar o que aconteceu aqui em cima.”

“Pare com isso!” – Disse o irmão. Ele estava realmente alterado. Começou a chorar e soluçar, algo que Boras nunca o vira fazer. Rono, por mais louco que fosse, não era propenso a ataques desse tipo.

Conforme ele se contorcia e agachava, tentando evitar a mão que lhe apertava no ombro, Rono perdeu o equilíbrio e foi para frente. Por pouco não caiu, mas Boras colocou o braço ao redor de seu pescoço e puxou-o rapidamente, não sem um grande esforço.

“Você quase morreu, seu idiota!” – Gritava Boras, entre respiradas pesadas para recuperar o fôlego.

E enquanto seu irmão insistia em não responder, ele se perguntava se não teria sido melhor se o irmão morresse de uma vez.

Não era uma idéia exatamente má – por mais que Lorde Boras preocupasse-se em manter sua posição como Lorde do Castelo de Lis, o irmão não era uma ameaça grande o suficiente para que precisasse ser eliminado.. mas sua existência era algo triste. Talvez fosse melhor livrá-lo desse fardo. Mas apesar de tudo, era sangue do seu sangue. Por mais que Boras fosse propenso a certas perversidades, ainda mais quando bêbado ou irritado, jamais mataria seu irmão. Ele era um Krastin, ambos os últimos dessa família.

Olhando para Rono, encolhido entre o aviário e a ameia de pedra, chorando e soluçando, Boras resolveu que tentaria descobrir a verdade de outro jeito.

Agachou-se de frente ao irmão e afastou o cabelo de sua testa carinhosamente com a mão direita, enquanto abraçava-o com a esquerda.

“Vai ficar tudo bem, irmãozinho.” – Ele dizia, tentando soar carinhoso, algo que percebeu não saber fazer direito.

Rono, entretanto, aceitou o abraço e deixou a cabeça escorrer do ombro para o peito de Boras, e então para sua enorme barriga. Lá, descansou ela.

“É macio. Mas não vai.” – Disse ele, baixinho.

“Não vai o que?”

“Ficar tudo bem.”

“Claro que vai. Você só tem que me contar o que o homem disse.”

Tudo aquilo teria sido bem mais fácil caso o homem que tinha colocado na porta tivesse ouvido, mas o Alto Sacerdote requisitara palavras a sós com Rono.

“Ele... ele veio com o garoto. Queria rezar. Ele pediu para eu ajoelhar. Não gostei. Falei que eu era uma ave, e ele disse que eu era um homem. Mas ele não era. Ele era um Bom Homem, e queria que eu fosse também..”

“E você aceitou?” – Perguntou Boras, excitado com a idéia de que iria se livrar do irmão.

“Ele queria que eu tomasse banho, mas eu não queria. Ele mandou eu tirar a roupa, mas eu não tirei. Disse que eu estava sujo e precisava ser purificado pela água, mas eu não quis. E então..”

É claro que Rono precisava de um banho. Só de encostar sua cabeça nas roupas de Boras, ele sabia que jamais poderia usá-las novamente.

“E então o que?”

“E então ele fez o garoto que andava com ele me mostrar como se tomava um banho, mas eu disse que já sabia e que não ia tomar de jeito nenhum. Disse que meus pássaros estavam olhando, e que não estavam gostando. E disse que se ele não fosse embora, iria soltá-los neles.”

“Homem idiota. A ultima coisa que precisamos é arranjar problemas com o Alto Sacerdote!”

“Ele não ouviu! Ele insistiu mesmo assim! Segurou meus dois braços e disse que eu deveria rezar e pedir perdão! Mas os pássaros são meus amigos! Leopold veio voando e começou a bicar o careca até ele ir embora!”

Aquilo era o suficiente. Lorde Boras levantou-se e empurrou o irmão para o lado.

“Se isso me causar algum problema.. Mato todos os seus pássaros, um por um, e faço você comê-los. E depois mato você.” – Disse ele, e foi embora, enquanto Rono chorava e gritava.

Enquanto descia, pensou em quanto a história de seu irmão não fazia sentido. Era bem provável que as coisas não tivessem ocorrido daquela forma, mas algo havia ocorrido, e cabia a ele, como Senhor de Lis, pedir desculpas ao Alto Sacerdote.

Foi recebido por Sironno em seus aposentos. Podia ver um pequeno corte superficial em sua testa e outro, um pouco mais profundo, abaixo do olho esquerdo.

“As aves de seu irmão são bem treinadas. Devo pedir que nos conceda algumas para quando partirmos.” – Disse ele, com um sorriso amigável, e era tudo o que tinha a dizer sobre o assunto.

Em menos de uma semana, Lorde Flerdan, seu filho, seu mestre-de-armas, o Vigilante Artgammer e o Alto Sacerdote Sironno, além de todos os seus homens, já haviam partido. Tinham recrutado cerca de quarenta pessoas, entre jovens habitantes de Lis, homens do Castelo, serviçais e viajantes das estradas próximas. Seis homens haviam sido enforcados, com autorização de Lorde Boras, pelos Vigilantes. Eram escória do vilarejo e proximidades, e foram acusados de estarem envolvidos com cultos ilegais e profanação.

Lorde Boras observava aliviado enquanto iam embora. Estava novamente encostado na estreita janela de seu quarto na torre do Castelo de Lis, vestindo apenas um manto aberto. Mal os visitantes tinham ido embora, e ele já tinha chamado a mulher de seios fartos para lhe satisfazer na cama. Fora mais rápido do que de costume, já que não tinha ela e nem outra durante todo o tempo que o Alto Sacerdote esteve ali.

Lusdor chegou no quarto, novamente com uma bandeja de prata e um taça repleta de liquido verde-escuro.

“Gostaria do seu cachimbo, Senhor?”

Boras assentiu com a cabeça.

“No fim, esses Vigilantes mais ajudaram do que atrapalharam. Mataram alguns encrenqueiros e não me trouxeram grandes problemas.” – Disse ele, após dar um grande gole e acender o cachimbo.

“De fato, Senhor.”

“Eu temia que encontrassem as estátuas, mas estão bem escondidas.”

“Com certeza.. Mas, se me permite a sinceridade, não seriam alguns ídolos Ravatenes de ouro e prata dos quais você não conseguiu se livrar que iriam lhe trazer verdadeiros problemas.”

“Hmm. Então você sabe o que são? Estão nesse castelo faz gerações, e ninguém teve o bom senso de vendê-los.. Devem valer um bom dinheiro, porem. Estou entrando em contato com um comerciante de Lurania e um grupo de colecionadores da Cidade de Prata. Se meus enviados negociarem direito, estarão aqui antes da próxima segunda lua.”

“Eles são mais valiosos do que parecem.”

O tom de voz de Lusdor estava um tanto estranho. O jeito como falava não parecia mais tão educado e respeitoso quanto antes. Lorde Boras virou para trás e viu que o empregado estava com um largo sorriso no rosto.

“E o que você sabe sobre ídolos, estátuas e medalhões de séculos passados, Lusdor? Você é um serviçal de Trezamores que foi contratado para servir seus Lordes, não presumir coisas desse tipo.”

O sorriso do homem não se foi. Nos vinte anos com que Lorde Boras o conhecia, jamais o vira daquela maneira. Parecia diabólico. Instintivamente, fechou o manto sobre si e deu um passo adiante, mas Lusdor não lhe deixou passar. Pelo contrário, colocou uma mão, ainda que leve, em seu ombro.

“Venha. Você está cansado. Sente-se um pouco na cama.” – Disse ele, e o guiou até lá.

Lorde Boras sentia-se de fato cansado. Também, passara uma semana inteira com seu pequeno Castelo lotado de convidados desagradáveis. A Erva-de-Dullis no cachimbo também servia para deixá-lo com as pernas bambas. Sentou-se na cama e ouviu Lusdor falar.

“Seu pai morreu assim.” – As palavras do serviçal o atingiram como um golpe de espada. “Foi o mesmo veneno. Eu teria conseguido algo melhor para você, Boras, talvez um pouco de Felicidade, mas estamos longe de Trezamores, e tenho que usar o que posso.”

“O.. O que você está falando?”

Lorde Boras sentia o corpo cada vez mais mole e dormente. A voz de Lusdor lhe parecia vir aos ouvidos como se houvesse uma parede entre ambos. A própria cama parecia engoli-lo.

“Estou lhe contanto o que jamais lhe contaria. São os segredos que compartilhamos com aqueles que morrerão em breve. Posso lhe contar sobre toda e qualquer coisa, Boras, pois sua boca jamais se abrirá novamente. Posso contá-lo sobre como paguei moedas para que um dos Bons Homens arranjasse que seu irmão mais velho fosse morto em batalha, sobre como envenenei seu Pai com um cálice de vinho enquanto lhe consolava sobre a perda do filho, ou como um simples travesseiro deu cabo de sua mãe.. Mas não, acho que você não terá tempo para ouvir essas e outras histórias.. “

E Lorde Boras não conseguia mais falar. Queria pedir ajuda, mas sua boca entreaberta não seguia mais seus comandos, e o cachimbo já havia caído dela. Queria empurrar Lusdor e sair correndo dali, mas seus braços e pernas não mais se moviam. Ele estava tomado por um imenso terror, mas sequer podia gritar. Apenas seus olhos, arregalados, e seu coração batendo, ainda atestavam seu medo.

Lusdor empurrou-o para que deitasse na cama, e ele sequer sentiu a mão do traidor em seu peito.

“Não posso morrer assim.” – Pensou Boras.

O outrora serviçal sentou-se ao seu lado na cama.

“Você sempre foi um gordo mimado, com complexo de grandeza e acomodado demais, mas nunca foi um completo idiota. Diria que é o mais esperto da sua família, embora ninguém nunca tenha sido grande coisa, e seu atual único oponente seja aquele estúpido irmão.. Aliás, você sabe como eu o deixei assim? Estava testando certas combinações, poções e hipnoses.. Fiz com que o rapaz matasse a própria mãe enquanto ela dormia. Ele não deveria lembrar de nada, mas devo ter exagerado em alguma coisa. Estraguei o garoto para sempre, mas ele ainda servirá como bom objeto de estudo. Passei mais de 20 anos entre vocês, e jamais suspeitaram quem eu era.”

Lusdor não parava de sorrir.

“Você provavelmente está se perguntando quem eu sou, porque fiz isso e porque estive aqui durante tantos anos, não é mesmo? Pisque se for o caso.”

Lorde Boras piscou como nunca antes havia piscado. Era a única coisa que ainda conseguia fazer, embora não por muito tempo. Sentia-se como se estivesse prestes a cair num sono profundo, e tentava desesperadamente evitá-lo, sem sucesso.

“Vai morrer sem saber, gordo tolo. Mas a Torre Branca manda abraços.”

Torre Branca? Ele nunca tinha se envolvido com Kalvas, não havia motivo para nada daquilo, ainda mais vindo de Lusdor, fiel por tantos anos.. Mas não importava. Lorde Boras estava cansado demais. Seus olhos fecharam, e seu ultimo pensamento foi para o irmão.

8: parvaza

O Forte de Parvaza era a única construção ainda inteira entre as ruínas do que um dia já fora um proeminente castelo nas planícies ao leste de Lis. Na Guerra da Trindade, duzentos anos atrás, quando os reinos de Nyeberdia, Kalvas e Ravate se enfrentavam numa disputa sem fim pelas suas fronteiras, aquele local fora um dos muitos destruídos entre confrontos envolvendo as tropas Durdianas ao sul do rio Ibele com os bárbaros Ravatenes.

Ao longo dos anos, várias famílias escolhidas pelo Arquiduque de Durdia foram apontadas para comandá-lo, mas isso ficou apenas nos papéis. O Forte era distante, localizado em terras de pouca fertilidade, e até hoje alvo constante de ataques bárbaros e de bandoleiros. A proximidade com a Prisão dos Espinhos e vilas rebeldes também não ajudavam em nada em manter algum tipo de paz no local. Lorde Winsen, da família Vincast, fora poucos anos atrás indicado como o novo regente do Forte, tendo ele sido recentemente elevado à nobreza ao impressionar o Arquiduque de Durdia em um torneio. O homem reunira um numero decente de serviçais e homens de armas e fora então tomar o que lhe havia sido dado por direito.

E conseguira. O forte, em péssimas condições, não passava de um refugio para poucos e desorganizados bandidos que sucumbiram perante as lâminas e estratégias de Lorde Winsen e seus Durdianos. Ficara ele próprio famoso pelo feito, ao menos naquelas regiões esparsas.

Entretanto, a vida de Lorde Winsen como regente do Forte de Parvaza durou pouco. Pego de surpresa por um grande numero de rebeldes, foragidos e infiéis, foi tomado como refém enquanto caçava numa pequena floresta ao leste, forçado a abrir os portões de seu Forte e fatalmente executado quando os invasores tomaram-no.

Era a escória Ravatene que atravessava as fronteiras rumo a Nyeberdia, e se aproveitava de pequenos vilarejos e da falta de força militar de Ravate na proximidade de suas fronteiras com Durdia.

Protegido pelo acordo de paz entre os três reinos, os Ravatenes pareciam não se importar muito com o que acontecia por ali, e bandidos, bárbaros, rebeldes e todo o tipo de gente circulava de um lado para o outro, atacando as cidades e vilarejos e fugindo para dentro de território Ravatene quando perseguidas.

Havia sim uma prisão, a famosa Prisão dos Espinhos, uma das maiores construções Ravatenes, que capturava homens como esses, mas seus patrulheiros eram poucos e raramente iam muito além de seu perímetro.

“Esses homens são organizados.” – Dizia Lorde Flertan, aos seus soldados. Jethro havia prestado bastante atenção no que fora dito até então sobre o Forte de Parvaza, já que teria que lutar na linha de frente quando chegassem nele. – “Mas não possuem recursos. Suas armas são gastas, suas armaduras são escassas. Iremos massacrá-los, vingar Lorde Winsen e expurgar essa escória de nosso reino em nome do Bom Deus e da Sagrada Durdia.”

Os quase trezentos homens do exército da Sagrada Incursão ouviam seus líderes discursarem, e o Alto Sacerdote Sironno veio a seguir.

“Essas aberrações de pouca fé vindas de Ravate tentam propagar sua descrença e perversidade sobre nossas terras. Sâo enviados do próprio Devorador, e é nosso dever repeli-los. O Bom Deus está ao nosso lado e a vitória será garantida a todos. Aqueles que se uniram a nós aqui e agora nos acompanham nada tem a temer, enquanto aceitarem apenas o Bom Deus como único e verdadeiro.” – Disse, e então começou a recitar preces e cânticos com sua voz pastosa, aos quais Jethro não fez questão de prestar atenção. Atrás dele, um pequeno rapaz careca segurava o estandarte dos Bons Homens e ajudava com algumas músicas.

A tropa, cerca de duzentos e cinqüenta homens, saiu de Lis após os discursos e rumou em direção ao Forte de Parvaza, seguindo a estrada ao leste. Os batedores avançavam pela frente e retornavam de tempos em tempos com noticias para Lorde Flertin e seu filho, que cavalgavam na dianteira, com sua guarda pessoal. Alguns outros cavaleiros trotavam pelos flancos, entre eles meia dúzia de Vigilantes com suas capas azuladas, cobrindo os muitos homens de armas, camponeses e soldados a pé. Por fim, os arqueiros, estes cerca de sessenta do numero total de homens na Sagrada Incursão.

Era um contingente pequeno, mas a campanha fora iniciada há apenas quatro quinzenas, como Jethro acabou descobrindo. O Alto Sacerdote Sironno havia ficado como hóspede em Ramvasia durante um bom tempo, até que finalmente Lorde Flerdan, o Vigilante Artgammer e ambos os seus homens atendessem ao chamado. Eles próprios contavam com poucos soldados, sendo Lorde Flerdan um pequeno senhor de vilarejos ao rio e da pequena Irnistann, e os Vigilantes sempre poucos e raros, ainda mais tão ao sul de Durdia.

Essa não era, entretanto, o único exército da Sagrada Incursão naquela região, Jethro também soube. Havia outros, enormes, estes em campanha mais ao sul. Alguns enfrentavam os Lunáticos da Cidade da Lua ao sudeste, outros caçavam os Druidas do Pântano, que pregavam seus ensinamentos sobre criaturas das profundezas, estas as quais Jethro havia visto com os próprios olhos, e já não chegava mais a duvidar. Existia também um grupo, o maior deles, comandado pelo famoso Lorde Sartash de Ramvas, que repelia as hordas de prisioneiros em fuga da própria Prisão dos Espinhos.

Talvez não estivesse tão ruim assim. Estava, afinal, no grupo que menos riscos correria, e que mais longe de Ravate ficaria. Além de tudo, aquela Incursão não estava se distanciando tanto assim de Trezamores, e talvez pudesse abandoná-los em breve. Dependendo da situação da batalha, haveria a chance de debandar no meio dela, mas ele duvidava que isso acontecesse. Sabia como eram tratados desertores, e não tinha conhecimento geográfico da região, além do fato de lutar entre os homens a pé nessa investida.

Ao menos, seus ferimentos estavam tratados e sarando, e ninguém havia dado atenção para sua espada, a qual aprendera a esconder melhor e cobrir o cabo com panos. Podia ser um fugitivo, mas agora fazia parte de um exército do próprio reino do qual fugia, e ninguém fazia idéia de quem ele era. O próprio Vigilante que o havia recrutado, por mais que fosse desconfiado, não teria como imaginar que Jethro era um assassino e fora-da-lei procurado em Durdia e Nyeberum. Por mais que as regiões ao sul do rio Ibele fizessem parte do Reino de Nyeberdia no papel, a verdade é que a presença militar ali era apenas religiosa, a região era gigantesca, dividida entre baronatos de lealdade duvidosa e contingente algum seria mobilizado para caçar apenas um homem.

Jethro caminhou com seus novos colegas durante o dia inteiro com esse pensamento sendo seu único alivio. Estava cercado por homens de todos os tipos, carregando machados, lanças, clavas foices, espadas e facões. A maioria vestia gibões de couro, embora pudesse ver alguns poucos com túnicas de anéis e outros, estes ainda mais raros, com armaduras de placas gastas.

Ele próprio usava uma armadura de couro, partes de sua antiga misturadas com partes que havia conseguido com o mestre-de-armas de Lorde Flertan, além de um grande escudo de madeira que agora mantinha preso nas costas.

Por um lado, achava que estaria mais seguro com metal cobrindo seu corpo, em uma invasão daquelas que fariam ao Forte Parvaza. Por outro, já fazia muito tempo desde que não carregava outro metal em seu corpo se não o de sua própria espada, e temia que isso o deixasse lento demais. Pretendia, mesmo na linha de frente, conseguir alguma posição de vantagem, que fosse segura o suficiente, mas que lhe desse chance de participar da matança.

Não podia negar, seu coração batia mais forte. A idéia de um confronto o excitava, e ele se lembrava dos que participara nas Terras Altas de Nyeberum.. Em Castelo Archonte, era ele quem defendia o lugar, com arco, lança e fogo, de inimigos em numero muito superior. Aqui, ele estaria fazendo parte do ataque.

Tocou o cabo de sua Meretriz levemente enquanto pensava nisso. Ela era sua, só sua, e hoje daria seu beijo fatal em muitos homens, se o Deus fosse realmente Bom e Jethro fosse ainda o mesmo guerreiro que fora antes de cair em desgraça e ser obrigado a fugir para Durdia.

Naquela noite, quando os homens acamparam em uma planície elevada ao lado da estrada, compartilhou da fogueira dos outros soldados e comeu carne com eles. O vinho e a cerveja, como ficou sabendo posteriormente, seria liberados apenas depois da vitória.

“Não me serve! Eu luto melhor depois de um trago!” – Dizia Terdal, um homem barbudo bastante alto, encorpado e troncudo, sentado em uma pedra e com os braços apoiados no cabo grosso de madeira de seu machado.

“É mesmo? Cacete, então quem sabe eu lhe consiga um barril de cerveja e você consegue me matar uns dois Ravatenes antes de desabar!” – Dizia Brasillo, que fazia o homem ao seu lado parecer pequeno comparado a si. Ao contrário de seu Lorde Flertan, que permanecia sempre em sua tenda particular e só aparecia de vez em quando para as tropas, o mestre-de-armas gostava de passar algum tempo com seus soldados.

“Ora, pois eu aposto que derrubo mais do que você!” – Retrucou Terdal.

“E eu que vocês dois juntos.”

Era um homem jovem que passava por ali e escutara a conversa,com rosto fino e roupas leves por baixo de uma capa verde escura. Uma fita de couro gasto cruzava seu peito e segurava o alvaja vazio em sua cintura, enquanto um arco longo de madeira ficava preso na parte de trás e conseguia ser quase tão grande quanto seu portador.

“Hahaha, garoto! Troque de lugar comigo, então! Vá você para a dianteira, tomando flecha e lança enquanto tenta avançar, e eu fico atrás atirando com seu arco!”

“Ah, senhor Terdal. Ambos sabemos que você não conseguiria acertar nem o buraco entre as pernas de uma mulher que já pariu mamutes em um dia claro.”

O homem se irritou e jogou uma pedra no rapaz, que desviou com uma cortesia e foi embora a passos rápidos, rindo.

Todos ao redor da fogueira gargalharam e continuaram a conversar, mas Jethro observou o arqueiro por algum tempo.

Percebeu que ele pegava flechas de um cesto e fincava-as no chão, provavelmente para deixar suas pontas sujas e infectar as feridas dos inimigos. Ele era o único fazendo isso, já que esse tipo de coisa não devia ser muito bem vista por um exército que deveria ser Sagrado.

Mas o que tinha de Sagrado naqueles homens? Talvez Lorde Flertan e seu filho fossem de sangue nobre, e os Vigilantes, assim como o Alto Sacerdote, fossem de fato conhecidos por serem fiéis aos preceitos da Palavra do Bom Deus, soubessem a Canção da Criação de cor e caçassem hereges, infiéis e bruxeiros por toda Nyeberdia... mas o resto dos homens, aqueles que agora riam, xingavam, comiam e discutiam ao redor de fogueiras como a que Jethro estavas eram como qualquer outro soldado, em qualquer outro exército. A maioria sequer tinha participado de uma batalha de verdade, e muitos ali iriam morrer durante a que viria a ocorrer em Forte Parvaza. Era assim que as coisas eram, e não havia sentido se lamentar por isso, mas ainda assim Jethro não conseguiu deixar de sentir certa compaixão por eles.

Pareciam muito com seus antigos amigos na Companhia dos Desocupados. Ao menos, iriam apenas enfrentar um bando de rebeldes estúpidos Ravatenes que cultuavam deuses de um panteão sombrio e animalesco, e não todo o poderio militar de um reino, como havia sido com seus colegas.

Dormiu em uma tenda apertada, numa noite quente que não fez nada para ajudar com o mal cheiro daqueles soldados com quem a dividia. Lembrou-se brevemente da Jagunça dos Mares, e agradeceu por não ter que enfrentar balanço das ondas também. Pegou no sono enquanto pensava se não haveria um lugar melhor, lá fora, para dormir.

Os homens foram acordados cedo no dia seguinte, com gritos e empurrões do mestre-de-armas Brasillo, que dividiu os soldados em dois grupos. Enquanto um treinava, o outro recolhia o acampamento, e depois trocaram de lugar. Na metade da manhã, seguiram marchando pela estrada.

O céu estava nublado e um vento moderado vindo nordeste os impulsionava para frente.

“O Alto Sacerdote diz que essa é a mão do próprio Bom Deus nos empurrando adiante, para cumprir seus desígnios.” – Comentou um homem magro de vestimentas humildes, o qual Jethro imaginou ter sido outrora um camponês. Ele carregava uma grande lança de madeira com ponta de ferro, assim como vários outros que marchavam em frente ao pelotão de arqueiros.

“Tomara que não nos envie uma chuva também, embora muitos aqui precisem dum banho.” – Retrucou outro ao seu lado, um jovem magro de cabelos claros.

Metade deles possuía, além da lança, um escudo de madeira, pintado em preto e dourado, com o símbolo dos Bons Homens, mas menos de um terço possuía algum tipo de armadura, geralmente elas sendo de couro com pedaços de metal avulso.

Aqueles quase oitenta homens que marchavam espalhados ao redor dos arqueiros numa formação retangular eram bucha-de-canhão, e Jethro fazia parte deles. Ele próprio carregava uma lança e mantinha um escudo nas costas, mas caso um combate fosse ocorrer naquela estrada, ele jogaria aquilo fora e contaria apenas com sua Meretriz, a qual mantinha meio-escondida embaixo da capa.

Brasillo ficava a cavalo cuidando da retaguarda. Atrás do pelotão de arqueiros e do grupo que fazia sua segurança, ficavam os guerreiros do mestre-de-armas; homens cobertos em armaduras de anéis e placas, com escudos pesados, lanças e espadas. Jethro já vira muitos exércitos em vida, e sabia dizer que, mesmo estando muito melhores do que os camponeses, fazendeiros e fiéis que andavam a pé, aqueles homens não estavam tão bem protegidos assim. Seus cavalos não eram puro-sangue, suas armaduras eram comuns e de ferro barato, vez ou outra faltando uma parte, que era substituída da melhor forma possível, por vezes com couro.

Com eles, havia também um pequeno grupo de batedores, cerca de meia dúzia deles, comandados pelo Vigilante de cara quadrada Jirgo, o mesmo que havia capturado Jethro na estrada que passava por Lis e o colocado a mercê do exército da Sagrada Incursão. Ele e seus homens iam e voltavam pelo caminho, andavam pelos lados e por vezes sumiam além da visão por trás de uma colina ou planície, mas sempre voltavam sem muito tardar com noticias.

Acima das cabeças dos homens do seu pelotão, Jethro podia ver inúmeras outras lanças, assim como o estandarte marrom e negro de Lorde Flerdan de Irsnistann, o azul e prata dos Vigilantes, e o dourado, negro e branco dos Bons Homens.

O Alto Sacerdote Sironno Debrize viajava dentro de uma grande carruagem coberta com uma tenda dourada, puxada por quatro cavalos, trinta cabeças de onde Jethro estava. Ao redor dele, pela altura das lanças e do estandarte, pelo menos vinte cavaleiros.

Mais a frente, como sabia, havia outro grupo de camponeses mal equipados, embora soubesse que lá a proteção era melhor, por estarem na dianteira.

“Temos elmos de ferro e espadas de aço também.” – Comentara Terdal, que fazia parte deles, ao redor da fogueira, na noite anterior. – “É claro, estamos na Sagrada Incursão desde Ramvas, portanto pegamos os melhores equipamentos primeiro.”

“Mas é realmente triste a situação do exército como um todo.” – Dizia o gigantesco mestre-de-armas Brasillo. – “Ramvas não pôde nos fornecer equipamento suficiente, porque já haviam passado quatro outras Incursões por ali nas ultimas dez luas, e o próprio Lorde Flertan não levou mais que oitenta homens. Nós não temos como trazer muita gente de Irnistann; a maioria de nossos guerreiros ou luta contra os bandoleiros do rio ou já foi recrutada anteriormente. Esperamos que após retomar esse Forte Parvaza, consigamos nos armar melhor em Jerro.”

“Por que não vamos pra Jerro primeiro, e depois atacamos esse maldito Forte?” – Perguntou Ivos, um jovem de não mais que vinte anos, com cabelos cor de palha e uma barba rela crescendo em seu rosto e pescoço. Era um dos homens que havia sido, assim como Jethro, recrutado em Lis. Fora algum dia um simples camponês do vilarejo guardado pelo Castelo de Lorde Boras, mas certas circunstancias fizeram com que entrasse no exército da Sagrada Incursão. Pelo modo como costumava agir, não estava satisfeito em estar ali, mas era esperto o suficiente para não falar isso em voz alta.

“Precisamos capturar aquele Forte enquanto está mal protegido, antes que mais hereges e rebeldes Ravatenes se reúnam lá. E quando derrubarmos eles, o Forte será nosso, um teto na cabeça de nossos soldados, rocha firme entre nós e nossos inimigos, e um posto avançado contra eles.”

Ivos e Terdal pareciam refletir sobre o assunto. O céu já havia escurecido fazia muito tempo, o fogo estava quase apagando e a maioria dos homens já havia ido dormir. Restavam apenas Jethro, Brasillo, esses dois e mais quatro.

“Já passou da hora de irem para as barracas.” – Disse o mestre-de-armas, se levantando, parecendo ainda mais alto com sua sombra se projetando longe pela luz da fogueira. – “Amanhã cedo a guerra começa de verdade.”

Mas agora já era quase final da tarde, e nenhum sinal de guerra. Jethro havia passado a maior parte do dia caminhando naquele ritmo cansativo, e sabia que continuaria assim por vários outros, até chegar ao Forte. Estava quase rezando para que algo acontecesse. Um ataque de Ravatenes, um grupo de cultistas demoníacos, uma vila de marisqueiros.. qualquer coisa.

Nada. Seguiram viagem pela estrada pelo resto do dia, e eventualmente montaram acampamento numa planície elevada, da qual podiam ter uma boa visão dos arredores.

“Mas eles também poderão ver nossas fogueiras.” – Comentou um cavaleiro que guardava os flancos, o qual Jethro ouviu por acaso, quando Brasillo lhe avisou das ordens de Lorde Flertan.

“Deixe que vejam.” – Disse ele. – “Deixe que saibam que estamos chegando. Que a fúria dos Bons Homens cairá sobre eles, e que rezem para seus deuses de ossos enquanto podem.”

Naquela noite, Jethro pediu para ficar com um dos turnos de vigília. “Eu monto bem, Senhor, e sou bem acostumado com a noite.” – Disse ele para o mestre-de-armas, quando finalmente encontrou a fogueira em que ele estava. Sabia que o mestre-de-armas não era o líder, mas era o segundo em comando e Lorde Flertan raramente era visto ou dava atenção para soldados desconhecidos, e era aquele homem quem de fato comandava a parte mais simples do exército e cuidava desse tipo de assuntos no lugar de seu Lorde.

“Pode ficar com o primeiro turno da noite. Mas será nos acampamentos, sem cavalo. Já temos batedores demais.” – Disse ele, e para Jethro pareceu como se quisesse dizer não confio em você o suficiente com um cavalo.

E estava certo ao fazê-lo.

Por um lado, não queria passar mais uma noite naquela tenda, mas pelo outro, se visse a oportunidade, poderia muito bem sair cavalgando. O problema é que, assim que percebesse que não tinha para onde ir, daria meia volta e retornaria ao acampamento. Trezamores teria que esperar, ao menos até que ele possuísse um mapa e recursos suficientes para a longa viagem.

Jethro ficou de vigília naquela noite. Patrulhou o acampamento, passando por várias tendas e fogueiras. Os homens de seu pelotão dormiam amontoados nas mais simples, mas conforme ele andava, podia ver que os cavaleiros, os batedores e os vigilantes possuíam tendas maiores, mais bonitas e menos lotadas.

A de Lorde Flertan e seu filho era grande, mas sem exageros. Dois homens de sua guarda pessoal, vestindo armaduras pesadas de aço e portando alabardas guardavam sua entrada, e observavam Jethro enquanto ele passava.

Era a do Alto Sacerdote que constituía em um verdadeiro exagero. Sua tenda era dourada e grandiosa, com uma entrada em cada lado, dois homens em cada. Era muito bem iluminada, mas nada podia ser visto lá dentro devido ao pano grosso e as cortinas colocadas na parte de dentro. Jethro passou por ela, que ficava um tanto mais distante das outras, e sentiu um cheiro doce vir de dentro.

Seguiu caminhando até a estrebaria, onde os vários cavalos ficavam presos, amarrados em largas estacas e protegidos por cercados improvisados. Havia um jovem limpando um deles, com um balde de água junto e um esfregão em mãos.

Dois homens guardavam o local, espalhados pelo seu perímetro, e um deles acenou para Jethro com a cabeça quando ele passou.

“Podia matá-los aqui mesmo, pegar um cavalo e ir embora.” – pensou. E realmente achou que conseguiria fazê-lo, embora sentisse que não deveria. “Preciso achar logo um mapa, e descobrir onde guardam a comida.”

Deixou suas ambições de fuga aquietarem e seguiu caminhando até o fim do acampamento. Embaixo da planície, podia ver um dos batedores circulando a área ao sudoeste, e outro retornando pelo nordeste.

Pronto. Havia patrulhado o maldito acampamento, e devia dar meia volta e percorrê-lo de novo por inteiro. Tinha esperanças de encontrar um local escondido para dormir, mas até agora nada. Iria continuar tentando, porem. Deu as costas e voltou, dessa vez circulando pelo lado oposto pelo que havia vindo. Estava quase na metade do caminho quando ouviu o barulho de uma flecha.

Por instinto, agachou de imediato. Estava quase puxando sua espada quando ouviu o barulho de outra, e ele percebeu que vinha de longe, e era interrompido logo em seguida.

Olhou ao redor por algum tempo, brandindo a tocha para os lados. Fazer isso não seria uma boa idéia caso estivesse sendo o alvo, mas sabia que não era o caso. Alguém estava praticando.

Foi seguindo alguns metros para a esquerda, mais longe do acampamento, até que viu, lá embaixo, uma figura na escuridão. O barulho vinha dele, e logo em seguida parava. Não conseguia ver o que era, mas as flechas acertavam em algo na escuridão distante.

Jethro desceu para ver melhor. O homem atirava repetidamente, mas parou com uma flecha ainda no arco quando percebeu que alguém vinha atrás de si.

A luz da tocha de Jethro pareceu incomodar seus olhos, e ele cobriu-os com o braço.

“Salve, vigia.” – Disse ele, com um sorriso. Era um dos arqueiros; Jethro já havia visto-o pelo acampamento em outras ocasiões. Ele era jovem, alto, magro e seu longo cabelo castanho ficava amarrado em um rabo de cavalo. Poucos pelos cresciam em seu rosto, e quase formavam um cavanhaque.

“O que faz aqui a essa hora, atirando num.. tronco?” – Jethro perguntou. Teve que andar alguns passos para frente para conseguir iluminar o alvo e ter certeza do que ele era. Haviam várias flechas encravadas nele.

“Tenho dificuldade em dormir.” – Admitiu o rapaz, não sem parecer se sentir um tanto culpado. – “E gosto de praticar. Não temos nada pra fazer mesmo.”

Ele sorria amigavelmente para Jethro, que não pode deixar de se identificar com o garoto. Era o mesmo que havia desafiado Brasillo e Terdal outro dia pela fogueira, e que enfiava as flechas no chão para infectarem. Faria o mesmo se fosse ele.

“Sei como é.” – Disse. – “É melhor atirar flechas no escuro do que dormir naquelas tendas. E você atira feito um filho da puta.” – Fora o melhor elogio que conseguiu pensar.

“Obrigado senhor.” – Disse o rapaz, parecendo realmente satisfeito com aquilo. – “Quer tentar?”

Fazia mais de dois anos que Jethro não segurava um arco, a ultima vez tendo sido ainda nas muralhas de Castelo Archonte, e sempre preferira o combate corpo-a-corpo, mas aceitou de qualquer forma.

O rapaz foi instruí-lo sobre como posicionar-se com o arco longo, que era quase de seu tamanho, mas Jethro negou. Ainda se lembrava de como fazia.

Abriu certa distância entre as pernas, colocando uma na frente da marcação feita no chão e outra atrás, posicionou-se firmemente, mas confortável, e manteve a cabeça e o corpo retos.

O rapaz deu uma flecha para ele, e Jethro a pôs corretamente no descanso do arco.

Ainda assim, não conseguia ver o alvo de onde estava.

“Como é que você vê o tronco?” – Ele perguntou.

“Eu não vejo. Digo, não muito bem. É difícil mesmo. Mas se não fosse, não seria um bom treino.” – Disse o garoto, com um meio sorriso. Estava de braços cruzados, observando Jethro pela direita há poucos metros.

“Ilumine-o mais uma vez pra mim.” – Disse Jethro, que havia fincado sua tocha no chão. O rapaz pegou-a e andou algum tempo reto, até que o alvo ficasse visível. Era um tronco de madeira de cerca de dois metros com várias flechas enfiadas.

“Não tem graça se você puder ver!” – Gritou ele ao longe, parecendo se divertir.

“Pode voltar.” – Respondeu Jethro, fixando a mira e o olhar no local onde estaria o tronco, agora completamente tomado pela escuridão.

A flecha saiu de seus dedos e voou reto, mas sumiu nas sombras. Nenhum barulho foi ouvido.

“Outra” – Disse Jethro, esticando o braço direito, sem deixar de olhar para frente ou sair da posição em que estava.

O garoto entregou em sua mão, e voltou a observar.

Jethro atirou novamente.

A flecha voou reto mais uma vez, não parando em nada e sumindo no escuro.

“A ultima.” – Disse, esticando novamente o braço. Sentiu a flecha em sua mão, colocou-o no arco e segurou a respiração.

Ela voou reto como as outras, mas dessa vez o barulho veio. O rapaz pareceu alegre, e Jethro também não escondia o sorriso.

“Excelente tiro.” – Disse ele, animado. – “Gostaria de me ver praticar?”

“Sinto muito.” – Respondeu Jethro, honestamente. – “Tenho mais o que fazer.”

E foi embora.

Seguiu caminhando acima, ouvindo os barulhos dos tiros do rapaz acertando o alvo, cada uma das malditas vezes. Ele era bom demais pra ser verdade.

Passou por outros vigias, que o cumprimentavam com a cabeça. Viu outro deles aliviando a bexiga num matinho próximo, e outros dois homens mais adiante, saindo de um matagal mais cerrado. Não havia mulheres na Sagrada Incursão.

Jethro deu mais três voltas ao redor do acampamento, até finalmente encontrar duas arvores que cruzavam uma na outra. Retornou, entregou a tocha para o próximo vigia, que o aguardava cochilando em pé do lado de fora de uma tenda e depois deitou-se nelas, cobrindo-se com a capa para fugir do frio.

Acordou no dia seguinte com o barulho de uma corneta soando. Demorou um tanto para se situar sobre onde estava, e as costas doíam um pouco pela posição na qual havia dormido, mas logo colocou-se de pé e puxou a espada.

Olhou para o acampamento, e podia ver mais gente fazendo o mesmo; soldados saindo de suas tendas apressadamente, pegando suas lanças e procurando por qualquer problema.

Jethro se aproximou para ver o que era, e teve que andar bastante para achar o motivo do barulho: de baixo da planície, vinham três batedores, com um homem amarrado sendo arrastado por eles à cavalo. Lorde Flertan e quatro de seus cavaleiros já estavam montados indo ao seu encontro.

Os homens conversaram por algum tempo, mas Lorde Flertan deu ordem para que ninguém se aproximasse. Depois, chamou Brasillo para que pegasse o prisioneiro e seguiu à cavalo com os outros estrada abaixo.

O mestre-de-armas não foi nada gentil com o homem – empurrou-o a chutes e pontapés o tempo todo, até subir e chegar no acampamento.

“Peguem esse fodido e amarrem-no ali.” – Disse, apontado para uma parte livre no meio do acampamento. Os homens levaram-no.

Jethro comia um pão duro qualquer enquanto observava a cena.

Um tempo depois, o grandalhão Terdal conversava com o ainda maior Brasillo, enquanto ambos olhavam o homem amarrado e ferido ali. Jethro se aproximou para ouvir.

“É um Ravatene. Estava com mais seis pilhando um pequeno vilarejo. Estupravam as mulheres e matavam os homens e crianças.”

“Foi o Convertido que disse onde eles deveriam estar?”

“De fato.”

O Convertido era como os homens chamavam Fordik. O homem, forte e robusto, com uma grande cicatriz costurada que atravessava todo o seu torso, havia sido pego pelas patrulhas de batedores enquanto a Sagrada Incursão estava estacionada no Castelo de Lis. Ele havia matado um homem com as mãos nuas, diziam, mas se arrependeu de seus pecados e foi perdoado pelo Alto Sacerdote. Agora, fazia parte das tropas e informava os homens a respeito de onde poderiam estar seus antigos colegas Ravatenes.

No final da tarde, Lorde Flertan e seus homens retornaram com meia dúzia de cabeças, e as colocaram em estacadas na frente do Ravatene amarrado. A ele, foi dada a chance de confessar seus crimes e pedir perdão frente o Alto Sacerdote, mas ele apenas gritava e dizia que iria matar a todos. O Convertido tentou apaziguá-lo, mas ele cuspiu em seu rosto. Por fim, foi decapitado e sua cabeça colocada junto as outras.

Como haviam perdido bastante tempo com aquilo, os homens marcharam por boa parte da noite e do dia seguinte, dormindo apenas quando o sol se pôs. Marcharam naquele ritmo por uns bons dias, e Jethro costumava sempre pegar um turno como vigia. Andava sempre atento em busca de qualquer coisa que pudesse lhe ajudar numa futura fuga, além de um bom lugar para passar a noite. Vez ou outra, encontrava alguns Vigilantes patrulhando, e eles olhavam-no como se pudessem ver dentro de sua alma.

Mais vezes ele encontrou o arqueiro que treinava no escuro, e mais vezes ele próprio atirou de seu arco longo. Descobriu que o nome do jovem era Elijah, que tinha mãos rápidas e que vinha de Irnistann, tendo sido recrutado na primeira leva de homens por Lorde Flerdan. Fazia parte do pelotão de arqueiros e não era de errar.

Viraram amigos, e por vezes compartilhavam histórias, as quais tinha que modificar para que fossem a respeito de Lauco, o guerreiro viajante, e não de Jethro, o mercenário bastardo fora-da-lei com a cabeça a prêmio em Durdia, Nyeberum e Kalvas.

As tropas seguiram viajando no mesmo ritmo cansativo e desgastante por quase duas dezenas de dias, até finalmente encontrarem o acampamento que procuravam.

Era pequeno, não tinha mais do que cinqüenta homens. Ficava ao lado de uma floresta com várias arvores cortadas, e seu comandante saudou eles apreensivos.

Após as devidas anunciações,foram recebidos. De longe, Jethro podia ver uma maquina de cerco de trinta metros; era uma construção recente, com quatro grandes rodas que suportavam a grande torre. Gigantescas escadas de madeira estavam espalhadas pelo chão, e os homens pareciam cansados e abatidos.

Naquela noite, enquanto dividia uma das fogueiras com Terdal, Ivos e outros homens de ambas as tropas, soube o que havia acontecido com eles.

Eram cerca de uma centena quando foram enviados até lá. Faziam parte da Sagrada Incursão que havia partido de Davaria há oito meses, e estavam em campanha pelo sudeste, espalhando a Palavra do Bom Deus entre os vilarejos distantes, enfrentando pequenos grupos de rebeldes, bandidos e Ravatenes exilados, rumo as fronteiras de Lurania, quando foram alertados da situação no Forte Parvaza.

O pequeno contingente foi separado das forças principais e o comando dela atribuído ao Capitão Karlo, que deveria montar cerco ao local e recuperá-lo.

A tarefa acabou se tornando mais difícil do que o esperado, e entre os ataques dos arqueiros da muralha e de homens a cavalos, além dos fugitivos da Prisão dos Espinhos, a posição foi comprometida. Foram forçado a recuar até a floresta próxima e manter um acampamento numa área de risco. Pouco a pouco, entre os ataques que recebiam e a falta de apoio, homens foram morrendo e debandando. No fim, restara apenas esses quarenta e tantos, aguardando os reforços comandados por Lorde Flertan, usando madeira da floresta para construir suas escadas e tentando resistir.

Mas quando eles chegaram, Capitão Karlo já estava morto.

“Aquele ali comandou esses homens até agora.” – Comentou Terdal. Jethro pôde ver um homem baixo de rosto fechado, cavanhaque e um elmo cobrindo o resto de sua cabeça. Não parecia nada demais.

Ao redor do acampamento, sinais do que um dia fora Parvaza ficavam claros no chão. Pedaços de muretas derrubadas pelo tempo ou máquinas de guerra, campos há muito queimados em que uma grama recente crescia entre destroços, túmulos recentes e antigos onde pedaços de madeira, pedra e espadas enferrujadas marcavam o local onde guerreiros sem nome haviam tombado.

Mais ao longe, após o bosque de onde vinha a matéria prima para as maquinas de cerco e a relativa proteção dos arqueiros, ficava o Forte Parvaza. Ainda estava distante, e mais destroços e ruínas marcavam o caminho até ele, aumentando conforme a proximidade.. mas dali, já parecia um tanto pequeno.

“Não deve ter espaço para mais do que duzentos homens mal acomodados.” – Comentou Jethro com Elijah, quando encontrou o mesmo acima de uma elevação de terra olhando ao longe. Muralhas gastas com ameias tombadas e disformes.

“Três andares. 20 metros, não mais que isso.”

Se algum dia o Forte Parvaza fora uma construção digna e grandiosa, ele há muito já havia deixado de ser.

Mesmo daquela distância, não passava de um quadrado de rocha entre tantos outros que já haviam caído.

“Os mais assustados dizem que esse local é mal assombrado. Já foi um grande castelo com uma grande cidade, mas a guerra tomou isso daqui e deixou apenas.. isso.”

Uma manhã cinzenta precedeu o inicio da batalha.

LZPR
Enviado por LZPR em 22/09/2011
Reeditado em 22/09/2011
Código do texto: T3233781