O Mercenário e a Meretriz: Parte 2
Capítulo 5: TÚNEIS E POÇOS
Para descer, usou a mesma corda reforçada que Dirgo havia usado, mas fez questão de que outra lhe acompanhasse conforme descia. Independente do que tivesse ocorrido, queria ter mais chances do que o outro.
O guarda do poço e mais outros três homens ajudavam a segurar a corda para que descesse, e ele foi indo. Não conseguia ver nada lá embaixo, mas carregava consigo uma tocha e bastante óleo pantanoso, suficiente para alimentá-la por um dia inteiro caso fosse preciso. Ele esperava que não fosse.
Com a mão esquerda, segurava a tocha, longe de si e da corda, e com a direita e as pernas descia vagarosamente. Havia jogado uma pedra lá embaixo antes, mas não ouvira barulho algum. Agora, já descia há alguns minutos, e podia ouvir ao longe o barulho de seus cuspes tocando alguma superfície liquida.
Acima de si, via apenas a luz do buraco pelo qual tinha entrado, um ponto luminoso pequeno em meio a escuridão de terra e lama que o cobria e cercava.
“Eu não morri em Nyeberum, nem em Durdia, nem no mar. Não vai ser aqui, num vilarejo no meio do nada, que eu vou morrer.” – Disse, para si mesmo, em busca de algum conforto.
A medida que descia, ia ficando mais apreensivo. E se, afinal, houvesse alguma criatura lá embaixo? Talvez fosse uma cobra gigante, ou alguma outra coisa que habita profundidades molhadas. Era realmente estranho que o povo de Lodoro fosse tão ruim em fazer buracos, ao ponto de tanta gente ter desaparecido em seus poços. Talvez não tivesse sido uma boa idéia mesmo.
Talvez ele devesse pensar melhor antes de fazer esse tipo de estupidez.
Mas que escolha tinha?
Após dez minutos descendo vagarosamente, encontrou o fundo. Era coberto por água enlameada até os calcanhares, e ele iluminou bem o local, em busca de alguma criatura. Antes de descer, havia colocado até acima dos joelhos faixas de couro amarradas além das próprias botas, mas aparentemente não havia nenhuma cobra ou verme no lugar.
O problema é que o poço não acabava ali. Um túnel redondo de cerca de um metro e meio, um tanto acima do nível do chão, estava aberto na parede.
Tentou iluminá-lo e gritar, mas ninguém respondia, não conseguia ver seu fim, e o único som era o constante barulho de gotas caindo.
Soltou as cordas – elas não avançariam muito mais – e resolveu investigar. Conferiu que a abertura arredondada parecia ter sido bem construída, e que o teto estava firme e longe de desabar. Com isso, suspirou e seguiu pelo túnel apertado, que dava várias curvas, sempre com a tocha em frente e a espada na outra mão, esperando por qualquer imprevisto.
O túnel acabava em outro poço, semelhante ao em que havia descido, mas sem iluminação nenhuma. Notou uma corda rasgada no fundo dele, e percebeu que era um dos poços cobertos por pedra, fruto das recentes escavações do povo de Lodoro. Era um tanto maior, e demorou um pouco, mas finalmente encontrou o que procurava: um cadáver.
Era um homem de cabelos claros, boiando na água escura que ficava pouco abaixo do joelho por ali. Sua pele estava enrugada, solta e apodrecendo, seu corpo magro e fraco, mas parecia ter morrido da queda, pela forma como os ossos haviam quebrado e pelo rasgo na corda.
O problema é que havia outro túnel ali, ainda maior. Estranho.
Jethro seguiu por ele, mas apenas por ter percebido que era mais curto.
Lá, viu um grande poço, com água até sua cintura, muito mais barrosa que a de antes. Enquanto dava passos lentos e sentia o pé afundando no chão enlameado, podia ver pequenas coisas se movendo por ela, e resolveu que não iria seguir adiante. Pareciam ter mais alguns túneis escavados ali, mas ficavam quase abaixo do nível da água, e ele não arriscaria perder sua tocha.
Deu as costas e foi voltar por onde havia entrado, quando ouviu um barulho estranho atrás de si. Virou-se, e pôde perceber que uma grande movimentação na água, no limite de onde ia a luz de sua tocha. Ficou apreensivo por um momento, mas o que quer que estivesse ali, parecia não gostar da luz, o que para ele era algo bom. Foi calmamente andando para trás, até encostas as costas no buraco pelo qual tinha entrado, mas quando se virou para retornar a ele..
Ouviu um grande “splash”, e sentiu um peso nas costas. Só teve tempo de jogar a tocha para dentro do túnel, e ouvir o “TSSSS” de sua chama encontrando a superfície molhada dele, ainda que não o suficiente para apagar o fogo dela.
Sua mão direita, que segurava a espada, tinha golpeado instintivamente para trás, mas não acertara nada. Alguma coisa havia arranhado suas costas, que agora ardiam, e ele podia sentir o sangue escorrer de si.
Olhou para baixo e viu a coisa se movendo dentro da água enlameada, perto
de suas pernas. Afastou-se para o lado e tentou golpeá-la com a espada, sem sucesso. Era só um vulto escuro, mas tinha garras afiadas.
Jethro percebeu que não tinha escolha: Não daria as costas para aquela criatura, e só poderia sair quando ela fosse eliminada. “Tudo bem, afinal vim aqui pra isso.” – Pensou ele, respirando fundo e pegando a tocha de novo.
Brevemente, passou os dedos pelas costas, e sentiu o quão fundos haviam sido os arranhões.
Seguiu à passos rápidos a criatura pela água, e podia ver sempre nos limites da sua luz uma cauda. Logo, percebeu que ela nadava e rastejava na direção de um dos túneis, e que só havia um jeito de golpeá-la antes que fugisse.
Jethro pulou para frente, levantando a tocha bem alto e jogando o braço da espada o máximo que pudesse na direção da criatura. Sentiu a lâmina da espada contra algo, mas não sabia se tinha sido o chão ou a coisa.
Uma mancha escura subiu pela água, e um grunhido estranho seguiu-se. Ele viu a criatura rastejar pela parede, escalando-a, e por um breve momento pôde observá-la por inteira:
Não deveria ter mais que um metro, embora com as patas abertas contra a parede, ficasse parecendo muito maior do que deveria ser. Sua pele verde era escura e escamosa, enquanto seus olhos eram duas grandes bolas pretas. Tinha dentes afiados, e parecia estranhamente humano.
Algo gosmento jorrava pelo que restava de sua cauda cortada pela metade.
Os dois pareceram se encarar por um breve momento, e a criatura pulou em cima de Jethro, que a recebeu com a lâmina da espada.
As garras da criatura arranharam suas coxas e seus ombros, e ela se debatia conforme o metal afundava em seu corpo. Havia praticamente se jogado em cima dela, tudo o que o mercenário fizera fora estocá-la no momento certo.
“Monstro no espeto.” – Pensou, por um momento, e riu sozinho, nervosamente. Sentiu um súbito e estranho calor.
Era uma criatura asquerosa e abominável, mas estava morta, e era isso que importava.
Segurando a espada ainda enfiada no monstro, retornou até o túnel pelo qual havia entrado. Ali, usou os pés para afastar o corpo esverdeado de sua lâmina, e observou o corpo com a luz da tocha.
As garras estavam sujas de sangue e sujeira, assim com o resto do corpo. Parecia uma criatura de pântanos, de profundezas e de pesadelos. Nunca havia visto coisa do tipo, nunca sequer havia matado algo assim. Sentia-se um herói, um os personagens de cantigas antigas, como as que lhe cantavam quando era um jovem rapaz em Nyeberum, quando sua mãe ainda vivia, e ele sonhava em ser um cava..
Mais barulhos na água. Teve tempo de se virar e observar os vultos atravessando pelos vários túneis. Coisas – coisas maiores do que a que tinha matado – atravessavam a água, a terra e a escuridão, e rastejavam na sua direção. O barulho que faziam era um “rrrrrr” constante.
Ele enfiou-se no buraco, e jogou o corpo da criatura para trás, longe de seu caminho, mas as outras eram rápidas. Olhou para trás apenas para ver inúmeras mãos com unhas afiadas avançando pela abertura atrás de si. Teve que pensar rápido, por mais apavorado que estivesse, e pegou todo o óleo pantanoso que possuía consigo, esvaziou seu conteúdo pelo buraco conforme engatinhava desesperadamente, e quando finalmente saiu dele, jogou a tocha dentro.
Sentiu o forte calor, e o poço onde estava ficou completamente iluminado por um breve momento. Pensou então ter visto mais que um corpo ali, mas a escuridão tomou conta do lugar logo em seguida, e ele não teve tempo para pensar nisso. Tateou com urgência a parede até encontrar o outro túnel, entrou nele e seguiu em frente, rezando para que não estivesse sendo seguido. Conseguia ouvir o barulho ao longe, e parecia que as coisas estavam bem atrás de si..
Mas tudo girava. O calor era sufocante. O túnel parecia não ter fim. Ele iria morrer ali, esmagado pela terra.
Caiu com tudo no chão do poço pelo qual havia entrado, batendo com a cara no lodo. Olhou para cima e viu, na forma da esperança, a corda que havia deixado. Ela parecia ter se tornado várias. Ele estava tonto e atordoado, como se tivesse bebido demais.
Quando finalmente conseguiu encostar na certa, puxou ela com força, e sentiu ela sendo puxada de volta em resposta. Agarrou-se com força.
Enquanto subia, olhou para baixo, e podia ver as mãos levantando-se em sua direção.
Centenas delas. E começaram a escalar em sua direção.
Mas já estava quase no topo. Logo veria as mãos dos homens puxando suas cordas e seu corpo para fora do poço. O bom povo de Lodoro iria salvá-lo.
Respirou aliviado, e então percebeu:
Não estava portando sua espada.
Meretriz não estava consigo.
O desespero tomou conta de si, e não pensou duas vezes: largou a corda e afundou em queda livre pela escuridão do poço, que agora parecia não ter fim.
Ele viu a lâmina reluzir lá embaixo no meio dos monstros que habitavam aqueles poços e túneis enquanto caia e sorriu aliviado rumo ao abraço da morte de inúmeros braços negros.
Morreria com ela, e morreria feliz.
Sentiu água escorrendo pelo seu rosto, e uma voz familiar.
Por um momento, achou que fosse seu pai, mas abriu os olhos e viu o Ancião e seus homens, que seguravam Jethro contra uma superfície de pedra.
Olhou ao redor. Sua visão estava turva, mas pode perceber que estava em frente ao casarão, encostado na pedra do poço com as cordas ao seu lado.
“O que aconteceu, Lauco? Você estava enrolado pelo pulso na corda, chegou aqui em cima desacordado quando te puxamos! Está todo arranhado!”
“Minha espada! Onde está?” – Disse ele, nervoso.
“Na sua mão. Você não a largou em momento algum, nem quando tentamos tirá-la de si. Faz alguns minutos que você subiu.”
Respirou fundo. Não sabia o que tinha acontecido, mas estava vivo e Meretriz estava consigo. Era o que importava.
Levantou-se, apoiando-se na rocha do poço, e olhou para baixo.
Sentiu um grande enjôo ao fazê-lo, e nada podia ver a não ser uma escuridão sem fim.
“Tampem essa merda. Tampem e rezem para que o Bom Deus os proteja, porque lá embaixo vivem monstros.” – Disse ele, e caiu para o lado.
Acordou alguns dias depois, na cama do quarto que lhe havia sido concedido na moradia do Ancião. Estava enfaixado, com sede, e sentia-se fraco.
Mas ainda segurava a espada.
Foi andando com dificuldade, escorado a parede, pelo corredor que o levaria até a cozinha. Ouviu a voz de duas mulheres, que diziam:
“O estrangeiro está alucinando. Não sei se vai acordar. Não fala nada com nada. Hoje mais cedo me chamou de Alize.”
“Deve ter sido tocado pelo Devorador, isso sim. Vê como ele não larga aquela maldita espada, em momento nenhum? Quando Nagda tentou tirá-la dele, para tratar melhor de suas feridas, ele quase golpeou ela. Por pouco a mulher não perdeu a mão!”
“Tem algo de estranho nele.”
Jethro percebeu que estavam apreensivas, portanto retornou ao quarto, pegou sua bainha, alojou-a na cintura e guardou a espada. Realmente estivera segurando-a o tempo todo.
Pareceu estranhamente aliviado ao fazê-lo, e então percebeu como sua mão
direita doía. Estava com marcas de ferida, endurecida e ele mal podia abri-la.
Retornou até a cozinha, onde as mulheres se surpreenderam ao vê-lo, e pediu por água.
Uma trouxe com cuidado um jarro com água, sem olhar diretamente para ele, enquanto a outra havia saído de vista.
Sentou-se numa cadeira de madeira e bebeu o jarro inteiro em um só gole, e então o Ancião apareceu, apoiado em seu cajado e acompanhado de dois homens com lanças.
“Já fazem três dias que você retornou, Lauco. Esteve desacordado, e de sua boca nenhuma verdade saia. Blasfemou bastante enquanto dormia, e pensávamos que havia sido tocado pelo Devorador, se tornado um de seus servos. Se ainda vive, é porque precisávamos saber o que lhe aconteceu.
Prove que ainda é um Bom Homem.”
Jethro observou os homens: eram grandes e pareciam fortes, e seus olhares
pesavam sobre ele, como se esperassem uma batalha a qualquer momento.
“Eu andei por seus poços, Ancião. Encontrei muitos túneis, que levavam de um para o outro, e também gente morta lá embaixo. Mas não são com os mortos ou comigo que você deve se preocupar, e sim com os monstros que lá habitam. Criaturas, filhas de lagartos com homens, que escavam buracos e tem fome pela carne humana. Inúmeras delas.” - Ele exagerou, de propósito.
O Ancião e seus homens arregalavam os olhos conforme ouviam o relato de Jethro, que lhes contou exatamente tudo que havia ocorrido. Por fim, o próprio Ancião sentou-se, sem forças, e olhava para o teto como se esperasse uma resposta para aquilo vinda dali.
“Não.. Não.. Você alucina, Lauco. Deve ter sido mordido por alguma coisa lá embaixo, e o veneno corrompeu seu sangue e mente.. Lhe demos leite e poções, mas não deve ter sido o suficiente..”
“Eu sei o que vi, Ancião.” – Disse Jethro, mas então lembrou-se que, de fato, havia alucinado. Havia não só visto, como sentido e vivenciado coisas que jamais haviam ocorrido. Talvez tivesse sim sido envenenado, mas não fora pela mordida de uma cobra, e sim pelas garras ou presas daquelas aberrações.
“Minhas feridas. Elas são a prova de minha história.” – Disse, por fim.
O ancião não soube o que falar, e até mesmo seus homens pareciam apavorados agora.
Jethro levantou-se, tocou o ombro dele com a mão que não estava ferida, olhou em seus olhos e disse:
“Eu quero minha recompensa agora.”
Capítulo 6: SEM AMORES
Conseguiu, a contra gosto, um burro velho e uma boa quantia de suprimentos para viagem, embora nenhuma moeda. Notou que agora os habitantes sabiam quem era, e olhavam-no com um misto de curiosidade e medo. Não importava. Iria embora daquele fim de mundo em breve.
“Não quero que você conte para ninguém de Lodoro o que viu, Lauco. Me deve esse favor. As pessoas iriam ficar apavoradas se ouvissem sua história. Jure perante o Bom Deus.” – Disse o Ancião Yurgo, eventualmente. Seu olhar frio e os oito homens com lanças atrás dele fizeram suas palavras pesarem ainda mais.
Jethro suspirou.
“Você e seu povo deveriam sair daqui o quanto antes. Buscar ajuda no Castelo Mahryder, de qualquer exército de Bons Homens ou de alguém com soldados suficientes para enfrentar isso. Mas não adianta se arriscar lá embaixo. São aberrações, eu lhe digo, e seu Deus não é tão Bom quanto acredita ser, menos ainda onde seus olhos não vêem. Eu juro perante ele, minha honra e qualquer outra coisa que você queira, não falarei sobre os poços de Lodoro para ninguém.. Mas você deveria fazê-lo, se quer ter alguma chance contra isso.”
“Não é assim que as coisas funcionam, jovem..” – Dizia Yurgo. Sua voz estava cansada e fraquejava. – “Já tem sua recompensa. Se quer partir, vá... mas por que não reconsidera minha proposta? Fique, nos ajude a combater esse mal. Lute em nome do Bom Deus, treine nossos homens, compartilhe nossas filhas e ajude a defender esse lugar da fúria do Devorador.”
A idéia de ter as mulheres daquele povoado soaria mais atraente caso tivesse visto alguma mulher que agradasse seu olhar durante seu período Lodoro. Não fora o caso. Elas eram sujas, enlameadas e troncudas por natureza, em sua maioria.
“Vocês que resolvam seus próprios problemas.” – Disse Jethro, e deu as costas.
Saiu de Lodoro sem cerimônias, mas melhor do que havia chego. Seus arranhões ardiam, sua mão doía e o ferimento na barriga causado pelo Capitão ainda estava longe de cicatrizar por completo, mas agora não estava mais a pé, tinha comida, bebida e roupas costuradas.
Seguiu norte, conforme fora informado, por quatro dias de viagem até encontrar a estrada de chão batido, e cavalgou por ela por mais cinco dias sem complicações, apenas encontrando uma ou outra caravana durante o percurso.
Iria rumo a Trezamores e, se o burro não morresse antes, chegaria antes da terceira lua. Lá, poderia encontrar trabalho que não envolvesse aberrações subterrâneas, e ficaria longe da lei de Durdia, que não chegava na Cidade Livre.
“Três amores, muitos crimes.” - Alguém lhe dissera, tempos atrás.
Passou por planícies sem fim, com árvores espaçadas e poucos animais, e contornava um grande elevado pela estrada quando ao longe avistou problemas.
Á princípio eram apenas algo horizonte, um pequeno ponto que parecia aumentar, e mal podia conferir direito o que era, porque o sol estava contra si. Conforme se aproximaram, conseguiu ver os homens a cavalo, três no total.
“Cavaleiros.”
Aquilo não era bom. Escondeu a espada ajeitando-a para trás, girando o cinto e colocando a capa por cima. Gostaria de afastar-se até que eles passassem, mas não havia onde se esconder, e a região era inclinada e esburacada demais para ele arriscar levar o burro para fora daquele trecho da estrada.
Retroceder também não faria sentido, porque seu animal não era tão rápido quanto os cavalos, e eventualmente eles o alcançariam. Ficaria mais suspeito se Jethro tivesse sido avistado e, subitamente, mudasse de direção. Só podia seguir adiante, ao encontro deles.
Os cavaleiros usavam armaduras leves de cota de malha e couro, portavam capas com capuzes abaixados, escudos em suas costas e espadas presas à cintura, dois com arcos em suas costas. Diminuíram o ritmo conforme se aproximavam de Jethro.
“Salve, viajante.” – Disse o do meio. Era o maior deles, seu rosto quadrado era enfeitado por uma longa barba escura. O cabelo era curto e bem aparado.
“Salve, cavaleiros. Posso ajudá-los?” – Disse Jethro, tentando esconder o nervosismo. Subitamente, seus ferimentos voltaram a ardem.
“De fato pode. Diga seu nome, origem, trabalho e crença.” – Respondeu o homem, suas sobrancelhas apertadas e sua voz de comando deixando claro que Jethro não tinha outra escolha.
“Me chamo Fernst, venho do Castelo Mahryder, e sou um viajante em busca de oportunidades e segurança dentro dos muros de alguma grande cidade.” – Respondeu Jethro. Usara pela segunda vez aquele nome, a última vez tendo sido ainda em Nyeberum. Fora de um homem o qual admirara, e ainda hoje não se considerava digno para usá-lo, mas fora a primeira coisa que passara pela sua cabeça. Também mudara sua história, pro caso de alguém ter seguido-o. Não custava se prevenir. A falta de bebida o deixava paranóico. “E creio no Bom Deus, como é costume em Nyeberdia.” – Disse por fim.
Os homens pareceram avaliá-lo por um momento, e então o maior disse:
“Pois bem, Fernst, nós somos batedores das tropas da Sagrada Incursão da Palavra do Bom Deus, comandadas por Lorde Flerdan de Irnistann e pelo Alto Sacerdote Sironno dos Bons Homens. Eu sou o Vigilante Jirgo, esse ao meu lado direito é Neviz e esse outro é Klarke. Contamos com cerca de duzentos e vinte homens, entre cavaleiros, camponeses, homens de armas e vigilantes, estacionados em Lis, adiante na estrada. Viemos de Castelo Mahryder, onde recrutamos alguns soldados, e seguimos de vilarejo em vilarejo recrutando ainda mais. Como um Bom Homem, é seu papel nos ajudar na batalha que virá.”
Jethro engoliu seco ao ouvir aquilo. Era algum tipo de Inquisição religiosa, da qual ele ouvira falar certa vez. Campanhas do tipo eram comuns na divisa entre Nyeberdia e Ravate, onde a influência religiosa dos Ravatenes alcançava alguns povoados locais, e a guerra de duzentos anos atrás parecia ainda não ter acabado por inteiro. Existiam também baronatos, vilarejos e até cidades livres que negavam ambas as crenças, e seguiam costumes e deuses próprios.
“Temo que eu não possa ajudá-los nisso, senhores.. não sirvo para o campo de batalha, em meu atual estado.” – Disse, preocupado. Já havia sido chamado de muitas coisas, mas não de Bom Homem. Era um termo comum em Durdia, que remetia tanto aos acólitos, sacerdotes, padres e clérigos daquela fé quanto a qualquer um que acreditasse no Bom Deus e no Palavreado.
Neviz, o mais magro deles, portando um cavanhaque ruivo e um cabelo longo que escorria pelo rosto, disse:
“Que faz então um viajante sozinho andando por essas estradas, em tempos como esses?”
“E se estava em Castelo Mahryder, por que se surpreendeu tanto ao nos ver? É sabido que ficamos lá por quase uma quinzena, recrutando homens e nos preparando para a campanha.”- Disse Jirgo, seguidamente.
“Eu apenas temo pelo que pode vir na estrada, senhores. Não carregam estandarte algum, poderiam ser ladrões ou qualquer outra coisa, se não tivessem se anunciado.” – Disse Jethro.
Jirgo, parecendo um tanto ofendido, pegou o escudo de suas costas e mostrou o emblema nele: Um grande olho branco em um fundo azulado.
“Então era esse tipo de Vigilante.” Jethro, percebeu também pequenos broches e emblemas em suas vestimentas com o mesmo símbolo.
“Sou um Vigilante da Rocha de Durdia, e esses dois batedores ao meu lado foram recrutados em Mahryder. Como precisamos de homens, vou lhe dar uma chance de vir conosco e unir-se as tropas, sem muitas perguntas. Irá lutar conosco durante a campanha, e ao final dela, caso tenha sobrevivido, será livre para ir. Caso recuse-se, iremos questioná-lo até termos certeza de que fala a verdade. E se estiver mentindo, sua vida termina aqui.”
Jirgo deu alguns momentos para que a idéia crescesse na mente de Jethro, que mal conseguia esconder a preocupação.
Não tinha escolha. Vigilantes eram homens treinados para descobrir mentiras, caçar hereges, misticistas e bruxos. Eles eram amplamente capacitados para a investigação, combate e tortura. Seu lema era “Nada escapa nosso olhar.” Havia corrido tanto da Cidadela de Ticulis, mas de nada adiantaria agora. Se começassem a fazer perguntas, logo chegariam a verdade.
“Está bem.” – Disse ele.
Os homens cercaram-no e o escoltaram pelo resto da estrada.
Capítulo 7: Boras de Lis
Lorde Boras Krastin sentiu rápido o alivio de expelir sua semente no ventre da mulher. Ele não perdia tempo quando o objetivo era satisfazer-se. Arrancou seu membro de dentro dela e cuspiu em seu rosto, em seguida jogando-a para fora da cama com um forte e brusco empurrão.
“Mandem trazerem-me um refresco.” – Disse o volumoso Senhor de Lis enquanto a mulher, cabisbaixa, recolhia suas vestes no chão e ia rapidamente para fora.
Puta suja. A mulher não valia nada, Boras sabia, mas tinha grandes seios e ainda era apertada onde importava. Era a mais jovem e bonita que tinha encontrado no vilarejo que cercava o pequeno castelo de uma só torre que ele habitava, e serviria por algum tempo até que os homens que enviara fizessem uma busca pelos vilarejos ao norte em busca de uma que lhe fosse de maior agrado.
Pouco tempo se passou até que um homem magro vestindo uma camisa larga de seda, calças apertadas escuras e botas longas de couro chegasse com uma bandeja de prata.
“Lusdor, encha um copo para mim e pegue meu cachimbo na prateleira também.” – Disse Lorde Boras, de costas, nu e apoiado no parapeito da estreita janela do seu quarto de pedra, sem olhar para ele.
O serviçal grisalho de pouco cabelo rapidamente o fez, aproximando uma taça prateada cheia de um liquido verde-claro em cima da bandeja com uma mão e entregando o cachimbo, já com fumo dentro, para o seu Senhor.
Boras, ainda olhando para fora, um tanto pensativo, aproveitando-se da brisa que vinha para secar seu suor, deu um grande gole e devolveu a taça para a bandeja. Enquanto pegava o cachimbo, fazia um sinal com a mão para que Lusdor lhe trouxesse a brasa no canto do quarto.
Ficava ali uma pequena e rústica lareira apagada, com uma braseira dentro de si queimando em fogo baixo. O empregado pegou um dos vários ferros negros que ficavam postos ao lado, espetou-o no fogo até pegar um pequeno pedaço de carvão queimando e levou até Boras, onde acendeu seu cachimbo.
Com outro sinal vago, o Lorde mandou-o embora, enquanto tragava.
Tinha um gosto bom de alivio. Era Erva-de-Dulis, amarga e doce ao mesmo tempo, seca e molhada dependendo da estação ou do tempo em que fosse guardada. Não sabia explicar o que sentia quanto fumava, apenas sabia o quanto gostava. Havia pago um bom dinheiro por ela com um mercador viajante que passara em Lis algum tempo atrás.
Enquanto olhava pela janela podia ver, lá embaixo, há cerca de 40 metros, os camponeses tratando de seus afazeres.
Não gostava deles. Amaram seu pai, o famoso Lorde Roras Krastin, mas nunca tiveram o mesmo apreço pelo filho. Todos diziam que Lorde Roras fora um homem bom e justo, que era alto e belo, que governava bem e que era fiel ao Bom Deus.
Mas do seu filho Boras, diziam que havia matado o irmão mais velho e o pai, que usava magia negra e trancava o irmão mais novo no topo de sua torre, que raptava mulheres para dentro dela, e que tentava trazer de volta sua primeira e única esposa, a qual havia morrido antes que consumassem o casamento, quando ele ainda não possuía nem metade da idade que já tinha.
Mas aquelas eram meias-verdades, e aqueles eram os camponeses. Se não fossem estúpidos, não seriam camponeses, como sua mãe costumava dizer. E aqueles que falavam alto demais eram enforcados, o que deixava esses boatos cada vez mais raros, embora nunca cessassem por completo.
É verdade que Boras sempre fora o mais inapto dos irmãos, e que o pai dava mais atenção aos outros do que para si. Ele era Boras, o Estufado, já quando pequeno, enquanto o primogênito Nolas era um escudeiro desde que tinha sua idade, e seu irmão mais novo Rono mostrava um talento natural para o adestramento de aves, ainda que para mais nada além disso.
Mas Nolas se alistara, a contragosto do pai, em uma das várias Sagrada Incursões, que iriam pregar a Palavra do Bom Deus nos vilarejos mais ao leste, vítimas da crença primitiva Ravatene, de rebeldes e da blasfêmia. O rapaz, com sonhos de fama em glória, morreu em uma das batalhas contra os infiéis, vítima de uma lança e um machado. O próprio pai, o amado e saudável Lorde Roras Krartin, sucumbira pouco depois, vitima de uma doença súbita e desconhecida, que originara os boatos.
Ficara então Boras, sua mãe e o irmão mais novo e inocente, como os únicos Krastin de Lis. Sua família fora soberana sobre o lugar desde a época da Guerra da Trindade, mais de duzentos anos atrás, quando seu ancestral Berjon Krastin fora designado como Senhor de Lis após ter comandado as tropas e tomado aquele que, até então, era um dos vários castelos comandados pelos Astartares, hoje vivos apenas em páginas de livros e canções.
A mãe, apesar de não desgostar do filho do meio, constantemente falava de como Nolas é que deveria ter sido o Senhor de Lis, do quão virtuoso e parecido com o pai ele era, e de como Boras era uma decepção, gordo e tolo. Ela morreu durante o sono. O agora Senhor de Lis simplesmente sentiu-se aliviado por ela já não mais compartilhar sua mesa e nem insistir em falar do irmão. Rono, que nunca saía da torre, sequer notou a falta dela.
O rapaz ficava cada vez mais no aviário, preferindo a companhia de suas aves a que a de outras pessoas. Que assim fosse, Boras não poderia se importar menos. Isso tudo já fazia bastante tempo, e foi naquela época que, por direito, herdara Lis, o pequeno vilarejo protegido pelo castelo que morou a vida inteira.
Era gordo, mas não estúpido. Sabia que as garotas não eram atraídas por ele como eram pelos outros rapazes, mas esperava que o fato de mandar no lugar garantisse certos privilégios a ele, e assim foi. Sua família não era muito rica, mas aumentou os impostos e diminuiu os gastos, até conseguir elevar, para a insatisfação do povo, seu nome e o de seu castelo. Ainda estava longe de ser um grande Senhor, daqueles que poderiam bancar exércitos inteiros com suas sacolas de moedas que pareciam jamais ter fim,mas agora conseguia contratar bons homens para servi-lo e protegê-lo, assim como o serviço de belas prostitutas das quais podia abusar a vontade, e que manteriam a bocha fechada, fosse por bem ou por mal.
Havia tentado o matrimonio com uma senhorita da família de mercadores mais proeminente do vilarejo de Lis, não que fosse grande coisa. Seu nome era Irinne Harvas, e não era tão feia quanto poderia ser, mas faleceu no dia seguinte ao casamento. Boras dissera a todos que ela se suicidara por ter sido forçada ao matrimônio, e fora mais ou menos isso que acontecera mesmo. A vadia não o olhava no olho, e quando ele tentou levá-la para a cama, começou a chorar. Ele, embriagado após a cerimônia, deu tapas na mulher e tentou forçá-la, mas eventualmente desistiu, já cansado do conflito. Disse para ela que iria procurar uma puta para satisfazê-lo, mas que era para Irinne estar disposta a abrir as pernas até o dia seguinte, senão ela iria mandar para a forca ela e toda sua família.
Quando Boras retornou ao quarto, já satisfeito e mais sóbrio do que na noite anterior, a moça havia cortado os pulsos.
Vai entender.
Agora, já com seus trinta anos, fumava o cachimbo, olhava para o povo e se perguntava quanto tempo teria que agüentar os malditos homens da Sagrada Incursão em seu castelo.
Havia sido informado por um batedor deles alguns poucos dias antes; a Sagrada Incursão, comandada por Lorde Flerdan de Irnistann e pelo Alto Sacerdote Sironno, ambos os quais ele nunca tinha ouvido falar na vida, iria passar por Lis e, como sendo a família Krastin uma das muitas que prestavam vassalagem ao Senhor de Durdia e ao Rei de Nyeberdia, além de seguir a crença do Bom Deus, deveria prover estadia, alimentação e também recrutas para o sucesso da campanha empregada contra os hereges.
Fora uma dessas campanhas que levara seu irmão mais velho embora e deixara Boras como o próximo na linha de sucessão para o Castelo, abençoada seja, mas não mudava o fato de que toda aquela comitiva iria não só esvaziar seus bolsos, como também levar embora alguns de seus homens. Se ao menos pudesse dar um jeito de que Rono fosse enviado junto, não teria que se preocupar com possíveis golpes. Não achava que o irmão fosse má pessoa, mas não queria arriscar nada vindo daquele homem estranho que vivia com os pássaros, dividia a torre consigo e raramente dava sinais de vida.
Um bom tempo se passou até que Lusdor retornou ao quarto e o informou de que os homens se aproximavam.
“São aproximadamente duzentos homens, Senhor. Vem pelo oeste, um terço deles à cavalo. Estarão aqui em menos de uma hora.”
Boras suspirou. Era hora de receber os convidados.
“Envie alguém para recebê-los e guardar seus cavalos no estábulo. Diga para as serviçais que arrumem acomodações para esse numero de gente, e que preparem comida também. Se faltar gente, pegue alguns camponeses e prometa algumas moedas. E quando entrarem no castelo mande seus líderes até mim. Estarei no Salão aguardando.” – Disse, e foi se vestir. Duzentos homens era um numero menor do que havia previsto, mas ainda assim incomodo.
Lavou o rosto na água que ficava em uma bacia em cima de sua estante de madeira e olhou-se por inteiro no espelho grande que ficava ao lado dela. Estava com a grande barriga projetada para frente, agora quase cobrindo quase que por inteiro seu membro flácido, e as tetas caídas para os lados, como um saco de arroz em cima de um barril deitado. O pelo em seu peito era escasso e da mesma cor ruiva que a barba por fazer, que crescia apenas nas suas costeletas e em seu queixo. Resolveu que deixaria crescerem ainda mais.
Colocou uma camisa larga branca, feita sob medida para si, e calças de couro de alta costura, adornadas em dourado. Lutou a conseguir apertar suficiente o cinto, mas saiu vitorioso. Em seguida colocou um manto aberto azul que ia até o chão e cobria a maior parte das suas mãos. Abriu um pote de vidro e molhou a palma delas com algumas poucas gotas do líquido transparente e perfumado, e passou-o no pescoço. Tinha cheiro de Ruvios e esperava com isso evitar um banho tão cedo, além de aplacar o forte cheiro da Erva-de-Dullis.
Por fim, ajeitou o curto cabelo, já com entradas de calvície, e colocou um grande e pesado colar de ouro com uma pedra verde servindo como pingente. Nela, estava talhado o “K” do nome da família. Era uma relíquia passada de geração em geração, a qual ele usava somente em ocasiões especiais.
Desceu pelas escadas de sua torre até chegar ao Salão Principal, local ao qual raramente ia. Tinha o formato de um retângulo e era, como o resto do castelo, feito de rocha escura. Oito pilares suportavam-no de cada lado, e inúmeras mesas estavam empilhadas e encostadas em suas paredes, com quatro homens e mulheres recolhendo-as, assim como trazendo cadeiras, para cobrir o corredor que levava até o final do Salão: uma grande mesa cinzenta e dura, num elevado a três degraus do resto, com sete assentos lado a lado virados no mesmo sentido, sendo o do meio o maior de todos, com a pedra talhada de forma reta e sóbria.
“Que estão fazendo, seus idiotas?” – Perguntou Boras, ao ver a cena.
“Senhor, estamos preparando o Salão para que os muitos convidados possam comer, conforme vossas ordens que nos foram enviadas por Lusdor.” – Disse um jovem, sem entender. Boras não lembrava seu nome, mas sabia que não gostava dele por algum motivo.
“Façam isso depois! Agora vou receber os líderes dessa Incursão. Vá! Ande! Antes que eu mande você para lutar ao lado deles!” – Disse, e todos se foram rapidamente, deixando algumas poucas cadeiras e mesas no caminho.
“Bando de imprestáveis..” – Pensou Boras consigo mesmo. Ele próprio foi e empurrou para o lado o que restava, abrindo passagem entre o portão de entrada e a mesa na qual sentaria com os convidados.
Sabia que não podia esperar muito do povo de Lis, mas esperava que fossem um tanto mais parecidos com Lusdor. Aquele sim, um fiel empregado, vindo de Trezamores, onde as pessoas sabiam como servir. Era quase como um amigo. Quase.
Já cansado e sem fôlego, estava terminando de colocar uma cadeira no canto do Salão quando as grandes portas de madeira se abriram.
“Lorde Boras Krastin, Senhor de Lis, anuncio a chegada do sagrado Alto Sacerdote Sironno Debrize e seu iniciado Hourdes, do Templo Sagrado dos Bons Homens em Durdia, assim como Lorde Flerdan, Senhor de Irnistann, seu filho, Lorde Ervan, seu mestre-de-armas e capitão Brasillo Durgand, acompanhados pelo Vigilante Artgammer de Surt.” – Disse Lusdor rapidamente, e colocou-se de lado para que entrassem.
O Alto Sacerdote Sironno era um homem baixo e careca, com um rosto arredondado e sem pelos, que parecia ter um corpo quase tão inchado quanto o de Lorde Boras. Um enorme robe dourado cobria-o do pescoço aos pés, com gravuras negras enfeitando-o por toda a sua superfície, contornos e linhas que mostravam homens, bestas e símbolos e contavam alguma história do Livro da Palavra do Bom Deus ou da Canção da Criação. Seu iniciado vinha logo atrás, um rapaz careca magro e pequeno não com mais do que doze anos, coberto com um simples manto cinzento, carregando um pequeno estandarte com o símbolo dos Bons Homens, três figuras brancas com as mãos dadas embaixo de um sol dourado sobre um fundo negro.
Lorde Flerdan vinha ao lado deles. Um homem de rosto fechado, com um cabelo negro ralo. Possuía um bigode comprido que ia até abaixo dos lábios, e vestia uma armadura de placas de aço escuro sem emblemas que cobria seu peitoral, ombro, pernas, pescoço e braços. Abaixo dela, uma cota de malha garantia a proteção das partes vulneráveis, assim como uma coifa que deixava apenas seu rosto à mostra. Carregava um elmo arredondado embaixo do braço e uma capa marrom escura dançava atrás de si. Ombro a ombro consigo vinha seu filho, Lorde Ervan, um rapaz que mais parecia uma versão jovem do pai, que compartilhava também dos mesmos olhos azuis, com cabelos negros divididos que chegavam até seus ombros.
Era um pouco menor e mais magro que o pai, e vestia as mesmas peças de armadura que ele.
Brasillo Durgand andava ao lado direito de Lorde Flerdan. Era um homem grande o suficiente para que todos os outros do Salão ficassem abaixo de seu pescoço. Tinha uma barba por fazer da mesma cor ruiva que seus cabelos despenteados e curtos. Vestia uma couraça de metal arranhado e marcado por golpes, assim como partes avulsas de armaduras que cobriam no ombro, na parte superior do peito e do joelho pra baixo, e ficavam em cima de uma armadura de couro grosso.
Por último, Artgammer de Surt, o Vigilante. Aquele sim era problema.
Boras podia ver em seu olhar. Era o mais frio de todos. Os olhos castanhos eram quase que ruivos, e combinavam com a capa vermelha que pendia sobre apenas um ombro. O homem tinha um rosto estreito e bem definido, com lábios retos e finos. Seu cabelo era liso e escuro, penteado para trás com algum tipo de substancia que fazia com que parecessem estar molhados. Usava uma túnica azul com o símbolo branco de um olho por cima de uma armadura de placas, partes do cabo e da bainha de sua enorme espada podiam ser vistos pendendo ao cinturão conforme andava.
“Saudações, nobres senhores. É um prazer tê-los em minha humilde residência.” – Disse Lorde Boras Krastin, abrindo um enorme sorriso falso e fazendo um gracejo exagerado, em seguida indo na direção do Alto Sacerdote e curvando-se com a cabeça baixa. Lembrava-se de ter visto seu pai ter feito o mesmo a quase 20 anos atrás, da ultima vez que Lis fora importunada por aquele tipo de gente.
“Que o Bom Deus lhe garanta em dobro tudo o que nos for oferecido pela sua generosidade, Lorde Boras Krastin.” – Disse o Alto Sacerdote Sironno, passando a mão em sua cabeça e beijando-o na testa, quase que sem precisar se curvar para fazê-lo.
Cortesias costumeiras foram trocadas, apresentações e feitos foram compartilhados, até que enfim os lideres estavam sentados na mesa de honra do Salão Principal, as cadeiras e grandes balcões de madeiras postas no corredor e os muitos homens da Incursão acomodados nelas, aguardando ansiosamente pela comida que lhes era ofertada.
Boras, por sua vez, mal podia ver a hora de sair dali. Esperava que após as apresentações e ofertas de estadia pudesse deixar os convidados por si só, mas Lusdor lhe alertara num sussurro que ele deveria estar presente durante a janta, do contrário poderia ser tomado como uma desfeita. E ele assim o fez, a contragosto.
Podia ver uma quantidade imensa de soldados em roupas simples, que enchiam seu Salão Principal ao ponto de terem que se espremerem entre as cadeiras e balcões, olhando famintos para as bandejas e os caldeirões fumegantes que não paravam de ir e vir.
Em sua própria mesa, comia mais do que o costumeiro, pelo nervosismo. Não gostava de ter tanta gente em seu castelo, e não conseguia deixar de perceber o Vigilante, agora com outros três dos seus, postos ao redor do Saguão, fazendo rondas entre os homens e pelas paredes, como se procurasse por alguma coisa. Até mesmo um maldito cachorro andava entre eles, farejando pelos cantos e parecendo estranhamente indiferente à comida nas mesas.
Mas era isso que eles não faziam, não é mesmo? Vigilantes serviam para vigiar. Iam desde a Baía da Vigília até onde quer que fosse território Nyeberdiano em busca de demônios, marisqueiros, sleemos, bruxeiros e tudo mais que fosse ligado a magia negra, perversão e heresia. Eram, por natureza, desconfiados e observadores. Seu próprio símbolo era um olho, e na capa vermelho-escura de seus capitães, como Artgammer era nessa situação, eram entalhados centenas desses olhos, apontados para inúmeras direções. Não era incomum que alguns fizessem parte da Sagrada Incursão, já que o Templo dos Bons Homens e os Vigilantes sempre tiveram boas relações e compartilhavam os mesmos ideais.
Boras não gostava disso, mas nada podia fazer a respeito. Via em sua mesa o mestre-de-armas Brasillo, que já estava no quarto prato de carne de porco com batata, um acima de sua própria contagem, e ao seu lado direito Flerdan, com o filho, ambos já satisfeitos, bebendo vinho.
Como era costume, o lugar de honra da mesa foi dado ao Alto Sacerdote Sironno, que comia lentamente, com pequenas garfadas, enquanto seu jovem acólito aguardava posto em pé, atrás de si, sem conseguir esconder a fome em seu rosto.
“Está em jejum, faz parte de seu treinamento.” – Comentou Brasillo, ao seu lado, ao perceber que Boras olhava para o garoto com certa pena. Fosse o que fosse, ele sabia o quão bom era comer e o quão ruim era ser privado disso.
E lá longe estava o Vigilante Artgammer de Surt, com seus três homens, rondando, vigiando, espreitando. Em certo momento, o olhar de Boras cruzou com o seu, e o Lorde rapidamente desviou. Devia ficar mais calmo. Não adiantava nada elevar as suspeitas do Vigilante.
Bebia um pouco de vinho para se acalmar, quando viu outro homem, também um Vigilante, entrando pelo Salão. Esse disse algo para Artgammer em seu ouvido, e retornou para fora em seguida. Provavelmente, enquanto Lorde Boras ficava sentado ali com seus convidados, havia gente circulando pelo seu castelo e investigando cada maldito centímetro.
Cerca de duas horas depois, a maioria dos homens já havia sido alimentada e se retirado, restando apenas Lorde Boras e seus convidados, além dos Vigilantes e mais alguns trinta soldados da Sagrada Incursão que saboreavam cerveja barata e restos de comida.
Lusdor mantivera-se o tempo todo dando ordens para os serviçais, mas agora que a situação no Salão havia sido apaziguada, colocara-se atrás de seu Lorde e servia-o com doses de vinho pessoalmente, além de palavras de conforto.
“Quanto mais, Lusdor?”
“Meu Senhor, apenas mais alguns momentos. O filho de Lorde Flerdan já se retirou, o mestre-de-armas Brasillo está quase desmaiando de beber e o Alto Sacerdote parece sonolento. Em breve isso acabará.” – Sussurrava ele em seu ouvido.
Boras suspirou, e aguardou. Lorde Flertan, que até então havia se engajado em uma breve conversa com um de seus homens mais bem equipados, provavelmente de sua guarda pessoal. Ele concordou com algo com a cabeça e se retirou do Salão.
“Lorde Boras..” – Começou Flerdan, se aproximando para o lado. – “Meus batedores encontraram alguns homens nas estradas próximas. Alguns podem ser candidatos e se tornarão recrutas, outros podem ser bandidos ou fugitivos. Peço que permaneça no Salão enquanto avaliamos esses homens e vemos quem é apto para a batalha e quem merece a forca. Não deve demorar, mas é bom contar com sua opinião a respeito disso. Nos informe se conhecer algum deles.”
“Mas é claro.” – Disse Boras, tentando esconder a impaciência e o desinteresse o melhor que podia.
Lorde Flerdan fez um sinal para Artgammer, que deu mais ordens aos seus homens e dirigiu-se até a frente da mesa principal, colocando-se em frente a ela.
“Será que o maldito não come?” – Pensou Boras. Estavam ali fazia quase cinco horas, e não havia visto o homem sair e nem se alimentar em momento algum.
Os poucos soldados que ainda se alimentavam receberam ordens e empurraram as mesas e cadeiras, abrindo caminho para passagem até a mesa onde seus Senhores se encontravam, e alguns poucos acomodaram-se em suas beiradas para ver o que aconteceria, enquanto a maioria dos restantes retirou-se para seus alojamentos. Alguns poucos teriam a sorte de dividir pequenos quartos, mas a maioria dormiria no chão do castelo.
Dois homens de capas verdes com capuzes abaixados entraram, arrastando um terceiro amarrado.
“Senhores.” – Falou o primeiro deles, um jovem magro de rosto fino e bonito, se abaixando em uma só perna e saudando-os. – “Capturamos um homem na estrada para o leste, à metade do caminho para o Forte Jerro. Ele nos avistou ao longe e tentou fugir, mas acertei uma flecha em seu cavalo enquanto os outros dois batedores iam atrás dele. O homem é uma besta feroz, e conseguiu matar um deles antes de ser subjugado. Estava com a espada no pescoço de meu amigo aqui quando eu chamei sua atenção para meu arco e deixei claro que o alvejaria caso não parasse. Ele mostrou certo bom senso e se rendeu, mas até agora não nos disse nada.”
O outro de capa verde mostrava ferimentos recentes no rosto, e empurrou o homem amarrado para frente, que tombou de joelhos.
Era um homem de físico bem constituído e pele bronzeada marcada por cicatrizes e feridas novas e antigas. Vestia apenas uma bermuda rasgada, e o cabelo castanho-claro era comprido, sujo e ondulado, assim como a barba. Estava coberto de sujeira, folhagem e algumas manchas de sangue. O ferimento que mais chamava a atenção era um corte que ia do ombro direito e literalmente atravessava o homem até a parte esquerda do abdômen. Era antigo e parecia ter sido costurado de maneira rude, mas ainda era uma coisa feia de se ver.
“Que arma ele usava?” – Perguntou Lorde Flerdan, observando seriamente o homem, que o encarava de volta com os olhos ameaçadores.
“Nenhuma, senhor. Ele apenas viajava em um cavalo velho e fraco, e sequer tinha suprimentos. Nyro, que tinha a melhor montaria, foi na frente. Quando Esterban chegou, esse selvagem já tinha desmontado Nyro do cavalo e matado ele com as próprias mãos. Não sei como fez isso. Mas conseguiu desarmar também Ester, e talvez tivesse me matado também se eu tivesse chego perto demais.” – Respondeu o homem, e pareceu ser sincero.
“É um Ravatene herege que tenta invadir nossas terras, Senhor.” – Dizia Ester, a voz nervosa e o rosto machucado.
“Que nome devemos por em sua lápide, criminoso?” – Perguntou então Lorde Flertan, olhando para o homem de joelhos na sua frente, que era segurado pelo ombro pelos outros dois. Ambos pareciam irritados. Lorde Boras percebeu que era apenas um blefe, tendo em vista que, se o prisioneiro fosse mesmo um Ravatene exilado, seu corpo seria dado de comida para os abutres e corvos, e ninguém se daria ao trabalho de fazer um tumulo para um selvagem daqueles.
O homem apenas cuspiu no chão, um misto de sangue e saliva.
“Levem-no para fora de Lis e cortem a cabeça dele.” – Disse Flerdan.
“Um momento.” – Interrompeu o Alto Sacerdote, em sua voz pastosa e calma. – “O Bom Deus não ficará satisfeito se não for dada a esse homem a chance de se explicar. Que crime ou blasfêmia cometestes, para fugir quando vê o estandarte dos Bons Homens?”
“Senhor.” – Respondeu o jovem arqueiro de verde, um tanto apreensivo, no lugar do homem que havia subjugado. – “Na verdade não estávamos carregando estandarte algum. Fomos ordenados, nós e os outros batedores, a viajar sem eles, para não anunciarmos nossa presença.”
Lorde Flertan pareceu irritado com isso.
“E quem lhes deu essas ordens?” – Perguntou.
“Eu, Senhor.” – Ecoou uma voz grossa ao fundo, próximo da entrada do Salão. Um homem grande, de rosto quadrado, cabelo curto e barba escura carregando o emblema dos Vigilantes em sua roupa, entrou com passos rápidos. – “Sou o Vigilante Jirgo, Lorde Flertan, e fui autorizado pelo meu nobre Vigilante-Capitão Artgammer de Surt a mobilizar os batedores pelos arredores, enquanto estivéssemos estacionados na região de Lis. Ordenei que não usassem estandartes, senhor, para que pudéssemos surpreender quaisquer suspeitos.” – Disse ele por fim, num tom sério e orgulhoso.
“Eu sou o comandante militar dessa Incursão, Vigilante Jirgo, não você..” – Começou Lorde Flertan, ainda mais irritado.
“Sim, senhor. Esse foi outro motivo para não carregar os estandartes, foi algo à parte, não queria envolver ofici-“
“CALADO!!” – Gritou, batendo na mesa e fazendo com que Lorde Boras pulasse em seu assento com o susto. – “Você não tem nada que dar ordens aos meus homens! Seu papel como Vigilante é o de acatar minhas ordens, não o de mandar em meus homens! Coloquei-o entre os batedores porque estamos com poucos homens e Artgammer me falou que você cavalgava bem e leve, não para que passasse por cima de minhas ordens!”
O Vigilante Jirgo permaneceu calado, com a cabeça baixa. Fora o homem amarrado frente a si quem cortou o silêncio.
“Está vendo? Fordik é perseguido por estranhos, é atacado, se defende e ainda assim está errado?” – Disse a voz grave dele. Enquanto falava, os dentes que faltavam ficaram evidentes.
“Mentira! Senhor, nós nos anunciamos assim que o alcançamos!” – Disse a voz nervosa do batedor com o rosto machucado.
O Alto Sacerdote Sironno olhava para o homem com a cabeça abaixada, e molhou os lábios antes de falar:
“Está claro que isso tudo é um grande mal entendido. Não precisamos de mais mortes desnecessárias, pois já perdemos um homem hoje, não é mesmo, meu querido Lorde Flertan? Ele precisa ser reposto. O Bom Deus sabe o quão necessitados estamos de gente para a luta. Se esse homem aceitar fazer parte da nossa Sagrada Missão e servir ao Bom Deus, é nosso dever aceitá-lo.” – Disse ele, pegando na mão do Lorde enquanto o dizia.
Lorde Flertan deu de ombros e respirou fundo, deixando a raiva ir embora:
“Levem esse homem até meu mestre-de-armas, ele deve arranjar alguma função para ele, e cuidar de seus ferimentos. Descubram também de onde veio. Artgammer, quero que você dê uma punição apropriada para esse seu Vigilante. Caso ele não fosse um dos seus, estaria recebendo ferro quente nas costas agora pra aprender uma lição. Tragam o próximo.”
E ainda tinha mais? Lorde Boras já não agüentava toda aquela confusão dentro de seu castelo.
Os dois batedores de capa verde levaram o selvagem para longe, e o Vigilante Jirgo, tentando mostrar certa compostura, seguiu com o trabalho de trazer outros homens pegos pelos batedores nas estradas.
Foram-se uma dúzia deles, entre fazendeiros que fugiam de um bando de foras da lei Ravatenes que avançava pelo leste, três irmãos comerciantes que gostariam de oferecer seus serviços para a Sagrada Incursão e dois guerreiros errantes.
Lorde Boras passou por um momento de grande constrangimento quando alguns homens, que ele próprio havia enviado em busca de meretrizes, haviam retornado sob a escolta dos batedores da Sagrada Incursão. O Senhor de Lis confirmou a história que eles haviam dito aos Vigilantes que haviam interrogado-os antes que fossem apresentados ao Salão, mas disse que os havia enviado em busca de damas aptas para cortejar seu irmão mais novo, um rapaz triste que ficava sempre isolado no topo da torre do castelo e que, de fato, talvez pudesse se beneficiar da Palavra do Bom Deus.
O Alto Sacerdote franziu a testa, mas pareceu disposto a relevar o incidente.
“Irei até seu irmão e o ajudarei com seu fardo, Lorde Boras, e esses seus homens não precisarão mais ir em busca de tal perversão. Poderão, com sua licença, se unir a nós quando marchamos daqui.” – Propôs ele, e foi imediatamente aceito pelo Senhor de Lis.
Por ultimo, um homem sozinho foi acompanhado por outros dois batedores até a frente da grande mesa do Salão Principal.
Ele tinha um cabelo negro comprido, sujo e desgrenhado, que caia por cima da sua testa e chegava com facilidade até seus ombros largos. Sua barba estava por fazer, e não escondia completamente o belo rosto. Seus olhos eram verdes e Lorde Boras via neles alguma coisa semelhante ao que via nos do Vigilante Artgammer. Suas vestes eram simples e mal cuidadas, mas eram de um couro que deveria servir para garantir certa proteção. Talvez estivesse machucado, porque algumas ataduras podiam ser vistas por baixo. Uma capa de pelos cheia de retalhos e manchas pendia atrás de si.
“Esse nós encontramos na estrada ao sudoeste. Diz ser um viajante e um Bom Homem. Interrogamos antes de trazê-lo até os senhores, e parece que tudo consta. Seu nome é Fersto, e ele foi atacado por um grupo de bandidos e alguns animais selvagens enquanto viajava. Talvez precise de alguns cuidados.”
“Meus senhores, será um prazer servi-los em nome do Bom Deus.” – o homem disse, fazendo uma grande e nobre reverencia e colocando-se de joelhos em frente a eles.
“O Bom Deus é misericordioso para com os Bons. Ele deverá ser tratado de suas feridas e poderá ter o prazer de seguir conosco adiante.” – Disse o Alto Sacerdote Sironno, com um sorriso amoroso.
Lorde Flertan pareceu um tanto irritado com aquilo, mas nada disse, apenas ordenou que o colocassem junto ao pelotão da retaguarda.
“Com sua licença, meus bons Senhores e Lordes.” – Disse Fernst, fazendo outra reverencia e seguindo o Vigilante Jirgo para fora.
Lorde Boras não gostou daquele homem. Parecia um verdadeiro guerreiro, e talvez um mentiroso quase tão bom quanto si próprio.
Era Jethro.