Pesadelo no bloco Kafka
Agora que revejo todas as pequenas peças do bizarro quebra-cabeça para o qual fui arrastado, parece absurdo que eu não tivesse ouvido os estranhos apelos em minha mente que já ecoavam desde o meu primeiro contato com o lugar. Lembro quando vim aqui pela primeira vez, quando percorri o asfalto rendado pela luz do sol que se filtrava através das folhas dos mognos altos que margeavam a rua, e cuja sombra tornava aprazível aquela manhã quente, e que tudo parecia quase belo, não fosse o estranho e desagradável prédio que, à primeira vista, nada tinha de especial, exceto o fato de me causar aquelas sensações ao mesmo tempo sinistras e confusas que eu não conseguia identificar, provavelmente, pelo fato de corresponderem a sensações novas para mim, as quais eu nunca devia ter sentido, mas que não quis a providência que assim fosse.
O estacionamento em frente ao prédio se estendia ao longo de uma inclinação que possibilitava a contemplação completa e simultânea de todo o edifício de três andares, apesar da proximidade que o carro ali estacionado se mantinha com o prédio de fachada amarelada já desbotada pelas chuvas intensas do verão, e pelo sol que ali batia pelas manhãs. As varandas todas desertas pareciam se oferecer afáveis, dando um aspecto amistoso e convidativo ao edifício que apesar disso, e do horário desfavorável aos medos, emanava uma atmosfera inexplicavelmente tensa e bizarra, como se abrigasse ali algo estranhamente nefasto que me arrancou um calafrio, ao mesmo tempo em que eu descia do carro e me deparava com a estranha criatura que se arrastava na minha direção empunhando um rodo, e que parecia ter surgido do nada, enquanto eu fitava o alto do prédio. Naquele mesmo instante percebi ainda as pequenas criaturinhas que se esgueiravam um pouco mais atrás, no que me pareceu uma fresta escura e lúgubre, logo coberta por uma porta que se fechou quase por completo, mantendo aberto apenas um espaço insuficiente para dar passagem a um rosto. Notei que a estranha criatura que passou por mim me observava, mas infelizmente, naquele dia, não a considerei digna de mais que uma olhada, que, ainda que muito rápida. Fora suficiente para acentuar a repulsividade da criatura a poucos metros de mim, mesmo assim, tola e ingenuamente, mantive a minha atenção voltada para os aspectos da construção propriamente dita, e foi esse enorme equívoco que gerou todos os males nos quais me enredei, e que agora me envolvem quase palpáveis, e me ameaçam tão fortemente que eu não creio possa ter escapatória, o que faz com que esse escrito seja ao mesmo tempo uma denúncia, e minha única comunicação com o futuro, de modo que me vejo obrigado agora a persistir lúcido, impedindo que a insanidade se aposse de mim nesses momentos de relativa tranquilidade por que passo agora, como se estivesse no olho do furacão à espera das turbulências horrendas que eu tenho certeza virão. Os abomináveis seres que nesse momento me envolvem me pegaram de surpresa por desconhecer completamente toda essa classe de criaturas nefastas e asquerosas que fecharam o cerco sobre mim tão logo eu tivesse desvendado umas poucas das estranhas características que eles ostentam, de modo que, ainda que não me reste mais esperança, fica a satisfação de ter cumprido o dever de alertar os que permanecem nesse mundo, da existência dessa nefasta colônia de seres cuja biologia funesta e repulsiva passo a esboçar pelo curto tempo que ainda me sobra, embora eu tenha desvendado apenas uma parcela muito ínfima das características dos estranhos e repulsivos seres.
O que salta aos olhos ao primeiro olhar sobre os estranhos seres é seu polimorfismo, que dificulta enormemente a sua descrição, dado que escamoteia até mesmo o possível fato de que a colônia seja constituída por uma variedade de seres diferentes e não aparentados, o que, se não pode ser descartado, também não deve ser demasiadamente levado a sério, sendo o mais provável que toda a colônia seja constituída por uma única espécie polimórfica, o que explicaria a enorme diversidade das formas que a constituem, sem suscitar questões relativas ao surgimento simultâneo de tantas espécies tão extravagantes e relacionadas umas com as outras, embora a possibilidade de parasitismo e de outros relacionamentos interespecíficos dessa ordem também não possam ser descartados, De qualquer forma, o mais provável é que se trate de uma colônia análoga à dos insetos sociais como as formigas e as térmites, e que ostenta uma variedade de formas similar à desses últimos, sugerindo um paralelismo entre seu desenvolvimento e o desses insetos sociais, o que me trás de volta ao momento de minha chegada ao prédio.
Tendo me deparado apenas tangencialmente com a estranha criatura, me dirigi às escadas e subi até o terceiro andar. Enquanto os meus passos ecoavam nas escadas silenciosas; identifiquei pelo número o apartamento que eu buscava, e lá entrei carregando comigo a estranha sensação que eu insistia em negar. Sim, agora que nada mais importa, recordo muito claramente que a estranha sensação que eu sentia era fortíssima e clara e, além disso, muitíssimo repulsiva, e me vejo agora como se tivesse sido, naquele momento, enfeitiçado por algum poder nefasto que permitiu que eu notasse uma enorme quantidade de defeitos na construção que me gerava tão forte repulsa, e mesmo assim me fizesse desconsiderar todos aqueles prenúncios hediondos. Como me indigno agora com fato tão inexplicável: ter vindo morar em tão abjeto apartamento!
Reencontrei aquela repulsiva criatura outras centenas de vezes, até quase me acostumar com ela. Costumava se arrastar pelos pilotis do bloco catando os pequenos pedaços de carne com que continuamente se entretinha, e com os quais parecia brincar de um modo análogo ao dos gatos com suas vítimas, embora os nacos de carne morta estivessem inertes e constituíssem sempre uma quantidade considerável. Em favor da criatura deve ser dito que as tais carnes que ela não cansava de fiar e de transportar para um e outro lado não chegavam a exalar um fedor tão forte que viesse a ser notado pelos que por ali passavam, e era apenas a natureza bizarra e constante daqueles pedaços de carne que ampliavam a sensação de estranheza que a criatura causava, e que gerava calafrios naqueles que o encontravam; tinha quase a estatura de uma pessoa, e uma natureza robusta que parecia tentar ocultar. Arrastava-se com modos pesados que, só agora noto, camuflavam sua natureza selvagem e ágil, a qual eu nunca haveria suposto. Habitava uma toca térrea lúgubre e escura, juntamente com uma profusão de outras criaturas de movimentos furtivos similares, embora nenhuma das outras criaturas daquele grupo polimórfico ostentasse a mesma robustez que a maior delas. Além disso, todos os outros se comportavam de maneira furtiva, se esgueirando silenciosamente para a toca ao menor sinal de movimento nas redondezas, mantendo de lá uma rígida rotina de observações com talvez uma dúzia de olhos brotando simultaneamente da fresta deixada pela porta entreaberta da gruta.
Também me culpo por nunca ter dado suficiente atenção à natureza, por assim dizer, “artropoidal” daquelas criaturas cuja peculiaridade seria impossível negar, mas cujo grau de estranheza nunca tinha sido suficientemente analisado por mim. Agora que me detenho a considerar a morfologia das criaturas, me surpreendo muitíssimo por não ter percebido serem artrópodes, o que só pode ser objetado em virtude do tamanho avantajado das criaturas que, como já mencionei, ostentam uma envergadura quase humana, o que se não chega a ser impossível para um artrópode, mas é vastamente surpreendente, uma vez que todos os artrópodes terrestres contemporâneos cabem na palma da mão, ou, quando muito, a excedem em alguns centímetros, e mesmo assim são levíssimos, pesando menos do que se esperaria que qualquer objeto das mesmas dimensões viessem a pesar, sendo, portanto, seres relativamente pequenos, exceto por uns poucos artrópodes marinhos que talvez cheguem a um metro, em casos especialíssimos, e que ostentam uma robustez considerável, a ponto de se tornarem tão pesados quanto os seres vivos em geral. Essas considerações, quanto ao tamanho usual dos artrópodes, são as únicas capazes de eximir uma parcela da culpa que sinto por ter deixado passar anteriormente esses fatos tão óbvios acerca das estranhas criaturas que habitavam o mesmo edifício que eu, e mesmo assim, justificam apenas uma parcela muito ínfima desse meu erro tão temerário, que, de qualquer modo, agora me causam os mesmos males, fosse ou não justificada a minha falta na apreciação da natureza das criaturas. Por outro lado, não consigo deixar de imaginar que minha “cegueira” quanto a fato tão óbvio e acentuado, só se justificaria em decorrência de algum poder hipnótico por parte das criaturas, quero dizer, tais criaturas são tão evidentemente bizarras que me parece impossível que a enormidade de tal fato tenha me escapado, na ausência de qualquer força capaz de anuviar os meus sentidos, ou mesmo o meu juízo.
Embora não me seja alento justificar meus equívocos quanto à percepção prévia das criaturas repugnantes, convém que eu tenha tido essa percepção tardia, pois, acredito que o que ainda me salva nesse momento, o que ainda impede que as hediondas criaturas invadam meu apartamento, é o inseticida que aplico incessantemente em resposta às sucessivas tentativas de invasão. Assim, creio que o tempo de vida que me resta seja proporcional à quantidade do líquido que os mantém a certa distância daqui, pois, tenho certeza de que as portas e ferrolhos são inúteis para conter as hediondas criaturas.
Os já referidos seres que habitam o térreo do edifício infestam todos os cômodos lúgubres que lá existem, especialmente aqueles que abrigam as bicicletas e ferragens, que parecem atrair imensamente as criaturas, que as depenam incessantemente até dar fim por completo às bicicletas que lá tenham sido deixadas por qualquer descuido, de modo que algumas horas naqueles ambientes lúgubres e sem iluminação, infestados pelas criaturas, são suficientes para transformar uma bicicleta nova em uma sucata enferrujada e irreconhecível, demonstrando o poder corrosivo das criaturas, que em um ou dois dias dão fim por completo a todos os restos da bicicleta que eventualmente, e por algum descuido, tenha sido ali deixada.
Ignoro como os tais seres corroam as carcaças das ferragens e como sejam tão eficientes nesse tipo de infestação, mas suspeito que exalem alguma substância corrosiva de seu aparelho bucal e que de algum modo utilizem o seu exoesqueleto segmentado (conferir esse fato) para raspar as superfícies previamente carcomidas pela massa regurgitada, de modo que nenhum resto identificável das carcaças escape da infestação, que as consome por completo, sem que reste delas a mais ínfima parte capaz de ser reconhecida.
Mas as estranhas criaturas não infestam apenas a parte térrea do edifício; talvez as criaturas que habitam as partes superiores do prédio sejam ainda mais estranhas e dignas de nota que as outras. Enquanto as criaturas térreas parecem constituídas por uma carapaça parda que lhes protege o torso, e que torna os seus movimentos arrastados e próprios para o deslocamento nas frestas lúgubres, as formas que habitam as partes superiores do prédio parecem deslocar-se de um modo mais lépido, embora extremamente ruidoso, sua característica mais conspícua, e seu maior contraste com as formas silenciosas que se esgueiram pelas áreas mais baixas do prédio, o que à primeira vista parece sugerir que sejam espécies muito diversas, dado não somente a diferença de hábitos que demonstram, assim como a modificação em suas formas, no entanto talvez isso revele apenas um polimorfismo da espécie. Outra possibilidade é que as colônias de tais organismos sejam elas mesmas infestadas por parasitas ou talvez comensais, assim como as moscas que usualmente infestam os locais dos formigueiros utilizados como depósitos de lixo. Por outro lado, considerar que tais espécies se encontrem associadas em um mesmo prédio apenas por acaso parece uma hipótese inverossímil e muitíssimo improvável, a tal ponto que possa ser descartada, de modo que, caso não constituam todos esses diferentes indivíduos as diversas variedades de uma espécie polimórfica, correspondem a espécies associadas por alguma estranha relação ecológica do tipo que os artrópodes são exímios em desenvolver, para a enorme surpresa de todos aqueles que se permitem alguma atenção sobre tais seres.
As criaturas que habitam o prédio propriamente dito, e que não se restringem exclusivamente ao seu solo, também se apresentam sob morfologias bastante diversificadas, entre as quais se destaca uma fêmea, também de estatura quase humana, cuja principal característica consiste na produção de sons bizarros que provavelmente têm por objetivo atrair os machos. Durante os períodos de cio, que se prolongam por quase todo o ano, essa estranha criatura percorre as escadas metralhando-as violentamente com os cascos, de modo a produzir um martelar sucessivo e agudo, causando um alarido característico a qualquer hora do dia ou da noite. Durante as madrugadas o alarido incômodo ecoa pelos corredores ermos do edifício, provavelmente, atiçando tremendamente o machos da espécie, razão pela qual a fêmea por vezes percorre as escadas seguida e incessantemente com o propósito exclusivo de produzir o som característico de sua espécie. Com o passar do tempo, parece que o apelo que a fêmea tão incessantemente produziu com os cascos se mostrou frutífero, logrando essa fêmea a obtenção de um jovem macho muito franzino e que não lhe superava em estatura, sendo ainda menos robusto que ela. Apesar da estatura ínfima desse exemplar, sua performance sexual parecia exceder até a mais frutuosa imaginação, e ambos permaneciam copulados durante as longas tardes ruidosas que se seguiram à chegada desse pequeno macho. As criaturas permaneciam em tandem não só durante as tardes barulhentas nas quais, entre ruídos lascivos de respiração descompassada, deslocavam a mobília desordenadamente, provavelmente em decorrência do frenesi concupiscente em que mergulhavam durante as tardes inteiras, em uma orgia que se prolongava pelas noites, embora de uma forma muitíssimo mais comedida, em virtude, talvez, do esgotamento decorrente dos embates sexuais prévios e sempre recuperados durante as manhãs.
Agora que me vejo aprisionado em minha própria casa, cercado pelas estranhas e ameaçadoras criaturas sem que qualquer esperança me reste, e já resignado com o triste e inevitável destino que me aflige entre essas paredes que, mais que proteção são um cárcere, relembro com o sentimento de culpa que ainda me aflige por não ter percebido a tempo a situação execrável em que eu me deixei ficar quando da chegada daquele jovenzinho sorrateiro e de olhar desconfiado cujo peso dificilmente chegaria aos quarenta quilos, mas que mesmo assim se engalfinhava durante tardes inteiras com a criatura barulhenta, de modo que ambos executavam por longas horas aquelas intermináveis e brutais algazarras lascivas revolvendo a mobília de maneira atabalhoada e insana, entre gemidos arfantes indicativos do comportamento libidinoso irrefreável. Como pude deixar de notar então, que aquele estranho comportamento fosse um indicativo veemente da natureza inumana das bizarras criaturas que infestavam a vizinhança? Minha culpa e meu tormento por me ter deixado aqui simplesmente em meio às hediondas criaturas cuja verdadeira e horrenda face só vieram mostrar nos últimos dias.
Talvez seja apenas uma última e tênue tentativa de absolvição de minha culpa, que me faz crer que foi só nos últimos dias, que os seres passaram por sua derradeira metamorfose, revelando suas faces mais horripilantes nessa última fase de seu desenvolvimento, aliado ao comportamento ameaçador que nesse momento atinge seu ápice e me obriga a abandonar todas as esperanças. Relembro uma vez mais a face hedionda da criatura que encontrei em um dos cubículos térreos umas poucas manhãs atrás, e que me encarou sem pudor, revelando a feiúra tétrica que ocultara por tanto tempo, mostrando despudoradamente os olhos embebidos de ódio que me encaravam enviesada e ameaçadoramente, em um contraste brutal e surpreendente com os modos submissos com que sempre se arrastava pelo chão do prédio, ao mesmo tempo em que retesava as garras e arfava movimentando por inteiro a rígida carapaça que envolve todo o seu corpo. Percebo agora, enquanto escrevo, que os sinais que a criatura emitia com o corpo e garras já seriam suficientes para alertar qualquer pessoa que possuísse um mínimo de sensatez, e que tais sinais de ódio eram ainda superados em intensidade e clareza pelo olhar vil que a criatura me lançava escancaradamente, o que me faz crer novamente que tais criaturas têm algum estranho poder capaz de interferir nas mentes humanas atordoando-nos parcialmente o juízo, de modo que nos deixam em um estado que só pode ser descrito como uma espécie de loucura seletiva, que permite que ajamos de um modo natural durante quase todo o tempo, mas que sejamos cegados por algum estranho poder quando tratamos com as nefastas criaturas, de maneira que mesmo os mais óbvios sinais, ainda que registrados por nossa mente, não interferem em nosso comportamento, fazendo com que nossa ação seja incompatível com aquilo que percebemos, de modo a criar um comportamento artificiosamente normal capaz de iludir os que estejam ao redor ampliando, provavelmente, esse estranho poder hipnótico com que as criaturas enfeitiçam os seres humanos. Percebo agora com nitidez que a característica mais nefasta das hediondas criaturas é exatamente esse poder de enfeitiçar os seres humanos de uma maneira que nos compele a agir como se tudo ao redor continuasse na mais autêntica normalidade, ainda que percebamos a natureza funesta das criaturas que infestam tudo ao redor, impossibilitando-nos de tomar as providências drásticas que tais ocasiões obrigam.
Nesse mesmo instante ouço os estranhos ruídos que as criaturas fazem enquanto sobem pelo poço de ventilação do prédio, e verifico que a pouca quantidade de inseticida que ainda me resta será logo insuficiente para mantê-las à distância, de modo que permito que elas me espreitem de bem perto, e por vezes creio que elas já se tornaram imunes ao veneno que aplico, embora eu suspeite fortemente que ele ainda as incomode, o que me faz concluir que ainda tenho mais alguns minutos de vida, e talvez mais algumas horas, e não sei se é castigo ou prêmio que esse tempo se alargue em meio a esse desespero resignado já posterior à agonia mais profunda em que nos vemos imersos enquanto ainda buscamos a salvação.
Volto a pensar no estranho poço de ventilação e mais uma vez me penitencio por minha ingenuidade temerária e absurda, pois toda a arquitetura do prédio delata a sua origem funesta ao primeiro olhar. Não fosse o absurdo poço de ventilação a conectar todos os apartamentos de modo que o menor ruído feito em um seja ouvido em todos os outros, haveria a reentrância inexplicável no quarto, gerando a enorme fresta que conduz à janela, impossível de ser utilizada de maneira racional, e o banheiro situado quase no centro exato do apartamento, sendo estas apenas as mais óbvias distorções desconsideradas pelas mentes que elaboraram o estranho prédio, e cujo projeto sempre me pareceu enigmático, embora agora se revele em toda a sua estranheza e de uma só vez, pois percebo agora a enorme analogia entre o prédio e uma torre de cupins, com a diferença gritante de tamanho, mas com uma relação de escala bastante fiel. Posso ver agora a camuflagem que constitui a tinta nas paredes, e que torna os cômodos similares aos humanos, mas é a sua estrutura que mantém sua fidedignidade com as torres originais construídas pelas colônias de térmites. E é só sob essa ótica que os poços e as reentrâncias ganham sentido, parecendo enigmáticas e inexplicáveis se imaginadas saídas das pranchetas de projetista humano.
E enquanto escuto impotente o som das criaturas que percorrem o tubo de ventilação, penso com horror e repugnância que essa capacidade que antes eu desconhecia, permite a elas se alastrar pelo estranho corredor vertical, e lhes permitiu anteriormente espreitar minha própria casa nos momentos em que eu dormia, entrando pela janela que ingenuamente permanecia aberta durante as noites quentes; deve-se ressaltar, aliás, que as torres funcionam em perfeita analogia com as que são construídas pelas térmites, e que cumprem o seu papel com surpreendente precisão, revelando a engenhosidade dos construtores malévolos e repugnantes que erigiram a hedionda construção na qual me vejo encerrado, e cercado pelas mesmas vis criaturas.
Nesse momento, o metralhar lascivo e sonoro da fêmea nas escadas ecoa uma vez mais, e faz cessar todos os estranhos ruídos que me atordoavam um minuto antes. Isso me faz relembrar a chegada do pequenino macho que viera de algures, provavelmente, atraído pelo sonoro ruído de metralha da fêmea, mas que acabou por crescer chegando esse espécime a atingir a estatura humana, sendo, portanto, muito mais alto do que todas as criaturas, e sugerindo, talvez, que as estranhas criaturas estejam sofrendo sucessivas e rápidas mutações que as tornam mais e mais próximas da forma humana, tornando-as simultaneamente tanto mais perigosas quanto seja apropriado o disfarce humano que usam.
Ouço agora, em meio ao silêncio que se seguiu ao metralhar da fêmea, um zumbido que se assemelha ao cricrilar de alguma criatura rasteira, e que me traz à mente um outro desses seres que infesta o bloco e que se assemelha àquelas criaturas rastejantes e barulhentas conhecidas como paquinhas; este outro ser repugnante também possui quase a altura humana e costuma se deslocar sempre rente aos cantos do prédio, provavelmente por se sentir mais seguro entre, ou nas proximidades das frestas; possui uma aparência entristecida, muitíssimo enfadada, como se tivesse milhares de motivos para morrer a cada instante, e parece se arrastar pela vida como se carregasse um fardo imenso. Eventualmente, essa lamentável criatura emite os seus sons, possivelmente em resposta aos alaridos lascivos da fêmea, mas suas tentativas de cópula são insistentemente rechaçadas por um estampido ameaçador que o faz calar pelo restante do dia. Dessa maneira, embora a tristonha e repulsiva criatura se insinue para a fêmea com seu cricrilar melancólico e inseguro, um ruído longo e agudo, suas tentativas são repelidas por um estrondo fortíssimo e assustador feito pela fêmea lasciva quando os ruídos trêmulos são ouvidos, de modo que tais ruídos acabam por se restringir aos raros momentos em que a fêmea abandona o prédio em busca de provisões, ou de alguma cópula furtiva.
Minha expectativa não se frustrou, embora, mesmo assim, eu tenha me assustado com o assombroso estrondo causado mais uma vez pela fêmea, calando novamente o incômodo e trêmulo ruído produzido pela outra criatura. Sinto-me como se estivesse no olho do furacão, nesse momento de extremo silêncio e tranquilidade aparente que certamente prenunciam um novo e mais poderoso ataque das criaturas infernais, cuja tenacidade eu não ouso duvidar nem por um instante.
E o silêncio que se segue me permite rememorar a minha própria tolice, minha própria culpa por ter permanecido nessa gigantesca torre de térmites infestada não só pelas criaturas térreas que provavelmente a construíram, como por toda essa variedade repugnante de criaturas similares a mariposas lascivas, cuja cópula ruidosa é alardeada com um martelar contínuo, e pelas repugnantes paquinhas rastejantes, cujo cricrilar incômodo serve apenas para delatar a presença das criaturas repulsivas. Contemplo a construção insidiosa que não só abriga a estranha e repugnante colônia, mas, além disso, atrai suas vítimas para não sei que destino tenebroso, e que receio logo vir a descobrir, o que me desagrada muito mais que amedronta, pois as horrendas criaturas causam muito mais nojo e a repulsa que temor. Mesmo assim, não creio que possa haver escapatória da imensa arapuca na qual me encontro metido.
Como eu já receava, a calmaria reinante por quase uma hora volta a ceder lugar à turbulência exasperadora com que as criaturas endemoniadas agora fecham o cerco sobre mim. Creio terem percebido que meu estoque de inseticida está no fim, o que as faz redobrar as atividades e a petulância e permite que as insidiosas criaturas infestem simultaneamente as imediações da porta do apartamento e a torre de arrefecimento da bizarra construção. Os barulhos que fazem com suas garras é agora acrescido de outros, que executam com seus repugnantes aparelhos bucais, e que nitidamente articulam o meu nome. Oh estranho pesadelo, oh absurdo destino que entrega o meu fado a criaturas tão repulsivas. Mas elas agora infestam a porta em grande número, e de lá me chamam evidenciando claramente que sou eu o seu alvo, que serei eu sua vítima. Lanço-lhes uma última lufada de inseticida que agora se esgota por completo, enquanto eu percebo o assanhamento do enxame que dissimulada ou ameaçadoramente, me pede que abra a porta. Ao mesmo tempo percebo a movimentação das criaturas repugnantes na torre de arrefecimento da construção, que não se encontra vedada por nenhuma porta, mas apenas por uma frágil janela de vidro que as criaturas fatalmente colocarão abaixo tão logo amainem os efeitos do inseticida que ainda os repele.
Mais que uma despedida, esses meus últimos momentos de vida são um alerta, uma denúncia. As criaturas que me rodeiam são tão inacreditavelmente repulsivas, que só conseguem se ocultar em decorrência de sua própria estranheza. O alerta que deixo todos antes de sucumbir é que a única coisa capaz de ocultar criaturas tão repugnantes é o fato de se considerar impossível a existência de algo tão repulsivo. Foi exatamente essa consideração que me permitiu entrar na arapuca demoníaca em que agora me vejo impossibilitado de qualquer escapatória.
Em meio aos fortes ruídos produzidos à minha porta, e impotente ante as criaturas que infestam tudo à minha volta, aguardo apenas a fatalidade que logo advirá.