Procissão

Lá vem o arrasta passos, os sinos, as flores, as imagens, as orações rodeadas a cantos. Lá vem a última rosa do sertão, irrigada pelas gotas de quem tem fé, de uma religião forte de quem zela por dias trazidos a chuva, sem o desconsolo e o medo da morte. O chão racha movido na separação, de um tempo de luta, de abstido, de um povo que aclama e implora em justiça do céu.

Aquele vulto entregue aos ventos e ao diabo. Era assim que minha família lembrava-se do pobre Jaó. Um desordeiro, um alcatraz sem coragem. Mas Jaó tinha uma coragem de mais de dez cangaceiros quando bebia. Em festas e bailes no povoado, garrafa de cana de um lado, mulher bonita do outro. Não precisava de muitas palavras. Jaó com as mulheres era um tiro certeiro. Seus filhos por ai a fora estão, perdidos ninguém sabe quantos.

Trabalho não era assunto com Jaó se não fosse sinhá Mariana. Sua mãe berrava aos trancos para ver o filho trabalhando. A Roça indo embora com a seca e Jaó se preocupava com as bebidas, a mesa de um boteco e uma boa morena do lado. Quando conheceu Cecília ainda era um vagabundo em progressão e a moça era a mais bela daquele brejo. Seus cabelos longos e soltos, seu corpo amarrado de desejos, de pensamentos e Jaó perdido no espaço. Não tinha muitas palavras, a cachaça não estava ali do lado. A mesma palavra conhecida Jaó repetia e Cecília o calava com um beijo. Namoravam bom tempo dos dias, não se largavam, era bonito, mas foi passageiro. Jaó logo se tornava de novo aquele velho vagabundo que comandava as procissões do povoado. Jaó era homem de fé. Isso ela tinha como ninguém. Desde criança gostava de ir às missas aos domingos, de ficar de joelhos por uma hora e alcançar o perdão das semanas. Ao amor verdadeiro, Jaó deixava a fé de lado e se lamentava calado.

Houve uma noite em que Jaó se despediu de Sinhá Mariana para mais uma procissão. Aquele abraço forte não era normal. E seus sentidos estavam para a rua, para somente comandar o caminho da multidão. Subiram ladeiras, andaram durante horas até se perderem ninguém sabe onde. Alguns dizem que a aquela procissão foi em busca da lua. Outros dizem que era o confinamento de Jaó, que se perdia em um beco escuro. Na verdade ele construíra uma escadaria, onde os degraus levavam aos portões do céu, onde ele entraria e repousaria seu cansaço, seu coração diante de paz, que pensava em não ter tão cedo. E o povo o seguia, diante daquela procissão gigantesca, homens, mulheres e crianças, ao mesmo passo do puxador, que não era Jaó, era a mão de nosso senhor, fazendo guia aos olhos dos pecadores. Mas, pisando nas nuvens, no tapete de entrada, metade da escadaria foi quebrada, e apenas para a entrada, só ficaram as crianças. Jaó se desesperou a queda, chorou feito menino novo, e vendo o purgatório de perto, gritou sua última lembrança: “Senhor, amanhã juro que irei trabalhar!”

Jaó de muamba, filho de sinhá Mariana, puxava a caminhada a velas na noite. Estórias de minha mãe lembravam Jaó um fracassado da terra, um desistente da moita de vida, a esperar pelo pão entregue a boca, de quem matava o tempo de cria, da cria do peito e juízo, da cria de agonia, de si, da velha sinhá Mariana, do encontro que teve com a morte, do seu pequeno e pobre funeral.

Lucas Alves de Araújo
Enviado por Lucas Alves de Araújo em 31/08/2011
Código do texto: T3192046
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