O CONTO DOS CONTOS

Eu tava quase dormindo. Incoído nos pelego naquele girau que tinha deste lado do galpão inté há pouco tempo. Guri novo dormia empulerado. Numa noite de agosto, tapado com uma manta de milico que o Zé bento me emprestou. Era o que se tinha de coberta e eu tirava cada lixiguana que dava pena. Também pudera, isto aqui era como não ter porta, tava sempre escancarada pra trás. O “queixo duro”, cusco overo mordido na boca por uma jararaca, enrudilhado perto da porta começou a rosnar. E aquilo foi num crescente. Antes de destapar a cabeça comecei a pensar no que, ou quem poderia ser. Já era um eito da noite. Eu e o piazedo como sempre ficávamos até tarde escuitando os causos do Terêncio. Depois ninguém dormia de medo.

Do rosnar virou para um latiriu só. E os cuscos ganharam o pátio das casas e se bandearam pela cerca. Não sei se o resto da peonada levantou. Mas eu bombeei pra fora e vi um clarão. Na noite de neblina um facho de luz cortava o breu e se mexia. Fiquei matutando: seria o pinguço do Nico? Chegando do bolicho de lanterna na mão? Ele saiu muito cedo, mas não ia voltar de a pé! Podia ter trocado o cavalo por uma lanterna? Capaz! Aquele matungo sogueiro não valeria uma coisa tão moderna assim como uma lanterna.

Não tava conseguindo entender e a luz continuava a andar. Foi passando por trás do cinamomo, por tás da mangueira das vaca, inté clareou aqui dentro. De vez enquando roncava que nem cachaço e a cuscada atracada feito bixo desceu com aquilo em direção ao açude. E tudo se aquietou de novo, mas quem diz que eu consegui dormir depois.

De manhã, inda escuro, “queixo duro” continuava enroscado perto da porta. Fiz fogo. Esperei a peonada levantar. Perguntei pelo Nico. - foi pro povo, responderam, só vem amanhã. Cês viram ou ouviram alguma coisa esta noite? Continuei. – Não, não vimos nada. Então saí pra buscar as vacas. Quando passei a mangueira aqui de trás do galpão, vi um rastro no pasto. Uma coisa tinha passado se arrastando por aqui e vinha da porteira da frente e entrava mato adentro, bem do lado de onde vinha o clarão da noite passada. Vez por outra se via o sinal de umas garras.

Inté hoje me pergunto: o que seria? Inté hoje ninguém sabe.

O palheiro fumegava acendido com tição. Tio Preto fechava os olhos, livrando-os da fumaça. Tragava com gana, fazendo sulco no gogó. Um pigarro quebrava o silencio que se fizera depois da sua ultima pergunta. O piazedo na volta se olhava. Aqueles que tinham passado todo tempo com os olhos arregalados e com expressão de espanto, agora esboçavam um riso e sacudiam os ombros, num descompromisso com a imaginação. Os mais velhos continuavam a olhar pro fogo de chão, quietos. Outros com a bomba do mate entre os lábios, como quem guarda uma resposta em segredo, como quem sabe e não quer dizer.

Não se comentava mais nada sobre aquele conto. Ficava em cada um de nós uma interpretação própria baseada em outras histórias ouvidas ali.

Cada vez que Tio Preto sentava num final de tarde ao pé do fogo, e calmamente começava o ritual do palheiro, cortando um naco de fumo, picotando-o e espichando a palha com a velha faca prateada, todos já se achegavam. E assim passávamos a ouvir e viajar com ele em seus contos noite adentro.

Ele gesticulava e demarcava os lugares onde se passavam os fatos narrados: - aqui neste canto. - ali naquela porta ou lá naquela porteira. Virávamos a cabeça para um lado e para outro como se estivéssemos vendo a mulher de branco que ele dizia aparecer debruçada na porteira da frente em noites de lua. A moça que era noiva ficou esperando a volta do peão e quando soube que tombou em combate, resolveu se encontrar com ele no além. Nós aguçávamos o ouvido para escutar de onde viria um relincho no vazio da noite, o qual ele dizia ser do tordilho montado pelo primeiro dono daquela estância e que surgia de trás das cocheiras.

Quando o Tio Preto dizia: - ali está o escravo amarrado. Todo mundo olhava pra ver um negro açoitado amarrado no palanque do potreiro da frente, usado agora para doma de cavalos. Ele dizia com tanta convicção, que até podíamos ouvir gemidos.

Até mesmo o lugar de um galpão velho que existia no potreiro dos fundos cujo fogo devorou, era palco de suas histórias. Dizia que ouvia cantos e algazarras, pois segundo consta tinha sido senzala. O fogo se originara numa noite de tormenta feia, talvez um raio tenha feito o serviço ou os negros preferiram a liberdade na estância do além. O fato é que até hoje em noite de céu fechado há quem afirma ver os clarões e que se fazem acompanhar de gritos.

Íamos dormir com aqueles contos na memória e até sonhávamos às vezes, nos sentindo como personagens vivos de cada história. A riqueza de detalhes nos colocava dentro da cada uma delas. Durante o dia percorria os lugares da estância em que eram citados nos fatos. O causo do dinheiro enterrado na sombra da velha figueira nos intrigava. Dito pelo Tio Preto que tesouros jamais foram encontrados e por isso almas penadas rondavam por ali, pois ainda não “haviam subido ao céu” por não terem entregado sua riqueza a alguém. E não descansavam enquanto não o fizessem. Além disso, teria que ser a pessoa certa, pois há casos de outros interessados escavarem por toda a parte e não encontrarem nada, simplesmente por não serem os escolhidos para receberem a fortuna. Em outro destes contos parece que eu estava vendo o Coronel, primeiro dono da estância, gritar para o escravo para que cavasse mais perto da raiz onde estava o dinheiro.

Eu sempre passava por lá na ânsia de ver vestígios da escavação, buracos e pedaços da talha que diziam ter sido encontrada. Subia nos galhos, para ver além do brete, onde estariam as terras compradas com as moedas de ouro e prata retiradas dos potes de barro.

No final de cada história sempre ficava a pergunta sobre sua veracidade ou sobre a real existência dos personagens. Tio Preto nunca confirmou nada, mas sempre respondeu: “pois óia, dizem que é fato vivido”.

Assim nos criamos ouvindo e passando a tê-las como verídicas. Até que o próprio Tio Preto passou a ser história também.

Um banco vazio na beira do fogo. Um silêncio se faz a partir de então. Ninguém mais esqueceu suas histórias e cada um levou consigo a sua verdade, a sua resposta.

Se não eram verdades, passaram a ser por se repetirem por muitas noites de inverno, aguçando a imaginação de pequeninos olhos arregalados olhando para um lado e para outro.

Aqueles finais de tarde nunca mais foram os mesmos. Ao pé do fogo no galpão, esperávamos ver o Tio Preto chegar. Parece até que vinha arrastando chinelos com seu caminhar lento e balanceado.

Na sombra da mesma figueira hoje descansa quem sempre remexeu no tempo retirando velhos tesouros pra nossa imaginação. Até se ouviu por este galpão quem disse ter visto o Tio Preto sentado espichando palha e espalhando o fumo picado, e com tempo ainda ouviu mais uma das suas histórias.

Assim o velho contador de contos passou a ser o conto dos contos.