Há muitos e muitos anos, em uma fazenda no interior de Goiás, vivia uma linda jovem chamada Nair. Filha do coronel Amoroso Feitosa, rico fazendeiro da região, ela passava os dias a bordar seu enxoval, embora casar-se não fosse exatamente um sonho. Ao contrário, prometida ainda criança, mal conhecia seu noivo e, deste modo, cumpria a obrigação de forma resignada, vivia sem nenhum prazer.
Numa tarde, seu pai chegou excitadíssimo da cidade.
– Venha, querida! Venha ver seu presente de casamento!
Ela o seguiu até a parte de trás da carroça, onde se deparou com um negro alto e forte, amarrado aos estribos, vestindo apenas uma calça surrada de algodão cru. O pai falava-lhe sobre as qualidades do belíssimo espécime:
– Um ótimo reprodutor, filha! Logo vocês estarão vendendo suas crias... É lucro certo!
O rapaz permaneceu calado todo o tempo, olhando para o chão. Condoída pela postura humilde daquele homem, ela perguntou seu nome.
– Ora, filha! Que importância tem isso? É só um negro! – disse o pai, conduzindo-a de volta à casa.
O que o coronel não observou foi que, ao ouvir a voz dela, Juvenal levantou a cabeça e seus olhos se encontraram. Desde aquele instante, Nair tornou-se outra. Ainda dedicava parte de seu dia aos irritantes bordados, mas não perdia uma oportunidade de encontrar-se com Juvenal. Amavam-se. Definitiva e inequivocamente, amavam-se. E, desse amor proibido, às vésperas do casamento, a família percebeu que a barriga já ia enluarada de muito.
Trato desfeito e a honra maculada, o pai não perdoou. A filha, prendeu em casa e Juvenal foi amarrado ao tronco, onde apanhou até desmaiar.
– Deixa esse desgraçado, agora. – ordenou ao capataz. – Morto ele não me vale nada. Mas, capa o animal, que ele não vai viver de cobrir fêmea, não! Quero ver definhar na lavoura!
No mesmo dia, vendeu o escravo. Dentre os pretendentes para a compra, deu preferência ao que tinha fama de mais cruel no trato dos crioulos.
Depois de passar dois dias em febre, o lombo moído da ponta do chicote, Juvenal foi colocado no eito, grilhões nos pés, açoite nas costas. E, um único pensamento: encontrar Nair e o filho. Fugir com eles para um quilombo, onde seriam felizes.
A notícia chegou-lhe por acaso, ouvida numa conversa entre as mucamas que lavavam roupas na beira do rio:
– Depois, dizem que nosso senhor é que é mau...
– Que absurdo! Fazer isso à própria filha... Pobre Nair.
O nome o fez estremecer.
– Nair? – perguntou aflito às mulheres, assustando-as com sua intromissão.
Pensaram em despachá-lo dali. Se o feitor as visse conversando com ele, poderiam ser castigadas. Mas o olhar ansioso dele as comoveu e elas lhe contaram que, chegado o tempo do parto, o pai mandou Nair à senzala.
– Que é lugar de preto nascer, ele disse! – atalhou uma delas, mais espevitadinha.
Todas falavam ao mesmo tempo e ele tentava entender aquela algaravia:
– … os escravos ajudaram...
– … o velho Toim aplicou as ervas...
– … dona Sebastiana benzedeira rezou...
– … mas, a menina perdeu muito sangue e não resistiu.
Juvenal encolheu-se, como se atingido por um soco. Todas as passagens pelo tronco não doeram tanto quanto esta notícia. Enfim, perguntou, num fio de voz:
– E o bebê?
– Diz que era lindo! Um mulatão.
– Mas o avô mandou matar! – completou a espevitada.
O coração de Juvenal encheu-se de ódio e, desse dia em diante, trabalhava com raiva, comia com raiva, dormia com raiva e até seus sonhos eram raivosos pesadelos sobre chacinas sangrentas em que se vingava do coronel.
A oportunidade surgiu quando estourou uma revolta na senzala. Aproveitando-se da confusão, ele conseguiu fugir com outros escravos.
Já na estrada, os outros o chamaram para seguir com eles à procura de um quilombo.
– Tenho outros planos. – respondeu, soturno.
– Deixe disso, homem! Vingança não vai trazer a moça de volta.
Ele não respondeu, embrenhando-se na mata com a agilidade de um animal selvagem. Passou alguns dias escondido próximo à propriedade dos Amoroso Feitosa. Conhecia bem aquelas terras e, conseguindo despistar os perdigueiros do seu senhor, acomodou-se numa pequena gruta a poucos metros do atalho que o coronel usava para chegar à Vila. Foram dias de tocaia, alimentando-se de frutos e pequenos animais. Enfim, numa tardezinha muito fria, viu aproximar-se um vulto, a cavalo. Apurou bem as vistas e conseguiu identificá-lo imediatamente.
– Coronel! – murmurou, entre dentes.
Escondeu-se e, quando o homem ia passando, jogou-se sobre ele, derrubando-o de sua montaria. Lutaram no chão até que o coronel alcançou a faca em sua algibeira, e, num golpe certeiro, feriu-o mortalmente. Agonizante, juntando o que lhe restava de forças, Juvenal tomou-lhe a arma e desferiu-lhe igual injúria. Os dois caíram em seguida, olhando-se com rancor, quando uma figura feminina apontou no caminho, iluminada por uma aura incandescente. Eles a acompanhavam delirantes, enquanto ela se aproximou.
– Nair! – gritaram, em uníssono.
– Tolos! – ela disse e, embora o tom fosse de reprimenda, carregava muito mais pesar do que zanga.
Ambos tentaram balbuciar suas defesas e foram interrompidos por ela, que carregava o pequenino filho nos braços:
– Meu pai! Tua cegueira foi o meu fim e será ela tua herança.
O velho chorava.
Ela virou-se para Juvenal:
– Como pode um ser tão pleno de amor, carregar oculto tanto ódio? Serás lembrado pela ambigüidade de teu coração.
Antes que ele pudesse falar alguma coisa, ela desapareceu.
No dia seguinte os corpos foram encontrados e, por ordem da mãe de Nair, enterrados ao lado do túmulo da filha.
Da negra mancha de sangue deixada pelo coronel, surgiu o avelós, um arbusto espinhento, cujo leite venenoso, em contato com os olhos, provoca a cegueira.
E no local onde jazia o corpo do jovem escravo, brotou uma árvore pequena, feia e retorcida, que, na temporada das chuvas, encheu-se de frutos. Cada um deles, quando cortado, espalhava pelo ambiente um indisfarçável odor adocicado e exibia um caroço amarelo vivo, macio e saboroso, dentro do qual escondem-se milhares de espinhos.
Assim nasceu o pequi.
Numa tarde, seu pai chegou excitadíssimo da cidade.
– Venha, querida! Venha ver seu presente de casamento!
Ela o seguiu até a parte de trás da carroça, onde se deparou com um negro alto e forte, amarrado aos estribos, vestindo apenas uma calça surrada de algodão cru. O pai falava-lhe sobre as qualidades do belíssimo espécime:
– Um ótimo reprodutor, filha! Logo vocês estarão vendendo suas crias... É lucro certo!
O rapaz permaneceu calado todo o tempo, olhando para o chão. Condoída pela postura humilde daquele homem, ela perguntou seu nome.
– Ora, filha! Que importância tem isso? É só um negro! – disse o pai, conduzindo-a de volta à casa.
O que o coronel não observou foi que, ao ouvir a voz dela, Juvenal levantou a cabeça e seus olhos se encontraram. Desde aquele instante, Nair tornou-se outra. Ainda dedicava parte de seu dia aos irritantes bordados, mas não perdia uma oportunidade de encontrar-se com Juvenal. Amavam-se. Definitiva e inequivocamente, amavam-se. E, desse amor proibido, às vésperas do casamento, a família percebeu que a barriga já ia enluarada de muito.
Trato desfeito e a honra maculada, o pai não perdoou. A filha, prendeu em casa e Juvenal foi amarrado ao tronco, onde apanhou até desmaiar.
– Deixa esse desgraçado, agora. – ordenou ao capataz. – Morto ele não me vale nada. Mas, capa o animal, que ele não vai viver de cobrir fêmea, não! Quero ver definhar na lavoura!
No mesmo dia, vendeu o escravo. Dentre os pretendentes para a compra, deu preferência ao que tinha fama de mais cruel no trato dos crioulos.
Depois de passar dois dias em febre, o lombo moído da ponta do chicote, Juvenal foi colocado no eito, grilhões nos pés, açoite nas costas. E, um único pensamento: encontrar Nair e o filho. Fugir com eles para um quilombo, onde seriam felizes.
A notícia chegou-lhe por acaso, ouvida numa conversa entre as mucamas que lavavam roupas na beira do rio:
– Depois, dizem que nosso senhor é que é mau...
– Que absurdo! Fazer isso à própria filha... Pobre Nair.
O nome o fez estremecer.
– Nair? – perguntou aflito às mulheres, assustando-as com sua intromissão.
Pensaram em despachá-lo dali. Se o feitor as visse conversando com ele, poderiam ser castigadas. Mas o olhar ansioso dele as comoveu e elas lhe contaram que, chegado o tempo do parto, o pai mandou Nair à senzala.
– Que é lugar de preto nascer, ele disse! – atalhou uma delas, mais espevitadinha.
Todas falavam ao mesmo tempo e ele tentava entender aquela algaravia:
– … os escravos ajudaram...
– … o velho Toim aplicou as ervas...
– … dona Sebastiana benzedeira rezou...
– … mas, a menina perdeu muito sangue e não resistiu.
Juvenal encolheu-se, como se atingido por um soco. Todas as passagens pelo tronco não doeram tanto quanto esta notícia. Enfim, perguntou, num fio de voz:
– E o bebê?
– Diz que era lindo! Um mulatão.
– Mas o avô mandou matar! – completou a espevitada.
O coração de Juvenal encheu-se de ódio e, desse dia em diante, trabalhava com raiva, comia com raiva, dormia com raiva e até seus sonhos eram raivosos pesadelos sobre chacinas sangrentas em que se vingava do coronel.
A oportunidade surgiu quando estourou uma revolta na senzala. Aproveitando-se da confusão, ele conseguiu fugir com outros escravos.
Já na estrada, os outros o chamaram para seguir com eles à procura de um quilombo.
– Tenho outros planos. – respondeu, soturno.
– Deixe disso, homem! Vingança não vai trazer a moça de volta.
Ele não respondeu, embrenhando-se na mata com a agilidade de um animal selvagem. Passou alguns dias escondido próximo à propriedade dos Amoroso Feitosa. Conhecia bem aquelas terras e, conseguindo despistar os perdigueiros do seu senhor, acomodou-se numa pequena gruta a poucos metros do atalho que o coronel usava para chegar à Vila. Foram dias de tocaia, alimentando-se de frutos e pequenos animais. Enfim, numa tardezinha muito fria, viu aproximar-se um vulto, a cavalo. Apurou bem as vistas e conseguiu identificá-lo imediatamente.
– Coronel! – murmurou, entre dentes.
Escondeu-se e, quando o homem ia passando, jogou-se sobre ele, derrubando-o de sua montaria. Lutaram no chão até que o coronel alcançou a faca em sua algibeira, e, num golpe certeiro, feriu-o mortalmente. Agonizante, juntando o que lhe restava de forças, Juvenal tomou-lhe a arma e desferiu-lhe igual injúria. Os dois caíram em seguida, olhando-se com rancor, quando uma figura feminina apontou no caminho, iluminada por uma aura incandescente. Eles a acompanhavam delirantes, enquanto ela se aproximou.
– Nair! – gritaram, em uníssono.
– Tolos! – ela disse e, embora o tom fosse de reprimenda, carregava muito mais pesar do que zanga.
Ambos tentaram balbuciar suas defesas e foram interrompidos por ela, que carregava o pequenino filho nos braços:
– Meu pai! Tua cegueira foi o meu fim e será ela tua herança.
O velho chorava.
Ela virou-se para Juvenal:
– Como pode um ser tão pleno de amor, carregar oculto tanto ódio? Serás lembrado pela ambigüidade de teu coração.
Antes que ele pudesse falar alguma coisa, ela desapareceu.
No dia seguinte os corpos foram encontrados e, por ordem da mãe de Nair, enterrados ao lado do túmulo da filha.
Da negra mancha de sangue deixada pelo coronel, surgiu o avelós, um arbusto espinhento, cujo leite venenoso, em contato com os olhos, provoca a cegueira.
E no local onde jazia o corpo do jovem escravo, brotou uma árvore pequena, feia e retorcida, que, na temporada das chuvas, encheu-se de frutos. Cada um deles, quando cortado, espalhava pelo ambiente um indisfarçável odor adocicado e exibia um caroço amarelo vivo, macio e saboroso, dentro do qual escondem-se milhares de espinhos.
Assim nasceu o pequi.
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Texto escrito para o 7° Desafio Literário da Câmara dos Deputados
Categoria Contos - Etapa 5.
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