A Pequena Dona Que Não Volta Mais - Despedida da Inocência

Sentada em frente à janela, observo em fração de segundo os movimentos lá embaixo. Todos carregam os guarda-chuvas multicoloridos sob a chuva de prata que caía em estado de melancolia. O ar está funesto. É frio. Há vento outonal que sopra no meu rosto através da fresta da janela. Ouço a música celta, que vem do vizinho do andar de cima, e a melodia soa por todos os cantos do meu quarto. Meus olhos entristecem. Há um vazio interior dentro de mim que clama o sol; a luz do amor para encher o vazio que existe por dentro. A solidão me toma conta e isso me afligisse; mata-me e angustia.

Quero os risos dos amigos.

Quero vê-los brincar no quarto de minha pequena dona.

Ouvir as baboseiras que ela dizia. Mas, não. Aqui só há silêncio. Eles não aparecem, faz tempo que não os vejo mais.

Vivo apenas nos sonhos sublimes que vêm e vão. A realidade por si só é dura e terrível. Abro a janela. Penso que ela se foi.

Cadê a pequena dona que outrora me enchia de viver? Enchia de viver a vida com a sua alegria e risadas.

Olho lá embaixo e vejo os movimentos na calçada molhada. Ao lado, uma fila de carros no estacionamento, imóveis, sob a interminável chuva de prata, que reluz pelo reflexo da luz dos postes. É fundo; é alto; atordoa-me e fascina ao mesmo tempo.

Ando por sobre a cômoda e me vejo no espelho em forma oval ladeada de ouros folheados. Vejo apena um par de olhos de botões pretos, uma boca em forma de zíper e um nariz feito de bolhinha de algodão. Sou uma estranha boneca miúda que a dona deixou aqui, em um quarto vazio e triste.

Apenas uma cama pequena mal arrumada, uma mala vermelha e aberta cheia de roupas e um cheiro fétido no ar. A podridão que pairava no ar anunciava, havia uma morte ali. Há mancha de sangue perto da porta, mas ninguém aparece para limpá-la. Minha dona não aparece mais e nem me acompanha como costumava fazer. Sua companhia era agradável e deliciosa, mas agora tudo se foi. Estou sozinha em frente ao espelho. Sou uma estranha boneca, com feição feminina, porém bizarra, com alguns respingos vermelhos que a minha dona causou em mim antes de cair ao chão. Um homem com um martelo atingiu a sua cabeça e saiu sem se importar com corpo da dona caída ao chão. Ele voltou, e arrastou o corpo adormecido por sobre a poça de sangue. Ele a arrastou para fora, deixando um rastro de sangue e desapareceu, desde este instante, a porta permaneceu fechada; desde então, a música celta ainda toca, enchendo-me de emoção. Permaneço sozinha. Volto para a janela e olho lá embaixo. O barulho da chuva me intriga. O cheiro da água da chuva. O céu escurece. O quarto está em penumbra. Há sombras projetadas na parede que se formam figuras demoníacas, que amedronta e me deixa acuada.

Olho lá em baixo e vejo a dona, que me olha e me acena. Ela sorri para mim. Acena-me. Chama-me. Eu fico feliz. Ela voltou. Ela abre os braços, e me espera. As sombras atrás de mim chegam cada vez mais perto. Olho para dona que me chama...

Dei alguns passos, e meu corpo foi lançado em uma queda livre junto com as gotas da chuva prateada em direção a calçada molhada.

Cadê ela?

Cadê a minha dona? Para me segurar da queda? A dona... Sumiu!

Meu corpo espatifa.

Meu peito estoura e sai às entranhas feitas de algodão.

Meu corpo é destroçado por um bando de gatos, logo deixo de existir, assim como o corpo da pequena dona, que cheira a podridão, se transforma a carne de uma verdadeira morada de vermes.

Dênis Lenzi
Enviado por Dênis Lenzi em 04/09/2011
Código do texto: T3199874
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