TERUEL E OS DUENDES - CAPÍTULO TERCEIRO
CAPÍTULO TERCEIRO
Ao entardecer, o rapaz voltou à toca. Sua cabeça estava a mil, com todos aqueles conceitos novos... Besouro, namoradinho, deuses... O que Frei Custódio quisera dizer com aquela frase misteriosa: Eu cá me alimento com o que as borboletas me dão? Então as vespas e aranhas de teia não eram os únicos seres que atacavam duendes adultos, também o faziam os louva-a-deuses, caso tivessem oportunidade... Trouxera consigo meia dúzia de gusanos, uns vermezinhos gordos que encontrara na raiz podre de um toco do que fora uma árvore, depois de devorar outros tantos ele mesmo... Mas Miraflores nem sequer o saudou ou perguntou como ele estava ou o que tinha feito. Desapontado, louco para contar a sua aventura, depositou o presente no fundo da toca e retornou, sentando-se quietinho ao lado dela.
Ficaram ambos em silêncio, enquanto o tempo passava devagar, até que Miraflores se decidiu a falar:
“Barañano esteve aqui de novo...”
Teruel não respondeu. Já suspeitava de que alguma coisa ruim viria. Miraflores assentiu e continuou:
“Ele não quer que você continue vivendo comigo.”
“E que direito tem ele sobre nós? Você é minha mãe! Como ele se atreve a dizer que não podemos mais viver juntos?”
“Teruel, você não compreende. Barañano é o nosso rei. O Rei das Aranhas Caçadoras, quer dizer – mas também domina sobre as aranhas de teia, os ácaros e até mesmo sobre os escorpiões, mesmo que estes lhe obedeçam de má vontade. Ele é o Presidente do Conselho, o Chefe Guerreiro, o que você quiser. Seu título verdadeiro é o Primeiro Caçador.”
“Nunca ouvi dizer que aranhas tivessem rei...” Ele conhecia a palavra e o conceito através das histórias que Miraflores lhe contara desde o tempo em que ainda vivia no casulo.
“É o Primeiro Caçador, já lhe disse. Não sou obrigada a cumprir as suas ordens, mas é difícil não seguir os seus conselhos...”
“Quer dizer que ele não pode mesmo nos obrigar...?”
“Não, mas ele pode levar o Conselho a votar nesse sentido. Aliás, ele não me falou claramente, mas acho até que ele está ganhando tempo antes que essa decisão seja tomada. Se o Conselho decidir, ele terá de fazer cumprir a decisão...”
“Se você quer tanto assim que eu vá embora, então irei!... Já estou grande e sei cuidar de mim mesmo...”
Miraflores o agarrou com violência:
“Nunca, nunca, nunca, ouviu? Você é meu filho e vai ficar comigo!...”
Teruel debateu-se em seu abraço. Os palpos de Miraflores moviam-se de forma muito semelhante às fauces de Frei Custódio. Pela segunda vez em um só dia, sentia sua vida ameaçada por uma criatura muito mais forte do que ele. Toda a sua autoconfiança se desvanecera. Não, ainda não era um caçador valoroso e independente, capaz de afrontar mil perigos... Esforçou-se para se desvencilhar.
“Solte-me, Miraflores! Solte-me, já disse!...”
“Se algum dia fugires de mim, eu te devoro!...”
*** *** ***
Mas afrouxou o abraço e Teruel saltou para longe, o coração aos pulos em seu peito, a lança em riste na sua mão. Miraflores procedeu como se não tivesse percebido a reação que o medo lhe provocara.
“Barañano recebeu uma queixa. Por que você soltou o louva-a-deus?”
“Ora, era uma aranha de teia. Você mesmo fala que são criaturas desprezíveis e miseráveis...”
“E realmente o são. Umas vagabundas, ainda piores do que as vespas. Mas você não tem o direito de interferir entre uma criatura e seu alimento.”
“Então, é por isso que Barañano quer que eu vá?”
“É muito mais do que isso, meu amor... Barañano diz que seu lugar é entre os outros duendes...” Novamente uma vertigem subiu à cabeça de Teruel. Outros duendes? Claro que ele sabia que havia outros duendes, Miraflores lhe contara histórias a respeito, mas na verdade, salvo por algumas cascas vazias que reconhecera instintivamente, nunca havia encontrado nenhum.
“Você quer dizer... que os duendes não moram com as aranhas? Quero dizer, nós somos filhos das aranhas, não somos? Por que não podemos morar com elas?”
Miraflores hesitou. Por um momento, não sabia o que dizer. Mas a seguir, falou com decisão:
“Quando os duendes crescem, eles vão para suas próprias Colônias. Mas aranhas e duendes permanecem sempre amigos e se ajudam uns aos outros. Muitos de nós até servimos como montaria, para que os duendes se possam locomover mais rápido e com mais segurança, em caso de necessidade...”
“Eu nunca montei em ti...”
Miraflores sorriu: “Talvez algum dia até precise de montar...”
E não disse mais nada, embora Teruel ficasse intrigado como nunca antes o estivera. Alguma coisa lhe escapava. E nem tivera ocasião de perguntar à mãe sobre tantas coisas que se perseguiam dentro de sua cabeça. Besouro, namoradinho, deuses... O que Frei Custódio quisera dizer com aquela frase misteriosa: Eu cá me alimento com o que as borboletas me dão? E as injúrias daquela aranha de teia: És a cria bastarda de Miraflores, alimentada com leite de uma aranha e que agora está roubando o alimento de outra! Tinha comida para um mês! Besouro! Besouro bastardo! O que era uma “cria bastarda”, como gritara a feia aranha cinza? E por que o chamara de besouro? Mas não era uma boa ocasião e não se atreveu a perguntar nada.
*** *** ***
A partir desse momento, o que Teruel mais queria era encontrar outros duendes. Só deles conseguiria as respostas para tantas perguntas que, tinha certeza, nem Miraflores e nem Barañano lhe responderiam. Talvez se fosse pedir desculpas à aranha cinzenta... Mas provavelmente ela lhe responderia com mentiras ou lhe contaria meias-verdades, desvirtuadas a um ponto que seriam muito piores do que se fossem falsidades completas. Mas como os encontraria? Como indagar de Miraflores o seu paradeiro? Tinha uma forte suspeita de que ela entraria em um surto de fúria... E por mais que tivesse certeza do amor da aranha loura, Teruel não conseguia esquecer, pois murmurava desde então no fundo de sua memória, aquela frase terrível: Se algum dia fugires de mim, eu te devoro!...
Assim, foi estendendo ainda mais seus já longos passeios, aventurando-se até os limites da floresta das papoulas, agora apenas uma sucessão de hastes partidas, enquanto outras ainda apontavam tristemente para os céus. Mas na relva alta, a vida continuava, embora agora as vespas fossem cada vez mais raras e estivessem realmente em busca de alimento e não de novas vítimas, porque já passara sua fase de reprodução e eram somente as suas larvas que devoravam criaturas vivas.
E foi assim que Teruel deparou com os besouros, umas criaturas robustas, com cascas de quitina grossa e lustrosa, patas negras, corpos verdes e grandes cabeças vermelhas de que brotavam antenas... Seu coração teve um sobressalto: São duendes! Mas ficou ali parado, observando de longe. Os “duendes” arrastavam-se rapidamente pelo chão, sobre seis patas, fuçavam e comiam tudo o que lhes aparecesse: vermezinhos, raízes, minúsculos cogumelos, uma que outra folha seca de papoula. Então eram eles a sua gente? Pareciam tão pacíficos e acomodados... Aproximou-se com um certo receio e ainda com medo, deixou a proteção quase inexistente das hastes lascadas das papoulas. Pela primeira vez, Teruel saía do bosque de sua infância.
“Saudações!” – falou, sem saber o que dizer, na língua dos duendes, que sempre utilizara com todas as criaturas, porque era a língua que Miraflores lhe ensinara e que sempre usava quando falava com ele, embora tivesse percebido palavras e até frases estranhas em suas conversas com o gigantesco Barañano e soubesse que as aranhas de teia tinham sua própria língua, feita de estalos sibilantes. As criaturas ergueram os olhos, placidamente, viram que não era uma ameaça e retornaram a pastar.
“Bom dia!” – tentou Teruel, de novo. Uma das criaturas parou de comer por um instante e o examinou minuciosamente. Com um calafrio, Teruel percebeu que estava sendo avaliado como possível alimento... Preparou-se para fugir. Se algum daqueles besouros adultos o atacasse, sua pequena lança de nada serviria contra a armadura de quitina verde e brilhante que lhes formava o exoesqueleto. Então, de repente, a criatura se decidiu a falar:
“Bom dia? O que é isso? Bem que estou vendo que o dia está bom, mas para que dizer o que todos já sabem?” E retornou a comer as hifas de cogumelos que antes estivera devorando.
“Espere!” – disse Teruel. “Quero falar com você!...” A criatura ergueu os olhos, um tanto aborrecida, e lhe fez uma nova concessão:
“Se quer falar, então fale. Por que tenho de esperar para que você fale?”
“Quero saber quem ou o que é você.”
“Costume é que o que chega se apresente...” E voltou a comer.
Teruel percebeu que não lhe daria mais atenção. Ousadamente, empurrou a hifa de cogumelo para um lado com a ponta de sua lança. A boca da criatura se fechou com um estalido e os olhos se fixaram novamente em Teruel, agora com expressão bem mais hostil.
“Meu nome é Teruel!... Quem é você?”
“Eu sou François. Quer soltar a minha comida agora? Ninguém tem o direito de interferir entre uma criatura e sua comida...”
Era a frase de Miraflores! Teruel hesitou por um momento e então falou:
“Você é um duende, não é? Eu também sou um duende...”
“Duende? Mas que ideia! É claro que você é um duende, que mania de falar o que todos sabem... Mas eu sou um besouro, não sou duende nenhum. Agora veja se me deixa em paz.”
“Só mais uma pergunta: besouros não são duendes?”
A criatura o olhou com uma expressão indecifrável e só não suspirou porque besouros não têm esse costume, mas esfregou as patas traseiras como sinal de impaciência.
“Está certo, não estou mesmo com tanta fome assim... Mas se algum outro vier e comer o meu cogumelo primeiro, você terá de trazer-me mais comida, entendeu?”
Teruel concordou e François lhe disse, com um tom de voz indefinível:
“Estou vendo que você ainda é muito jovem e que, de algum modo se criou sem ir para qualquer Colônia, o que é de fato muito, mas muito estranho mesmo... A nossa raça de besouros é aparentada com os duendes, como não? Pode-se dizer até que somos primos da mesma família, porque temos a mesma origem, o que não acontece com outros besouros. Eu mesmo já fui um pequeno duende, mas agora não sou mais, não senhor! Eu sou um besouro adulto e só quero que me deixe em paz.”
“E os duendes, onde estão?”
“Ora, os duendes! Andam por aí, estão em toda parte, eles cuidam do equilíbrio das coisas, cuidam até do tempo, é o que dizem, mas nisso eu não acredito, porque senão, o último verão tinha sido diferente; eu só sei que eles não permitem judiarias. Quando encontram um besouro ferido – sabe como é, os pássaros tentam nos comer, mas nossa casca é grossa e só conseguem nos estropiar – tratam logo de matá-lo. Você veio para me matar? Olha, não precisa, não estou ferido e gozo de boa saúde. Mas se é o que você pretende, então acabe logo com isso...”
Teruel, em desespero, tratou logo de dissuadi-lo. Não tinha a menor intenção de matar a ninguém e só o fazia para se defender ou para caçar. O besouro pareceu um tanto desapontado e disse que sabia de muitos outros besouros que estavam machucados – quem sabe Teruel não queria matá-los em vez dele?
“Mas então os duendes só aparecem para matar um de vocês?”
“Ah, não, quando nós somos desastrados e caímos de costas, não conseguimos nos desvirar e aí um dos outros vai pedir ajuda ao duende mais próximo, porque não podemos zumbir ou chiar, senão atraímos predadores, nossa barriga é bem mais vulnerável que as costas... Aí vem um duende ou mais de um e ele ou eles nos desviram... Também sabem consertar uma pata quebrada e até mesmo têm uma pasta que serve para cerzir os nossos élitros quando se rasgam e não podemos mais voar... Os duendes são nossos primos e nossos amigos... Mas eles também ajudam a outros besouros e até aos escaravelhos quando esses bichos precisam, o que nem deviam, se quer saber a minha opinião. Só têm obrigação conosco, que somos parentes... Acho que não têm mais nada para fazer... Que nem você, aí parado, olhando para ontem...”
Então o rapazinho disse que a única coisa que queria era encontrar outros duendes. Então François balançou as antenas, em sinal de desespero e sacudiu o corpo poderoso que, de repente, se abriu para os lados, como fazem as folhas de portas. Teruel recuou amedrontado. Mas as capas de quitina verde se separaram e debaixo delas apareceram umas asinhas brancas e sedosas, os élitros, tão diáfanos que pareciam feitos de papel de seda de aranha.
“Vamos lá, você não vai me dar descanso mesmo. Suba às minhas costas, que eu lhe mostro onde fica a Colônia...” Teruel venceu a hesitação e montou no espaço entre as costas e a cabeça de François, agarrando-se às antenas. “Não toque em minhas asas, ou vai se cortar,” – disse o inseto, antes de levantar voo.
De fato, os élitros se moviam a tal velocidade que, a despeito de sua aparência frágil, podiam facilmente arrancar um braço ou uma perna de Teruel, que mais do que nunca se sentia excluído dentro daquele mundo de insetos e aracnídeos de tantos braços e pernas e patas e asas e olhos... ele que só tinha dois braços e duas pernas e nem uma só antena na testa... que só possuía dois olhos em contraste com os oito de Miraflores ou de Barañano...
*** *** ***
François voou ruidosamente, os élitros batendo tão depressa que, mesmo para Teruel que estava logo à sua frente, ficaram invisíveis. Não que ele se animasse a olhar para trás, um pouco por medo de cair, mas principalmente porque agora via o mundo como nunca antes o tinha visto, a imensidão do bosque desolado das papoulas, a relva que se estendia em todas as direções, até chegar a uma linha arredondada que parecia amarrada contra o céu... E uma coisa monstruosa e gigantesca, como nunca vira, que lhe pareceu a maior touceira de capim do mundo, abrindo-se à sua frente.
“Nunca vi capim tão grande como esse...” Esforçou-se para falar, em sua ingenuidade, apesar do ruído dos élitros zunindo e do vento que lhe batia no rosto e entrava por sua boca e seu nariz, arrancando-lhe lágrimas dos olhos.
“Que capim, menino? Isso é uma árvore, nunca viu uma antes...?”
Só então Teruel percebeu a sua tolice. O que lhe parecera um pé de erva era uma imensidão grossa e dura, mais dura que a mais dura capa de inseto, cheia de folhas na parte superior. Parecia a Rainha do Mundo. Mas nada disse desta vez, não queria que François zombasse novamente de sua ignorância...
E logo surgiram outras, tão grandes ou até maiores do que a primeira; e, lá no meio delas, uma fita de prata que se ia alargando quanto mais perto chegavam. Teruel conhecia a chuva e os filetes de água que escorriam pelo solo, o orvalho que se acumulava nas corolas e nas folhas, até mesmo a condensação que suava nas hastes inferiores das plantas, mas aquela... era uma chuva que corria deitada e todos os filetes juntos que vira em toda a sua vida nem de longe alcançariam tal largura. Sem dúvida, esse era um dia de maravilhas...
“A Colônia fica logo ali, do outro lado do rio. Mas eu não vou até lá.” O rio? Então aquela chuva deitada no chão, que lhe parecera no início um fiozinho de prata, era o que Miraflores chamara de “rio” em algumas de suas histórias?
Teruel tinha a cabeça cheia de indagações, mas somente se atreveu a perguntar:
“E por que não vai até lá?”
“Território, meu caro. Para lá moram os besouros-de-chifre, umas criaturas negras e belicosas... E não entramos nas terras uns dos outros. E mais adiante... há o Castelo. Lá não vou. Minha casca é dura, mas mesmo assim elas podem me picar nos olhos...”
Elas quem? Embora Teruel lhe quisesse fazer mil perguntas, não se atreveu a quebrar o silêncio de François, o qual, para sua surpresa, ao invés de pousar junto ao rio, deu meia-volta em pleno ar e o trouxe de volta, parando quase no mesmo lugar de que havia alçado voo.
“E o meu cogumelo? Onde está meu cogumelo?” – falou, escarvando o solo. Voltando-se para Teruel, reclamou: “Viu o que foi fazer? Comeram o meu cogumelo e agora que estou com fome de tanto voo inútil, vou ter de procurar outro!... Vá, desça logo de minhas costas e não me apoquente mais!...”
Teruel desceu, a cabeça ainda rodando, menos da viagem aérea inusitada do que das mil e uma questões sem resposta que corriam uma atrás da outra dentro de sua mente. Então recordou que François exigira que lhe trouxesse comida, caso comessem o “seu” cogumelo e, antes que o besouro também se lembrasse disso, tratou de voltar para casa...
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