Luciana Solidão

A janela entreaberta deixa o ar fresco da madrugada entrar. Pela fresta, a luz da lua banha a cama no quarto escuro, e permite ver a pessoa adormecida no seu leito. A moça está deitada de lado, com a mão ocultando parcialmente seu rosto. Seus cabelos estão espalhados no travesseiros, revoltos. Ao lado da cama uma mesinha sustenta um relógio de números fosforescentes, um abajur pequeno e um livro.

De repente, perturbada por algum sonho obscuro, Luciana acorda assustada. Depois de piscar um par de vezes, acende o abajur. O problema de acordar é que ela sente de novo toda a dor do seu coração. Com uma careta de tristeza, ela se levanta, vai até a cozinha da sua quitinete e bebe um copo de água gelado. Depois volta à cama, consciente de que vai ser difícil voltar a dormir. Por isso, pega o livro e começa a ler. De vez em quando seus pensamentos se afastam das palavras impressas, e voam longe, trazendo lembranças de dores passadas, preocupações, perguntas sem resposta.

Luciana mora sozinha. Mas isso em si não é problema, já que ela sempre viveu em uma casa abarrotada de pessoas, sua família, a família do seu tio e ainda seus avós. Morar sozinha é uma mudança agradável. O problema é que Luciana se sente imensamente só por dentro. Nem em companhia de seus amigos, nem quando está de visita na casa da sua família, ela se sente acompanhada. Seu coração virou um enorme vazio dentro do peito, uma dor aguda que a acompanha o tempo todo enquanto está acordada.

A sua solidão é algo muitas vezes oprimente. Luciana sai, em busca de companhia, liga para a mãe, chama os amigos para passear, e durante breves instantes se distrai. A sua melhor amiga, Marcela, lhe disse que deve procurar alguém, que um amor é o que lhe faz falta. Mas ninguém entende, ninguém sabe ler dentro do coração que há muito tempo ela ocultou da vista dos outros. Sua vida é uma rotina, um levanta-vai trabalhar-volta-dorme-acorda...

Porém, ela sabe a causa da sua solidão. Ela não consegue confiar em ninguém. Até seus melhores amigos conhecem só aspectos periféricos da sua vida. Ao longo da sua vida ela sofreu humilhações, sofreu burlas por causa da sua estatura, o seu peso, por usar aparelho nos dentes, por não ser esbelta como suas colegas, por gostar de estudar, porque seus irmãos eram mais sociáveis e mais colaboradores. E com cada golpe da vida, com cada palavra cortante, que penetrava em seu coração causando uma ferida queimante, ela construiu ao seu redor uma barreira, um muro de solidão que a protegesse das burlas e das críticas, até que deixou de se importar com as zoações, e as palavras pungentes não mais a feriram. E nunca mais deixou ninguém se aproximar. Exteriormente continuou a ser uma pessoa normal, correndo atrás da sua vida, mas por dentro o coração começou a pesar. E à medida que se afastava das pessoas, seu coração doía mais.

João tinha sido seu único amor. Ele, com muita paciência, com um tratamento carinhoso e muito respeito, tinha conseguido fazer uma brecha no muro de desconfiança e solidão que ela tinha construído, e a fez abandonar a desconfiança que ela tinha para com o resto do gênero humano. Ele encheu a sua vida, e seu lar passou a ser cheio de alegria, de risadas, de conversas até tarde na madrugada, de companheirismo e cumplicidade, algo que ela nunca tinha experimentado realmente. Passaram juntos dois anos, até que uma noite, passeando pela rua de volta para casa, depois de um jantar de comemoração do aniversário de namoro, alguns bandidos os abordaram em uma esquina escura, roubaram seu dinheiro e seus celulares, e dispararam um tiro em cada um. João não conseguiu sobreviver ao ferimento no peito, perto do coração. O dela tinha sido mais superficial, e se recuperou rápido. Mas a ferida que a morte de João provocou foi mais profunda do que a bala tinha sido. E para sempre Luciana se fechou na sua dor, reconstruindo, mais solidamente, o seu antigo muro de solidão. E seu coração ficou doendo, com uma dor que às vezes parecia que enchia todo o seu ser.

Depois de um tempo, ela até que se acostumou à dor. Sua rotina preenchia os vazios, e ela levava uma agenda metódica das suas atividades. Cada minuto do seu dia estava ocupado, em intentos desesperados, e algumas vezes inúteis, de silenciar o seu coração, e de esquecer o peso que a abrumava. Quando saia com seus amigos, ria, bebia, conversava e dançava como todos os outros. Quando estava trabalhando procurava fazer as coisas com atenção, aperfeiçoando cada detalhe. Por isso seu chefe a adorava, e já estava na lista de promoções. Mas ela não fazia isso por competência com seus colegas ou para ascender de posto. Ela simplesmente procurava esquecer, apagar com cada folha de trabalho as lembranças de João, o gosto dos seus beijos, o calor dos seus abraços, o som da sua voz.

Quando João morreu, a família de Luciana lhe pediu para voltar para casa. Mas ela não quis. Ainda que seu coração tivesse se desfeito como uma roupa rasgada quando ela entrou de novo na sua quitinete e não encontrou mais ninguém, ainda que suas primeiras noites tivessem sido um lento passar de horas sem sono em uma cama fria, ela preferia isso. Ela queria fazer da solidão, de novo, e agora para sempre, a sua única companheira. Pensava que não valia a pena se abrir aos outros, porque se abrir causava só mais dor, e que ela já tinha bastante com a que estava suportando agora.

A solidão estava agora presente em cada canto do pequeno espaço em que ela morava. Estava atrás das cortinas, esperando por ela no banheiro, assediando-a enquanto ela esquentava seu café, dando-lhe as boas vindas quando ela voltava do trabalho. E não só na sua casa, nos seus olhos também era possível ver a profunda solidão que a embargava.

Algumas vezes Luciana se perguntava o que iria ser da sua vida. Até quando iria resistir tanta solidão. E tanta dor. E quando essas perguntavam enchiam sua mente ela se sentia angustiada. Porque não tinha a resposta. E onde quer que olhasse, só via a solidão que ela mesma tinha construído ao seu redor, e dentro de si só sentia sua dor. Às vezes ela queria esquecer de tudo, simplesmente fechar os olhos e esperar que, quando os abrisse, tudo fosse diferente... e quem talvez, João voltasse e a acordasse desse longo pesadelo...

Depois de ler até perceber as primeiras luzes da aurora, Luciana sentiu sono de novo, e decidiu aproveitar o pouco de tempo que ainda tinha para descansar. Fechou o livro e deitou de novo, depois de fechar bem a cortina para impedir que a luz da aurora enchesse seu quarto. Seus olhos se fecharam, e ela caiu de novo no esquecimento temporal que é o sono.

Viviana Carolina
Enviado por Viviana Carolina em 09/08/2011
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