O Preso

Naquela cela, situada na parte mais distante da entrada do edifício, todos os sons me chegavam amortecidos. Isolado de tudo e de todos, sentia-me cair numa espécie de fosso e ficava horas, muitas horas, a rememorar os factos que estavam na origem da minha detenção. Revivia as situações, os encontros, as atitudes, os comentários e concluía sempre pela certeza de que era injusto estar ali, sem culpa formada, sem data para conversar com o advogado, sem saber se e quando me julgariam. A chegada da comida quebrava o silêncio e trazia um interregno à minha avidez de gente, à minha necessidade de contactos. No resto do tempo, sem nada para ler, sem rádio, notícias, ou sequer a visão do campo, deixava-me adormecer no catre, contava os passos que dava, fazia riscos com a unha na cal da parede por cada dia que se passava e pensava que só a loucura me esperava no fim daquele pesadelo. Vinte dias tinham passado depois que me puseram ali, com a roupa que me restava rasgada e descalço, um balde, uma tigela de inox e um cobertor. Ninguém queria conversar comigo. Eram ordens. Ninguém seria colocado na mesma cela porque as tais ordens ditavam que só em isolamento me quebrariam a vontade e a determinação de não denunciar ninguém. A princípio doía-me o silêncio, a falta de companhia, a paisagem aparentemente vazia e branca constituída pelas paredes da cela. Depois, olhando com aparente desinteresse para as manchas de humidade no reboco do tecto, descobri que, nelas, o acaso traçara o retrato de Gustavo Adripo, meu companheiro de viagem pela rota do sul na zona grande do ouro onde ambos, por razões diferentes, nos gastámos. Via-o lá. Olhos vivos, cabelo descuidado, rosto risonho, mãos fortes, ombros largos. Era ele, sem dúvida, mesmo que sem o tripé e sem as máquinas de fotografar. Precisava que fosse ele, o meu herói e modelo. À distância, a imagem acomodou-se ao meu pensamento e foi revisitada todas as vezes que o chamava, na intimidade do meu pensamento, para a conversa. A principio os diálogos eram sem palavras, todos construídos com a mente. Eu perguntava e eu respondia. Eu sorria, ele sorria com o meu rosto, eu gritava e, só depois, ele soltava o seu urro de comandante que colocaria a minha garganta rouca se não acontecesse, apenas, no mais recôndito do meu cérebro atormentado. As conversas passaram a ter maior incremento e naturalidade e foi isso que me fez passar à oralidade de facto. Falava, sim, excepto quando o pessoal se apresentava para me alimentar, para fiscalizar o espaço. Aí, via na mesma Gustavo Adripo mas só trocávamos olhares de entendimento, muito frios, para disfarçar. A ideia era a de evitar que o descobrissem e nos associassem. Depois que reencontrei Gustavo Adripo, fiquei mais conformado com o meu pequeno/grande mundo. Tinha sempre que aproveitar a luz que se coava pelos vidros sujos da janela junto ao tecto, para ver o que poderia ocupar-me o espírito algumas horas. Minúsculos grãos de areia, fracturas do cimento do chão, as trajectórias da destruição imperceptível aos outros e, com sorte, a visita de uma ou outra formiga perdida naquele deserto branco e húmido passaram a ser acontecimentos de monta. Dei comigo a tentar subornar a presença das formigas com pequenos farelos de pão e a imaginar a delícia que seria poder ter uma carreira delas a transportar grãos de açúcar se, por impensável felicidade, eu acedesse a um pacotinho daqueles que, antes da prisão, eu próprio desperdiçava jogando para o lixo. À minha memória voltavam as ideias de Manoel de Castro, o escritor brasileiro que tanta atenção dera ao mundo micro que os desatentos desconhecem totalmente, mundo esse absolutamente fascinante para quem, como eu, tem de se ocupar para que a loucura não venha para preencher os vazios. Em dia de formigas no cativeiro era como se o sol, que só aparecia cerca de meia hora por dia, ficasse a tornar mais seca e habitável a cela. Raras moscas faziam também parte das maravilhas que me cabiam para análise. Como eram lindas as nervuras das asas, maravilhosas as suas possibilidades de visão e reacção, de velocidade de voo, de rapidez ! Admirava ainda a sua capacidade de aderência a todas as superfícies, a sua teimosia e a apetência para os fluidos nauseabundos. Um pouco de comida podre poderia ser um convite que aceitavam encantadas. Só quando um dia apareceram seis me dei ao cuidado de “caçar” uma para a ver de perto, usando, para isso, as vantagens do meu olhar míope. As mais das vezes ficava-me pela estatística tentando decorar a frequência com que pousavam na tigela ou preferiam a tampa da latrina. A minha observação estendia-se a todos os seus pormenores. A capacidade retráctil da tromba sugadora, a beleza dos olhos facetados, a coordenação motora das patas, os leves movimentos do abdómen onde o insecto não revelava a rigidez da quitina. Cada ser vivo, cada pedaço de natureza, era fantástica maravilha que alimentava a minha fé no Senhor que criou os céus e a terra, o universo inteiro.

Se pudesse dispor de papel e caneta, se me fornecessem a lupa necessária a uma melhor apreciação de tudo o que enchia o meu aparente deserto, talvez eu até pudesse dizer-me ocupado, quase feliz. Depois de constatar que alguns elementos de rotina me davam informações complementares sobre os rituais da vida na prisão e sobre o tempo, foi mais fácil criar um ritmo que incluía tempos de observação, de análise e medição, de conversa com Gustavo Adripo e, até, de pensamento livre no qual a viagem era, muitas vezes, uma deliciosa surpresa. Na verdade o tempo faltava para tudo o que passou a ser o meu “trabalho” ali dentro. Depois de exercitar os músculos em flexões de todos os tipos e de inspirar e expirar a plenos pulmões, começava, enfim, a ver, sentir, cheirar, provar, medir, pensar sobre os nove metros quadrados do meu canto. Como se, de repente, eu me visse como um monge cisterciense no isolamento de sua cela, em pleno século XII. Memento mori (lembra-te da morte), expressão latina que alguém passou a dizer no mais profundo do meu cérebro quando acordava, quando começava os meus diálogos com Adripo, o meu interlocutor de eleição. Sentia-me, como os monges de Trapa, a viver o silêncio e a sentir que se cresce nele até que a angústia marque um limite e ele, o silêncio, passe a doer. Quinze, zero, três, ou mil quinhentos e três ou, ainda, um, cinco, zero, três, eram sons que me traziam alegria sempre que os guardas os gritavam na altura da entrega da refeição e nunca pela associação à comida mas, sempre, pela quebra do silêncio em que me amortalhavam em vida. Aquele número era o meu nome desde que, despido da maioria das minhas roupas e sem tudo o que me definia, caí naquele buraco onde nem a identidade se preserva. Gostava também das batidas da concha na panela, do chiado do carrinho, das chaves e das correntes. Todos os sons da entrega, os impropérios e os insultos me ligavam aos outros e eu precisava deles para me sentir mais vivo.

Pelo nervosismo dos guardas adivinhei mudanças. Não sabia de nada em concreto mas sentia que algo de estruturante tocava aquela organização paramilitar. Muita gente passou a cruzar o corredor fronteiro à minha cela. Percebia o arrastar dos passos, as correntes, as vozes de comando, as pancadas e os gritos. Sempre que espreitava pelo postigo, via homens e mulheres, ainda juntos, caminhar para a zona onde se fazia o espólio, a triagem e onde nos ditavam as regras. Concluí que muitos foram presos naquele dia só não conseguia perceber a razão. Com o País a viver a guerra civil, a supressão de direitos era uma constante e o mais seguro seria , sempre, evitar irritar os que detinham o poder mesmo nos escalões mais baixos da hierarquia. Ainda que tivesse muita vontade de saber o que estava a acontecer lá fora, consegui dominar a minha curiosidade e, com receio de represálias, não voltei a espreitar pelo postigo. Nesse dia a comida chegou tarde e, pouco depois, um homem idoso foi empurrado para a minha cela. Desequilibrando-se deixou cair a tigela de inox e o cobertor e feriu os pés nos ferros do beliche. Era usual eu deitar-me na cama de baixo mas percebi que o velho não conseguiria içar-se para o leito de cima e, gentilmente, ofereci-lhe a minha cama passando eu a ocupar a outra. Nesse dia não falámos. Ambos sabíamos que, do outro lado da porta da nossa cela, estariam ouvidos prontos para apreender o que fosse dito. Adormecemos tarde porque muita mais gente cumpria o ritual de entrada com o inerente bulício, as imprescindíveis vozes de comando e os usuais insultos. O velho, febril e debilitado, gemeu a noite toda. Pela manhã, quando o sol fez a sua aparição nas vidraças da janela, acordámos e cumprimentámo-nos. As minhas tarefas ficaram, naquele dia, por fazer. Nem para o Gonçalo Adripo eu olhei por me parecer que o meu companheiro de cela exigia cuidados, compreensão e ajuda. Não lhe perguntei nada mas comecei a industriá-lo sobre como se deveria comportar enquanto ali estivesse. Ele sorria com a mão a tapar a falta de dentes e agradecia-me com uma voz sumida. Nesse dia, limpei-lhe as feridas dos pés e pedi-lhe que ficasse deitado o mais que pudesse para recuperar de um cansaço que era visível até na sua respiração entrecortada. Não me conte nada, pediu, logo que acabei de lhe verificar o estado dos pés e lhe fiz uma massagem para atenuar as cãibras que sentia. Ainda que eu lhe peça, nunca me conte nada. Prefiro ficar só a saber o seu presente. O passado deverá, nestas circunstâncias, ficar consigo. Conte-me só o que faz para sobreviver aqui para resistir a esta pressão, ao isolamento, à falta de saídas para um pátio com sol e gente. Como aprendeu a enfrentar a situação? E contei-lhe as minhas tarefas, falei-lhe das áreas definidas, numeradas e catalogadas do meu espaço, das formigas e das moscas, da aranha de estimação que morava no canto mais discreto da esquadria do janelão, junto ao tecto. Muitas vezes só lhe via a teia, balançando ao vento, ali colocada para apanhar eventuais insectos que o vento do vidro quebrado pudessem trazer. Outras vezes vi-a, activa, recuperando a teia, dando-lhe novo formato, libertando-a de pequenos pedaços de lixo. Achava-a bonita e dera-lhe o nome de Clothilde, com th para homenagear a minha bisavó. Só eu sabia desta particularidade já que nunca o nome da aranha iria ser escrito. Fosse como fosse, a importância do th estava definida na minha cabeça e isso era o que, afinal, importava. Amadeu, era esse o nome do meu companheiro de cela, escutava com muita atenção. A experiência dera-lhe capacidade de ouvir e a vida, já longa, ensinara-lhe a tolerância. No fundo, tudo o que lhe dizia era recebido com uma naturalidade que até a mim próprio espantava. Ele já não tinha medo de nada e algo lhe dizia que não sairia vivo da cadeia. Por isso, falava de si sem reservas. Era jovem e estava em Hamburgo aquando da rendição do alemães na frente italiana a 1 de Maio de 1945 a que se seguiu, no dia seguinte, a rendição de Berlin aos russos. Mas, empolgante, Amadeu achara a chegada dos Aliados à cidade trazendo com eles uma renovada esperança quando já faltava tudo a toda a gente. Foi nessa altura que conheceu Erika e a protegeu das tropas dos dois lados. Recorda-se que ela parecia um animal acossado tanta era a incerteza sobre as suas intenções e tantos os anteriores traumas. Contou que lhe estendeu a arma para que a usasse nele quando achasse conveniente. Os humanos em situações radicais têm atitudes irracionais. Mas, continuou, a sua decisão funcionou com ela. Nunca mais se separaram. Erika foi uma mulher de cultura superior e muito avançada para ao seu tempo. Foi com ela que aprendeu a admirar Chostakovitch, Britten, Honegger ou Stravinsky, autores que se fizeram amar muito depois. Na literatura era adepta incondicional de Simone de Beauvoir que acabara de publicar o livro “ O Sangue dos Outros” e foi com ela que viu o filme “Almas Perversas”, de Lang e a “ Casa Encantada”, de Hitchcock entre muitos outros onde gastavam o pouco dinheiro que tinham. Viver com ela, disse Amadeu, foi como renascer. A sua vida era um nevoeiro denso até que a jovem alemã, rompendo preconceitos, ideias feitas e chavões da época, se revelou como a única meta que valia a pena depois de tudo o que passaram. Nunca tiveram filhos e foi de repente, com malária, que Érika o deixou quando se preparavam para fixar residência em Dakar. Amadeu recorda que ela lhe pedia que lesse Neruda, Eugénio de Andrade, Kundera quando, já em agonia, deixara de poder soerguer-se na almofada. Sem família e sem mais ninguém para preencher o vazio dos dias, O meu velho camarada de cela, integrou-se na guerra de guerrilha que avassalava nas colónias portuguesas e foi como agente duplo que foi preso a primeira vez. Quando se perde tudo o que temos como referência de valor, viver ou morrer perdem sentido, confessou. Só em homenagem a Érika se manteve do mesmo lado da barricada, exactamente aquele em que ela achava estar a justiça. Que justiça?

Quando voltei a ter ocasião de falar com Gustavo Adripo ele já não estava. O retrato deixara que novas manchas o transformassem e era, agora, o rosto de Angélica, minha ex-mulher. Ainda voltamos a discutir sobre coisas banais mas, sem me sentir obrigado a dar-lhe atenção, acompanhei melhor a doença de Amadeu. Alimentava-o, enxugava-lhe o suor, virava-o sempre que pedia. Nos dias em que a febre baixava, dizia-lhe os poemas que sabia de cor. Ele preferia Bocage, Camões, Florbela mas eu sabia outros menos ortodoxos e também lhos declamava. Em alguns, por mera falta de memória, torcia umas palavras e inventava outras. O meu amigo achava todos fantásticos e agradecia. Outras vezes, quase como se fosse uma criança, pedia que lhe falasse das moscas, das formigas, da Clothilde mesmo sabendo as histórias de cor. Queria ouvir a minha voz, queria sentir que morria com alguém a seu lado a querer-lhe bem. E, um dia, cansado de esperar que a febre baixasse, agarrou com muita força a minha mão e saiu em liberdade para um lugar que não sei. Deixou um corpo magro, velho, amarelo e desgrenhado, corpo que só muito mais tarde retiraram para enterrar em vala comum.

Quando os homens da Polícia secreta voltaram para me interrogar a atitude para comigo era outra, talvez menos agreste. Disseram que não conseguiram provar a minha culpa e que havia sido determinante para a decisão os depoimentos de Amadeu, seu agente infiltrado. A minha libertação seria em breve, logo que a papelada do processo tivesse o aval do Juiz. Quando fiquei sozinho de novo, escurecia. Angélica ainda estava, agora sorridente, como quem pede desculpa de tantos desacertos. Prometia que seria diferente o futuro se acaso eu a procurasse, se lhe perdoasse e a mim mesmo os erros e as faltas do passado. Olhei-a de novo só para ter a certeza de que, desta vez, não mentia e aí, de modo absolutamente inesperado, Angélica voltou a gritar. A boca estava muito aberta, o olhar debochado e o corpo em pose obscena. Na intimidade do meu cérebro, aos gritos, Angélica revoltava-se com a minha próxima saída da cadeia e anulava-me com palavras assassinas, tal como antes. Jurei que não voltaria a olhar as figuras do tecto mas quando a porta se abriu para eu sair de vez, voltei para lá os olhos e pude ver Amadeu, sorrindo, com uma mão a tapar a boca e a outra a acenar-me um adeus. A seu lado, Adripo sorria também.

Fim

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 19/09/2011
Reeditado em 20/09/2011
Código do texto: T3228647
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