A Queda do Reino do Norte
O cavalo dava sinais visíveis de extrema exaustão. Começou a tropeçar nas pedras, quase derrubando aqueles que carregava. Por outro lado, as montarias dos guerreiros em perseguição não dão o menor sinal de sofrerem desse mesmo mal.
Não havia mais chance de escapar deles. Se ao menos o pobre animal em que essa pequena família – o guerreiro, sua esposa e a pequena filha de ambos – depositaram suas esperanças de fuga pudesse resistir mais meia légua, teriam chegado ao cais do grande rio do norte e de lá apanhado alguma pequena embarcação e logrado, assim, salvarem-se daquele massacre.
Uma casa surgiu na curva da estrada, exatamente quando o cavalo por fim sucumbiu ao cansaço e tombou abatido. O ruído dos cascos de seus perseguidores continuava se aproximando cada vez mais. Nada restava a fazer exceto se dirigir à pequena edificação, por mais que ela não oferecesse esperanças.
Enquanto o guerreiro erguia sua esposa e pegava a filha nos braços, não conseguiu evitar que a mente viajasse para longe, revendo cada uma das cenas dos últimos e conturbados dias. Era mais do que a dor, mais do que a raiva, mais do que a frustração. Acima disso tudo se erguia uma gigantesca onda de incredulidade e incapacidade de compreender o rumo que as coisas tomaram. Acima de tudo, ele estava profundamente intrigado.
Não fazia nem duas semanas que tudo estava em paz. Ele não era um fugitivo, e sim o senhor de um poderoso reino. Não estava tentando se abrigar numa ridícula cabana, mas residia num imponente palácio bem protegido por uma fortaleza e mais de trinta mil guerreiros. E mais importante ainda, se sentia em paz finalmente, após quase vinte anos consecutivos de guerra. Tudo estava bem. Suas terras totalmente pacificadas e organizadas, e, mais importante ainda, finalmente seu novo reino estava recebendo reconhecimento e confiança – assim pensava ele – das demais grandes nações do mundo, como o enorme e poderoso reino do Sul, dono do melhor exército do continente, e o reino das Ilhas, maior comerciante do mundo e dono da melhor marinha militar. Até mesmo uma cidade comercial já estava estabelecida e vários acordos prestes a serem fechados.
E então, subitamente, a morte e destruição caíram com toda sua força sobre o país do norte, quase como se fosse um julgamento divino.
Aquele dia jamais poderá sair da memória de quem sobreviveu a ele. Era apenas mais um dia normal no reino, começando com a típica neblina matinal. A cidade ganhava vida, sons e cheiros. Soldados se exercitavam e faziam seus turnos de ronda pela cidade, e o rei acordava feliz ao lado de sua bela esposa após mais uma noite de amor, e juntos iam ao quarto da pequena filha, cuidar dela. Mais um dia normal, até que soou o alarme na fortaleza.
Inimigo se aproximando!
Mas de onde viria esse inimigo? Quem poderia ousar se erguer contra eles? Toda a resistência havia sido aniquilada. Nos últimos vinte anos de guerra todo e qualquer pequeno reino, feudo, guerrilha de bandidos e invasores das terras do gelo além do estreito marítimo haviam sido subjugados! Não havia nenhum líder em todo o norte que pudesse reunir sequer mil homens para desafiar o grande rei. E até onde ele sabia, estava em paz com as potências do grande continente, até mesmo estando já cada vez mais entrosados comercialmente. E mesmo se eles o quisessem atacar, a distância era muito grande entre suas terras e as dos senhores do Sul, nenhum ataque poderia ser desferido tão rapidamente. Ao menos era o que o rei pensava.
Ainda assim deu a ordem para que o exército entrasse em formação, mesmo achando que não devia ser algo sério aquele alarme. Na realidade, apenas parte do exército, pois muitos soldados moravam também na área rural e levaria ao menos um dia inteiro para poder reunir a totalidade de suas forças. Segundo relatos dos vigias, uma força inimiga desconhecida estava cruzando a fronteira sul do reino. O rei se preparou para conduzir os soldados que pôde reunir rapidamente na própria fortaleza, quase dez mil soldados, e se colocaram em marcha para onde estaria começando a suposta invasão.
O Rei despediu-se de sua rainha com um beijo e recebeu dela um lindo sorriso acompanhando os desejos de que ele voltasse são e salvo. Mal sabia que foi a ultima vez que a viu sorrir assim.
Colocou-se em marcha e passou com seus soldados para o lado externo da muralha de sua capital-fortaleza, pegando a estrada para o sul. E então o desastre começou.
Haviam marchado por 5 horas e chegado a um trecho onde a estrada precisava passar por um vale. Os fortes homens do norte marchavam ao som de seus tambores e entoando musicas alegres, afinal, esperava-se que quem quer que tenha ousado desafiar a soberania do lendário Rei-Urso – alcunha do rei do norte – fosse facilmente esmagado, como todos os que anteriormente tentaram o mesmo. E então eis que se ouviu uma explosão de sons, de todos os lados, ecoando em todo o vale. Clarins, tambores e um enorme grito de combate ergueram-se de todos os lados.
Imediatamente o Rei ordenou que suas tropas parassem a marcha e formassem um circulo defensivo de escudos e levou sua pequena cavalaria para o ponto mais alto que pode, já quase saindo do vale. Ainda estava perplexo por não saber quem poderia ter tamanha audácia de armar uma emboscada para ele. Quem poderia ter chance de vencê-los? Para espanto e pânico de todos os guerreiros do norte, a resposta não tardou em surgir diante da vista.
Tambores e clarins ficaram cada vez mais altos, e logo se podia ouvir o som de pés marchando. Milhares, dezenas de milhares, a julgar somente pelo ruído. Gritos de guerra inimigos estavam ferindo os ouvidos. Cascos galopantes tornaram-se audíveis, e, por fim, os desafiantes surgiram no alto dos morros daquele vale.
Fechando ambos os lados da estrada, cavaleiros muito bem equipados entravam em formação de ataque. E diante deles seguida o estandarte com um símbolo já muito temido no mundo: O escudo e a lança negros sobre um campo vermelho, a bandeira do poderosíssimo reino do Sul, o mais militarizado do mundo, onde os jovens começavam seu treinamento em técnicas de combate e artes marciais aos sete anos de idade. E ao lado do estandarte, estava ninguém menos do que o rei do sul e seu general mais respeitado.
Tentar conversar, negociar algum acordo, descobrir a razão daquele ataque foram às primeiras inclinações do Rei-Urso, mas não houve tempo para concretizar nenhuma delas. Um sinal feito pelo general do rei sulista e os estandartes retransmitiram a ordem de ataque.
Da posição privilegiada no topo dos morros os temíveis arqueiros do sul começaram a castigar duramente seus inimigos concentrados logo abaixo. Felizmente a formação defensiva em forma de circulo ordenada pelo rei estava quase completa, e boa parte do dano que os arqueiros normalmente teriam causado pôde ser neutralizado. Ainda assim, a manobra não tinha sido completada e ao menos um destacamento, de aproximadamente 500 homens não pode se proteger a tempo, e as impiedosas flechas tomaram-lhes a vida. Ele estudava como era possível realizar algum contra-ataque. Pensava em ordenar que sua infantaria começasse a avançar ainda na formação de parede de escudos em direção ao destacamento de cavalaria que estava bloqueando a estrada por onde vieram. Se conseguissem chegar lá, teriam que passar por uma curva da estrada e isso os colocaria a salvo dos arqueiros e permitiria que lutassem somente de frente contra o inimigo, sem receio de outros golpes, e enquanto isso ele com sua cavalaria defenderia a retaguarda.
Mas quando ia dar a ordem percebeu que um novo estandarte sinalizando outro comando estava hasteado, e não tardou descobrir para que aquele servia. Os arqueiros recuaram. Não tinha mesmo sentido ficar inutilmente crivando de flechas os robustos escudos dos homens do norte. No lugar deles, catapultas de pequeno alcance foram posicionadas rapidamente (os soldados do sul eram lendários por sua perícia com artilharia) e logo a infantaria do norte abrigada e encurralada em seu circulo defensivo começou a ser golpeada com pesadas pedras e projéteis incendiários. Evidentemente a formação não tardou a se desmanchar, e nesse momento novamente arqueiros entraram em ação.
O rei chorou ao ver o extermínio de seus guerreiros, e, desesperado, ordenou que avançassem a todo custo em direção à curva da estrada, pois se ficassem ali no centro do vale não haveria qualquer chance de um sequer sobreviver. No entanto, o plano do inimigo estava muito bem traçado, e mal os guerreiros do norte começaram seus movimentos, outro toque de clarim silenciou as baterias de arqueiros e projéteis das maquinas; uma carga de cavalaria já estava quase atingindo os soldados do rei-urso, e os sulistas já não necessitavam dos arqueiros. A formação defensiva estava rompida, os soldados estavam desorganizados. A cavalaria do Sul passou por eles como um vento de tempestade. Aproximadamente quatro mil cavaleiros muito bem equipados golpearam os cerca de seis mil desorganizados guerreiros do norte. Ao mesmo tempo, a segunda onda de cavalaria, no lado oposto do vale, começou a galopar para o ataque, visando enfrentar a cavalaria do Rei e definir de vez o combate.
Na realidade, a luta já estava perdida antes mesmo de começar. A noticia da invasão num ponto distante da fronteira obviamente havia sido forjada, tendo por objetivo fazer com que eles abandonassem a proteção da fortaleza e tivessem que passar por uma estrada naturalmente propícia para uma emboscada dessas. Não havia como vencer. O rei não teve escolha a não ser lutar para sair daquele vale mortífero com o máximo que pudesse salvar de sua cavalaria, para tentar se juntar ao restante das tropas e oferecer alguma resistência. E mesmo esse vergonhoso objetivo – simplesmente conseguir escapar – já parecia algo impossível. A esperança de sobreviver minguava cada vez mais.
Mas então a salvação inesperada surgiu! Novos gritos de guerra foram ouvidos à distância, mas dessa vez não eram novos inimigos. Era o grito de guerra de homens do norte! Novamente o chão tremeu e o som de uma enorme força a cavalo aproximando-se foi ouvido. O irmão do Rei-Urso e seu principal general surgiu com seu exército montado de quase oito mil bravos guerreiros. Como ele soube da necessidade de auxilio ao irmão era um mistério, mas era uma ajuda mais do que bem-vinda. O exército sulista não esperava que qualquer outra força de combate entrasse no campo e por isso sua retaguarda não estava muito bem guarnecida. Executaram uma manobra defensiva, mas não rápido o suficiente para escapar daquela poderosa carga de cavalaria, e pelo menos dois mil soldados sulistas pereceram nela, especialmente arqueiros, pois o irmão do rei atacou com maior intensidade esses destacamentos, que tantas perdas já haviam causado, silenciando também a artilharia. Tomados por um novo ânimo, o rei e seus cavaleiros atacaram a força diante deles, que bloqueava a estrada. Pegaram os inimigos aturdidos e confusos com o ataque inesperado, e não foi difícil dispersá-los causando grandes perdas.
Assim, escaparam do vale. Contudo o prejuízo ainda era grande. Dos dez mil homens que entraram naquela estrada entre as montanhas, somente cerca de dois mil e quinhentos saíram vivos e em condições de ainda lutar ou recuar com velocidade.
Agora novamente em lugar alto e plano, puderam contemplar a força inimiga em sua totalidade. E perceberam que tiveram sorte por chegar até ali. O exército inimigo tinha pelo menos trinta mil homens. Eles foram atacados somente pela vanguarda das forças sulistas, evidentemente porque o restante das tropas não pôde se posicionar a tempo.
Com a retaguarda da vanguarda inimiga derrotada e dispersada pelos reforços, agora os dois exércitos estavam separados por aproximadamente quatro quilômetros. Os cavaleiros do irmão do rei rapidamente se agruparam e recuaram para junto do que sobrou das forças, mantendo-se prontos para lutar novamente ou recuar. Ambos os exércitos estavam se reorganizando enquanto cada líder decidia que ordem dar: continuar o combate ou recuar.
- Que feliz acaso te trouxe até aqui, meu irmão? Perguntou o Rei.
- Apenas um pressentimento, meu irmão. Senti que havia algo nessas noticias de invasão que não soava bem. Então reuni minha própria força e também despachei a ordem para todas as nossas províncias solicitando o imediato agrupamento da totalidade de nossos exércitos. Acredito que pelo menos mais quinze mil homens estarão prontos para o combate hoje, e em dois dias teremos nossa força completa pronta para ação.
- Será perfeito! Fizeste muito bem, meu valoroso irmão e companheiro! Com nossos cinquenta mil homens prontos para a luta até mesmo o lendário reino do Sul será obrigado a recuar! Estamos em nossa própria terra, não vamos ser derrotados aqui. Essa traição deles não ficará impune! Mas hoje nós infelizmente fomos derrotados, precisamos recuar!
Com isso, a ordem foi dada e a força restante do norte começou a voltar para a sua capital. Esperavam ter de enfrentar ferrenha resistência dos sulistas. Não achavam que deixariam suas presas escaparem assim tão facilmente. Mas o inimaginável aconteceu, e eles não deram ordem de perseguição. Permaneceram parados.
Finalmente seria a sorte a sorrir para os guerreiros do norte após aquele impiedoso massacre? Sem esperar para compreender o motivo do estranho recuo inimigo, rumaram de volta para a capital. Tinham muito que fazer. Agora havia guerra entre o sul e o norte! Os planos de contra-ataque já se desenhavam na prodigiosa mente do Rei-Urso. E com seu irmão ao lado, exímio guerreiro e comandante, não conseguia duvidar do sucesso. Mal sabiam que a catástrofe estava somente começando.
Como relatado, a reunião da força militar do norte já estava bem avançada e o Rei já tinha desenvolvido com seu irmão um plano de ataque aos invasores se servindo dos conhecimentos da região e suas defesas naturais. Batedores ficaram de prontidão durante todo o tempo e informaram que o inimigo tinha se reagrupado com o restante de suas forças e agora seguiam sem pressa para a capital do norte, protegendo-se com cuidado em seu avanço. Sem duvida não pretendiam ser vitimas de nenhum ataque surpresa como aquele lançado pelo irmão do Rei do norte. Na atual rota do exército inimigo, a estrada para a capital iria passar por um desfiladeiro onde qualquer força militar acabaria ficando vulnerável. E agora, com a força total reunida graças à competência de seu irmão e braço direito, o Rei-Urso ainda dispunha de vantagem numérica.
Dois dias após o primeiro combate, o Rei saiu novamente de seus portões dessa vez liderando quase cinquenta mil bravos e fortes guerreiros, pretendendo esmagar o pretencioso e traidor inimigo. Os soldados marchavam confiantes. Seu líder havia sido pego desprevenido e em posição desvantajosa. Agora a lenda viva estava em seu elemento, tomando a iniciativa no ataque! Era impossível que o homem que subjugou sozinho aquele país anteriormente tomado pelo caos fosse derrotado numa batalha justa, de igual pra igual.
Para a guerra e expectativa de vitória marchavam eles, deixando suas mulheres e crianças esperançosas atrás de si, aguardando logo reverem seus maridos e ouvirem histórias gloriosas sobre combates e vitórias.
Marcharam durante toda aquela manhã, confiantes, até que dois batedores alcançaram o corpo principal do exército. Ambos estavam muito sujos feridos, um alias parecia prestes a morrer, com três flechas transpassando seu corpo. Mas mais impressionante que os ferimentos era o terror estampado na face dos mesmos. Imediatamente foram levados à presença do Rei.
- Meus filhos, o que houve? Por que estão assim? De que destacamento do exército vieram?
- Senhor Rei, nós somos talvez os únicos sobreviventes da força militar responsável pela proteção do litoral. Fomos massacrados, senhor!
- Como assim, da força do litoral? Ela não foi convocada para a guerra. Era pra ficar permanentemente estacionada na costa, não importa o que acontecesse! Que comandante levou os soldados de lá para enfrentar os sulistas?
- Mas meu Rei, nós nunca abandonamos o nosso posto. E não foi o Reino do Sul que nos atacou. Acordamos com o nosso litoral tomado por milhares de navios inimigos! Barcos a perder de vista. E então eles atacaram nossa guarnição. Chuvas de flechas, dardos incendiários e projéteis lançados de trabucos (nota: um tipo de catapulta) assolaram nossa guarnição, impedindo que oferecêssemos resistência ao desembarque do exército do Reino das Ilhas. Meu senhor, devem ter saído pelo menos quarenta mil guerreiros daquela armada. Tentamos oferecer resistência, mas o que apenas dois mil guardas costeiros poderiam fazer contra essa força? Fomos cruelmente esmagados, meu rei. E após passar por nossa resistência o inimigo aparentemente de dirigiu direto para a capital!
O rei simplesmente sentiu-se perdendo o chão. Seu mundo estava desmoronando. “Desde quando esse ataque conjunto estava planejado? Foi muito sincronizado! Ataque por terra pela fronteira para atrair minhas forças e depois um ataque desse porte pelo mar não podem ser executados sem um longo planejamento! Será que desde o começo da aliança comercial o objetivo já era me destruir?” Essas e outras perguntas tomaram de assalto à mente do Rei. Ele sequer sabia o que dizer. Foi seu irmão que teve que assumir as rédeas da situação. Era inútil continuar perseguindo o inimigo invadindo pelo sul. A única esperança era recuar para a capital-fortaleza e defende-la.
Marcharam rapidamente os soldados do norte. Nada como saber do risco que suas famílias corriam para motivar e espantar cansaço. Fizeram o caminho de volta duas horas mais rápido do que o tempo normal de viagem, mas infelizmente para eles não rápido o bastante. Quando a estrada fez a ultima curva deixando o exército na parte plana e reta que conduzia direto à cidade, já avistaram ao longe uma coluna de fumaça erguendo-se alta. O inimigo havia chegado primeiro!
Imediatamente toda a disciplina nas fileiras do norte foi jogada para o alto e todos os homens do exército correram sem ordem o mais rápido possível em direção à cidade. O único pensamento de cada soldado era chegar o mais velozmente possível na cidade e tentar salvar sua família da destruição.
O inimigo contava com esse efeito, esperava essa reação. Foi, aliás, o motivo para o exército das ilhas decidir atacar a capital. Seria muito mais difícil enfrentar aqueles cinquenta mil homens se eles estivessem organizados e preparados para o combate. Mas eles corriam sem ordem, e os arqueiros e cavaleiros estavam prontos em uma pequena elevação próxima ao portão da fortaleza, esperando somente os alvos entrar no alcance. Sem ter como formar uma parede de escudos, as flechas precisas dos homens do oeste ceifaram rapidamente centenas ou até mesmo milhares de vidas. E como se fosse uma reprise da derrota sofrida antes dessa, destacamentos de cavalaria também estavam de prontidão para atacar, aproveitando-se das brechas nas fileiras, feitas pelos arqueiros. Novamente mais vidas perdidas quase sem poder oferecer resistência.
Entretanto, o Rei-Urso subitamente despertou de seu torpor e conclamou seus guerreiros a oferecerem resistência, e ouvindo sua voz e seus tambores de batalha, a grande maioria parou de correr sem ordem e assim ele pôde organizar suas forças. O invasor havia subestimado a força do norte! Com as fileiras novamente compactas, rechaçaram a vanguarda do Reino das Ilhas, matando muitos de seus cavaleiros. O recuo deles foi prontamente ordenado.
Isso abalou os planos de vitória rápida do senhor das forças ocidentais. Soaram toques de clarins sinalizando provavelmente ordens de agrupamento da infantaria para enfrentar o inimigo. Contudo, apesar de atrasados, os homens do norte não tinha chegado tão tarde ponto de perder as ultimas vantagens. O grosso da infantaria inimiga ainda estava dentro da cidade, saqueando-a e esmagando qualquer resistência, e não podia sair e entrar em formação tão rapidamente.
Aproveitando a pequena vantagem de estar enfrentando somente parte da força inimiga, os Ursos do Norte atacaram com toda sua força – e isso significa muita coisa – tentando quebrar o bloqueio diante do portão.
Sim, de fato haviam sido subestimados. Aqueles soldados do norte não eram habitantes de cidades, pescadores ou qualquer outra coisa do tipo em tempos de paz. A grande maioria deles sempre trabalhou como caçadores, por vezes enfrentando até mesmo ursos e lobos, e outros como lenhadores nas densas florestas de pinheiro do norte. Isso somado a fúria por ver suas casas sendo incendiadas e suas famílias provavelmente massacradas deram aos Ursos do Norte uma força da qual certamente seus inimigos não suspeitavam. A primeira fileira das tropas do reino das ilhas foi simplesmente atropelada pelo avanço daqueles homens que de fato lembravam muito ursos, a maioria com algo em torno de dois metros de altura e o equivalente em músculos, portando machados quase tão grandes quanto eles próprios, ou espadas de mais de um metro e pesadas.
A linha inimiga oscilou. A guarda pessoal do Rei, com ele mesmo à frente, liderou todas as forças restantes do norte em formação de cunha quebrando as linhas inimigas e chacinando muitos soldados das Ilhas e, mais importante, dominando o portão, isolando dentro da cidade uma considerável parte dos inimigos. Imediatamente, o Rei deu a ordem e suas forças fizeram uma formação defensiva diante do portão e começaram a entrar na cidade. A sorte da batalha parecia prestes a virar.
Consciente de que agora estavam em situação altamente desfavorável, os soldados que ficaram dentro da cidade se agruparam em numa parte isolada da cidade onde esperavam oferecer resistência.
E então um acontecimento praticamente milagroso ocorreu: a guarda da rainha irrompeu do portão do castelo, obrigando alguns inimigos a recuarem. Mesmo em meio ao caos, morte e destruição, mesmo sabendo que as chances ainda não eram favoráveis, o Rei não pôde se conter. Uma onda de alivio e felicidade fluiu livremente por todo seu corpo. Flechas cortavam o ar, gritos de dor e de guerra junto com o choque de metais preenchiam os ambientes. O calor da cidade em chamas incomodava profundamente. Mas nem mesmo tudo isso conseguiu impedir que o Rei soltasse suas armas e corresse de encontro à sua amada!
O abraço e o beijo foram tão ardentes e intensos como a batalha que se desenrolava.
Mas agora a esperança voltava a brotar no coração dos homens do norte. Ainda tinham mais da metade de suas forças, e haviam obrigado o exército das ilhas a recuar e se reagruparem, sem mencionar que impediram que toda a população da cidade fosse capturada.
E foi então que a esperança recém-nascida prematuramente se extinguiu! Outro som foi trazido vento. Da estrada para o sul ergue-se uma nova coluna de poeira, sinal de mais uma aproximação. E não podia ser ninguém mais do que os inimigos deixados para trás. Era lendária a alta velocidade de marcha, longamente treinada, do Reino do Sul, mas ainda assim era surpreendente. O plano era terminar de reconquistar a cidade, improvisar qualquer barricada no portão enquanto criavam alguma estratégia de contra-ataque. O rei e seu irmão acreditavam ter ao menos 24 horas antes de se depararem com mais inimigos. Não era muito, mas dava para acalentar ainda alguma esperança de sucesso.
Entretanto agora tudo estava perdido! Não havia mais de onde tirar tropas. Nenhum reforço. E o inimigo estava agora em superioridade de 7 para 1. E sem duvida poderiam trazer mais soldados, se fosse necessário. Mesmo com os portões intactos, não haveria como resistirem a um sítio daqueles. Nem mesmo havia alimento suficiente. A derrota já estava selada. Nada mais restava além de tentar salvar o quanto fosse possível de pessoas antes de serem por fim esmagados.
A ordem foi dada: toda a força militar atacaria a partir do portão e garantiria uma posição segura, formando um corredor por onde o restante dos soldados e civis poderia passar. De lá, deveriam se dispersar em direções diferentes, adentrando nas grandes florestas ou nos caminhos tortuosos da região montanhosa. Assim era provável que muitos sobrevivessem. Não haveria como ser empreendida uma perseguição em área desconhecida e tão inóspita.
O comando foi executado prontamente. Toda a força, especialmente cavalaria, atacou o inimigo diante das muralhas e conseguiram manter uma posição defensiva, dando cobertura para a retirada da cidade. Estranhamente, o inimigo não pareceu fazer assim tanto esforço para barrar a passagem deles. Por fim, após mais de uma hora de combate, o que restou da população da cidade conseguiu sair e começaram a tomar rumos diferentes.
Entretanto, não era a totalidade do exército do rei do Sul que vinha pela estrada! As divisões de soldados que se dispersaram e estavam conseguindo se afastar do inimigo, quase ao abrigo da acolhedora floresta próxima, foram atacadas por tropas inimigas escondidas na proximidade da cidade e na própria floresta.
Imediatamente, o Rei compreendeu o estratagema inimigo! Foi tudo meticulosamente planejado, incluindo a chance de entrarem na cidade e realizar uma retirada dela! Desde o começo a armadilha estava pronta, e ele tinha caído nela ao dispersar suas forças.
Com horror, o Rei-Urso pode ver e ouvir as companhias dispersas de seus soldados serem cercadas e trucidadas uma a uma pelos inimigos na emboscada. E então a totalidade do exército das ilhas bem como o do Reino do Sul, que agora já havia conseguido chegar aos portões caíram sobre a formação defensiva do norte, diante das muralhas. Não houve qualquer chance de resistência. Chuvas de flechas e projéteis de catapultas massacravam seus bravos guerreiros, e cargas de cavalaria varriam suas fileiras! Não havia mais sentido dar qualquer ordem.
- Pegue sua mulher e minha sobrinha e parta daqui, seu tolo! Gritou o irmão do rei, antes de novamente cavalgar para dentro do combate.
Não havia nada mais a ser feito, e assim, com uma pequena guarda remanescente, o Rei conseguiu abrir caminho e fugir em galope acelerado em direção à estada que levava para as montanhas próximas.
Imediatamente o próprio general do Sul e seus cavaleiros lançaram-se em perseguição. Os aproximadamente cinquenta soldados, os últimos da guarda real, olharam uns para os outros, e sem receber ordem para isso, viraram-se e se colocaram em posição de ataque.
- Adeus, meu Rei! Sobreviva, salve sua família. Enquanto o Senhor viver nosso país e essas belas terras norte tem esperança. Sobreviva! Bradou o capitão da guarda real, e sem esperar ouvir qualquer resposta, atacaram com força total a cavalaria inimiga. Eram 50 contra mais de 200. Apesar de ser previsível o resultado do embate, diz a lenda que nenhum daquela guarda valorosa tombou sem levar ao menos dois inimigos consigo e vários levaram muito mais.
Mas apesar do atraso causado por eles, não foi suficiente para que o rei e sua família, agora já sozinhos, pudessem chegar a uma distância segura. Por fim, após horas e horas de cavalgada com os inimigos logo atrás, desfaleciam diante do casebre, provavelmente o lugar da morte de toda a família.
E então o outrora poderoso Rei-Urso acordou de seu devaneio, de sua recapitulação mental dos eventos do próximo dia. Ergueu sua esposa, pegou a filha nos braços e correu para o ridículo abrigo diante deles. Abriu a porta, colocou sua família para dentro e nesse exato momento um arqueiro montado se aproximou, chegado ao alcance de tiro. A porta estava se fechando, os três estavam já dentro, só deu tempo para um disparo...
A flecha foi veloz e precisa o suficiente para passar pela porta antes da mesma se fechar. O Rei, que não percebeu isso, virou-se aliviado por ter ganhado um pouco mais de tempo e ao menos poder se despedir com dignidade, ou talvez, como imaginou, lutar mesmo sem esperança contra o inimigo lá fora para que o resto de sua família escapasse com vida.
Qual não foi seu susto, sua dor, quando se virou e deparou sua esposa caída. Seu belo chalé ensanguentado pela flecha que penetrou em seu peito!
- NÃAAAAOOO!!!!! Ecoou o urro de urso de dentro da pequena casa. Lagrimas irromperam da face do guerreiro, lágrimas de dor e fúria. A pequena menina também chorava, assustada, mas felizmente sem ainda ter capacidade de compreender o que estava se sucedendo.
- Meu amor! Desculpe por não ser mais forte, por não poder ajuda-lo a escapar e ter tombado.
- Não, não chore! O ferimento não pode ser fatal. Agora são apenas cinquenta inimigos lá fora. Eu irei enfrenta-los e, não sei de onde, tirarei forças para sobreviver e voltar para te tratar! Nossa filha precisa de ti! Eu preciso de ti. EU TE AMO!
- Meu querido – falou ela de modo estranhamente tranquilo – eu estou morrendo. Posso sentir. Mas parto feliz. Tudo que eu queria quando por fim morresse era não estar sozinha nesse momento, e tu és exatamente quem eu sempre quis comigo. Minh vida valeu a pena. Só imploro que consiga salvar nossa filha.
Ela respirava com dificuldade, arfando, e cada vez mais fraca.
- Eu... eu, eu te...
Não pôde completar sua frase. O grito de desespero ao contemplar o amor de sua vida sem vida ao seu lado, sem duvida deve ter assustado alguns dos guerreiros inimigos. Era como se muitos ursos gritassem de dor extrema em uma única voz.
Foi com ódio no olhar que o Rei segurou sua espada novamente. Podia ouvir batidas nas portas que estavam sendo arrombadas. Sua respiração era pesada. Dava para sentir a fúria tomando conta de seu corpo. A perda do controle dos sentidos. Até mesmo o cansaço cedia terreno diante do instinto assassino despertado!
A porta foi arrombada! Três infelizes soldados passaram por ela gritando, somente para serem abatidos. O primeiro golpe do Rei foi no pescoço do que entrou na frente, decapitando-o. Girando o corpo desferiu um golpe lateral que acertou na face do segundo homem, e ainda com o impulso do golpe realizou um giro completo e transpassou sua espada no ultimo.
O arqueiro mortalmente preciso disparou sua flecha, mas com o corpo do ultimo que matou, ainda traspassado por sua espada, defendeu-se dela. E foi o ultimo disparo daquele arqueiro. A pesada espada do norte, que ele rapidamente retirou de sua vítima, foi arremessada com toda a força física e do ódio que o Rei possuía, e simplesmente arrancou da sela o arqueiro, quando atravessou seu corpo.
Imediatamente todos os demais guerreiros atacaram gritando. Mas apropriando-se de duas espadas de suas primeiras vitimas, o ensandecido homem do norte partiu sem medo para cima deles. Não foram poucos os que tombaram ou se feriram gravemente com os golpes. Sim, o Rei recebia ferimentos, mas a fúria correndo em seu sangue neutralizava a dor.
Dez, doze, abatidos...
Mais ferimentos infligidos ao guerreiro do norte...
Dezoito, dezenove mortos por suas espadas...
A luta insana não parecia estar perto do fim, até que uma flecha atingiu o braço direito dele, e sua arma por fim caiu da mão. Os soldados inimigos agora furiosos após contemplar a morte de seus companheiros aproveitaram a abertura e atacaram sem piedade. A defesa com mão esquerda não era eficiente, e assim, por fim, tombou o Rei Urso do norte. Cortado e retalhado pelas lâminas.
Antes de perder os sentidos, ainda foi capaz de olhar para frente e ver quem o atingiu. Contemplou o sorriso vitorioso do principal general do Reino do Sul antes de fechar os olhos.
Sangue escorria por todo o corpo. Era impossível que sobrevivesse! Os soldados inimigos, também muito exaustos, sequer se dariam ao trabalho de cuidar do corpo de seu inimigo. Os abutres que cuidassem disso! Montaram e partiram novamente.
Descuidados... Se tivessem gastado um pouco de tempo verificando seu adversário teriam notado que embora muito ferido, nenhum ponto vital havia sido atingido. Ele tombou pela dor e exaustão, mas não estava morto.
Algumas horas depois, despertou novamente na cabana. Seus ferimentos estavam tradados. Ao seu lado estava seu irmão mais novo, cuidando dele.
- Mas como sobreviveu?
- Foi um dia difícil, meu irmão, mas parece que minha sorte não me abandonou completamente. Recupere-se logo, precisamos cuidar devidamente do corpo de sua esposa.
- E minha filha, onde está?
- Ela estava aqui?
- Sim, estava! Estava aqui no chão dessa pequena casa!
- Meu irmão, quando eu cheguei já nada mais havia aqui além do corpo de sua esposa e tu mesmo!
- Obrigado por salvar minha vida! Eu juro que esse não é o fim da história. Aqueles malditos não deviam ter me deixado vivo. Eu juro em nome de tudo que é mais sagrado que irei ainda fazê-los pagar por esse massacre. E se minha filha ainda estiver viva, eu a encontrarei, nem que seja a ultima coisa que eu faça em minha vida.
Assim, pouco depois os irmãos partiram. Percorreram as estradas, assim que o rei estava recuperado, para ver se encontravam alguma fortaleza ou cidade ainda em pé. Mas já havia passado oito dias desde a grande batalha, e nesse tempo o restante da estrutura do reino do norte foi aniquilada. Evidentemente, o objetivo dos invasores era devolver o norte à era de barbárie e falta de lei que havia antes do Reino ser criado. E conseguiram muito bem, ao menos aparentemente.
Somente esqueceram-se de verificar se tinham mesmo destruído o alicerce do poder daquele povo, ou seja, o homem que os uniu! Ele sobreviveu, e tudo de bom que sentia antes se transformou em trevas no seu coração.
E os demais reinos e povos do mundo ainda iriam sentir de essa ira e encarar as consequências. O reino do norte foi destruído, mas sua semente permaneceu. O Rei voltou a reconstruí-lo nas sombras, mas dessa vez não havia mais qualquer intensão de estabilizar a região e ficar em paz e até negociar com os demais povos.
O novo reino do norte foi erguido com um único propósito: Compartilhar com as demais nações toda a dor que seu rei havia acabado de sentir.